A câmera é o cofo – entrevista a Renée Nader Messora e João Salaviza

Renée Nader Messora: A gente pensa pouco sobre como a gente trabalha. Eu falo isso no sentido de que o processo vai acontecendo, mais do que a gente vai causando ele. Ele vai provocando a gente. O filme é um pouco esse encontro, essa forma de estar há tanto tempo partilhando uma realidade. Ou seja, a partir de uma realidade compartilhada, a gente vai encontrando um espaço onde a gente consegue colocar as nossas cartas, acolher as cartas que vêm da galera com quem a gente trabalha e tentar transformar isso em filme.

No Chuva, a gente teve um ponto de partida especial. A gente fez um apanhado de coisas que a gente gostaria de filmar, coisas tão simples como um adolescente andando de moto no cerrado, no meio da área indígena, escutando música no walkman, ou o forró na aldeia. A gente fez um apanhado dessas coisas e, a partir dele, a gente construiu uma narrativa, uma espécie de roteiro-tentativa, muito tosco. Partimos da história de um rapaz, que era um membro de um coletivo audiovisual que eu já tinha começado a movimentar com eles uns anos antes, e o João depois se juntou. Esse rapaz passou por uma história muito parecida com a do Ihjãc no filme, só que ele não estava se transformando em pajé, mas tinha sofrido um feitiço. Ele sofreu um feitiço por conta de uma desavença amorosa com a esposa dele, cujo pai era um pajezão brabo da aldeia. Então, esse rapaz fugiu para a cidade sozinho. Ele era também super novo, ele também tinha filho, e a esposa ficou na aldeia – eventualmente ela ia encontrá-lo na cidade... Enfim, a gente viveu muito de perto essa história toda e ela foi um pouco a essência desse percurso do Ihjãc, junto com esse apanhado de imagens que a gente tinha vontade de filmar. Quando a gente chega na aldeia – quando fizemos a primeira viagem juntos, o João conheceu os Krahô e a gente passou uma temporada lá com eles –, a gente já começa a acomodar esse monte de coisa com a realidade que a gente tem na nossa frente. Então, a gente tinha um coletivo audiovisual, em que a gente estava desenvolvendo um monte de coisas. Naquele momento, eles estavam muito envolvidos num trabalho que eles propuseram, que chamava Jornal Krahô, ou KrĨ kãm ampo tẽ jumã xà na língua krahô, que coincidiu um pouco com a chegada da luz elétrica na aldeia. A chegada da luz elétrica trouxe a televisão, e a televisão trouxe um montão de imagens que, pra eles, não faziam muito sentido e eles propuseram começar a fazer o próprio jornal. Era um jornal semanal, em que eles se dividiam em duplas. Cada dupla filmava uma matéria, um assunto que eles tinham vontade de mostrar. E a gente rapidamente montava, junto com eles, esse material, e na sexta-feira esse material era projetado na aldeia. O Ihjãc participava desse grupo e ele era um menino que estava muito curioso. Eu conheço o Ihjãc pessoalmente porque ele é da minha família na aldeia. Eu o conheço desde muito novo, ele já era namorado da Kôtô. E ele começou a se aproximar. Então, a partir dessa outra vivência, desse outro lado do nosso trabalho, as coisas vão se configurando. Quando ele chega, ele também começa a trazer a história dele, as relações dele. Essa característica do Chuva, que é o protagonista estar se transformando em pajé, não tem a ver com a história original do Ihjãc, mas era um processo que ele estava vivenciando com o irmão dele. Enfim, todas essas coisas vão sendo absorvidas pela história que a gente tenta contar. E essa história também é permanentemente aberta para qualquer desvio, para qualquer retorno que, junto com a comunidade, a gente sinta necessário fazer. A gente sempre vai construindo assim. Esse foi o processo do Chuva. O Flor foi muito diferente.

João Salaviza: No Chuva teve até um dado aqui, não sei se vocês lembram, mas foi uma das questões que surgiu no debate no forumdoc. Até o forumdoc o filme ainda circulava apenas com o nosso nome, meu e da Renée, no roteiro. E alguém no forumdoc colocou a questão sobre os créditos. E a gente pensou muito, porque, nos nossos termos, isso foi um aprendizado e uma transformação da forma como a gente pensava o trabalho nos nossos termos, na nossa tradição de fazer cinema. Eu frequentei a escola de cinema, a Renée também. A gente trabalhou noutros momentos anteriores em produções, digamos, mais tradicionais, com uma lógica um pouco mais corporativista, com as funções bem definidas e, para a gente, até esse momento, o roteiro é de quem senta numa mesa e escreve realmente um roteiro. E era o nosso sonho durante muito tempo: a gente achava que ia chegar na aldeia, sentar e ficar duas semanas jogando ideias e escrevendo com os Krahô e desenvolvendo um roteiro do tipo “cena um, interior, dia”. Mas isso não faz nenhum sentido. A gente entendeu que a palavra falada é muito mais dinâmica e muito mais viva, e uma coisa que se fala hoje, amanhã pode ser outra. A fixação na palavra escrita muitas vezes não dá conta dessas ideias que se vão transformando até no dia de filmar. A gente fala uma coisa e no dia sai um pouco diferente, segundo a proposta deles.

E havia um segundo nível que era um pouco que a gente não fazia ideia de como esse filme seria recebido. O Chuva foi uma surpresa. E então houve a ideia de que, se houvesse, de alguma forma, algo de muito nocivo, algo que a gente não estivesse entendendo, poderíamos dizer que foi o cupê (o branco) que fez. Então, nesse caso, o roteiro é do João e da Renée. Se, por exemplo, a pajelança está toda errada, não é assim que funciona, ou se os Krahô de outra aldeia não curtiram o filme, bota a culpa nos cupê – esse roteiro não é um roteiro do Ihjãc.
Só que essa conversa no forumdoc gerou muito essa discussão sobre a escrita de um roteiro e até sobre outras funções no cinema. E isso nos obrigou a repensar o que seria um roteiro nos moldes krahô. E, claramente, o Ihjãc está ali, performando durante nove meses, se transformando diante da câmera. Então, tem uma escrita que é feita com gestos e com palavras. É uma escrita que não fica fixada no papel, mas que fica fixada na imagem e no som. A gente pode equiparar a escrita do roteiro a essa presença de uma história, de um gesto, de uma memória que vai ficando fixada na imagem e que não é uma construção minha e da Renée. A gente pode chegar com uma proposta. A gente está adaptando uma história do Wôôcô, que o Ihjãc conhecia muito bem, mas, depois, a materialização disso é feita por um corpo e uma voz que não são nossos. Então, no final, o filme estreou no Brasil, e a gente alterou os créditos e o Ihjãc assinou o roteiro do filme.

No A flor do buriti, cinco anos mais de relação com os Krahô, e muito mais vida corrida nessa relação que vai se aprofundando, a gente partiu com muito pouco para a rodagem. Tem um roteiro que eu sempre falo que é um instrumento de captação de fundos, que é um roteiro redondinho, mas que serve para ganhar edital, basicamente. Mas a gente sabia da demanda, conversando com a comunidade na aldeia Pedra Branca. Eles falavam muito muito: “a terra, a terra, o filme da terra, o filme da terra, a nossa terra”. Isso já com o bolsonarismo. E a gente pensou, bom, vamos então tentar atender a essa demanda, mas sabendo que o filme, ele é também um território político, um filme feito nesse molde. Nunca é exatamente o filme que a gente imaginou que a gente gostaria de fazer e eu acredito que também não seja totalmente o filme que um Krahô imagina na sua cabeça quando sonha ou quando vê outros filmes dos parentes.

No Flor, eu acho que tem sempre essa tensão muito presente, e isso resulta num filme com muitos solavancos e com muitas formas e com muitas estéticas... Então, por exemplo, pensando agora no roteiro, que é assinado pela Patpro, pelo Ihjãc – que desta vez não quis mais ser ator, quis trabalhar com a gente atrás da câmera –, e o Hyjnõ, há momentos do filme que são... Tem um momento em particular que é roteiro puro: a sequência do massacre. Essa sequência foi escrita realmente no papel – por uma inovação aqui – com o Hyjnõ, a partir de uma entrevista gravada.¹ Essa que vai ser exibida no seminário “A câmera é a Flecha" desse forumdoc. O Hyjnõ fez essa entrevista há dez anos com o avô, o Velho Zacarias, que foi um sobrevivente do massacre. Zacarias era criança nos anos 40, e deu esse depoimento. Então, já é uma memória transportada, quer dizer, a memória do avô do Hyjnõ fixada numa entrevista gravada em 2012 ou 2013, traduzida depois pelo Hyjnõ e pelo Wôôcô. A gente fez uma montagem com o Hyjnõ desses depoimentos do avô e basicamente tudo o que a gente filmou tinha referência nesse relato. E, depois, tinha o Hyjnõ, na primeira pessoa, e ainda tem essa outra camada no filme que a ficção permite, e isso é o que mais nos interessa, que é o Hyjnõ veiculando o discurso e as memórias do avô, enquanto sobrevivente de um massacre, às crianças da aldeia, numa sequência ficcional. Mas ela é integrada no contexto de um ritual que realmente aconteceu, o Ketwajê, que está no filme. Então, é um momento monstruoso do filme, meio disforme. O que está ali, a gente não consegue entender direito onde entra o documental, a ficção, a reconstrução. Então, essa sequência do massacre é escrita realmente. A palavra do avô do Hyjnõ transformada em texto estava no papel. A gente filmou olhando aqueles diálogos, escutando e pensando que imagens poderiam agregar algo ali. E também nos diálogos, logicamente, isso também já tinha no Chuva. A gente nunca escreve diálogos, até porque o nosso domínio da língua é uma coisa que nos deixa muito constrangidos. A gente está bastante melhor hoje, já consegue entender o contexto das conversas, mas a gente ainda não consegue falar, ter uma conversa fluida como esta que estamos a ter aqui. Então, obviamente, que os diálogos são sempre escritos, quer dizer, falados pelos personagens, e pensados e tudo pelos parceiros krahô, e de alguma forma acredito que nesse filme, que tem mais pessoas, inclusive, todos podiam assinar o roteiro. Assim, sendo muito justo, podia ter 10 ou 15 pessoas assinando o roteiro, porque todo mundo, de alguma forma, quando participa, tem uma função na construção narrativa do filme.

Tem um momento lindo que é a Prỳrê dando uma bronca nos ladrões de Arara. É um momento de minutos, mas, para filmar essa sequência, a gente ficou até a meia-noite! Então, ela já estava raivosa, vendo aquela reencenação. Ela estava ficando muito irritada com o Bael, que é um amigo de Itacajá que se disponibilizou a fingir que é um ladrão de Arara. E ela falou: "eu vou falar o que eu quiser! Eu estou brava com o roubo de arara e já é meia noite! Eu vou falar uma vez só o que eu penso de tudo isso, eu vou embora, eu estou cansada". E ela pega e ela faz aquele monólogo de uma força incrível! Então, a gente viu e ainda perguntou se ela podia fazer uma segunda vez, e ela fez, contrariada, e ficou muito, muito, fraco, porque ela já está sem nenhum ímpeto. Então, ficou aquele momento longuíssimo [na filmagem]. Ela, por exemplo, não assinou o roteiro, mas poderia assinar também.

O que eu quero dizer é que todo mundo, de alguma forma, se envolve. Então, eu penso que esse filme – é uma coisa que a gente entendeu mais tarde –, de alguma forma, toda a construção dele é um pouco diferente do Chuva nesse sentido. Acho que A flor do buriti traduz uma espécie de inteligência coletiva, não só o inconsciente, mas uma inteligência coletiva krahô, no sentido de que todos eles vão portando alguma coisa no filme. Nem sempre esse mosaico, essa constelação de vozes, que está ali falando e pontuando, nem sempre está em concordância.

Renée: Aliás, quase nunca.

João: Inclusive, as memórias históricas, elas são contraditórias. Então, nesse filme chegamos a três pessoas assinando o roteiro. Mas voltando ao começo, onde eu disse pensar a escrita nos termos krahô, foi um pouco isso, a gente não sentou com o Hyjnõ ou com a Patpro e com o Ihjãc, que são quem assina o roteiro, e ficou escrevendo. É isso que eu queria deixar claro, que não funciona assim, a gente entendeu que não funciona.

Renée: A gente tentou pensar em todos os créditos. Na verdade, como a gente não tem uma equipe dita profissional – mas a gente tem pessoas que estão envolvidas, da sua forma e dentro das suas possibilidades –, pensamos como a gente poderia incluir também e dar o devido valor no momento dos créditos para todos esses fazeres. E faz muito sentido, porque a gente trabalha nesse contexto e todo mundo fala, "Nossa, vocês filmam sozinhos". Não, a gente não filma sozinho! A gente tem uma comunidade inteira que está disposta a apoiar no que for preciso. Enfim, a gente ainda está entendendo também essas questões e a gente pensa muito sobre tudo isso. Como não repetir nenhuma violência, como ser justo nesse momento e como distribuir os pesos e as honrarias, ou como chamar isso, de uma forma mais ou menos justa.

Ana Carvalho: Eu posso pegar o gancho aqui. Primeiro assim, gente, o filme é lindíssimo! É um arrebatamento! Mas queria tocar num ponto mais preciso, que é sobre aquilo que escapa. O fato de ser uma outra língua, por exemplo, ou o gesto coletivo, que, nesse filme está muito dado, a gente percebe na concretude mesmo, na matéria desse filme, e é lindíssimo. Claro que vocês estão ali juntos, mas não têm a fluidez da língua. Então, era isso o que eu queria saber sobre o que escapa à direção. Me interessa muito o que escapa à direção nessa parceria com o cinema indígena e com uma comunidade indígena. Eu sinto que vocês já começaram a tangenciar isso.

E a outra questão tem a ver com o fato de que quando a gente começa a fazer filme com indígenas, seja um filme de colaboração, seja um filme de oficina, o que for – e eu acredito que o João trouxe isso também – eles desorganizam a nossa forma de pensar, de fazer filme, desorganizam o roteiro, porque tem uma coisa da oralidade, tem uma coisa que se apresenta ali, naquele momento. Essa desorganização, eu sinto pouco no filme. Assim, essa desorganização que o fazer indígena provoca no cinema – e eu estou falando no plural, porque são vários fazeres –, eu sinto menos no filme. Eu sinto muito o gesto coletivo, claro. Vocês não fariam de forma alguma esse filme com essa força e com essa beleza e com essa coisa tão consolidada se, de fato, não tivesse essa relação. Mas eu sinto menos a desorganização. Então, eu fiquei me perguntando, até onde que essa mistura acontece na direção?

João: Eu acho que fazendo um paralelo com os filmes feitos no modelo mais convencional, é como carregar uma estátua de barro na chuva e ela vai se desmanchando na sua mão – essa sensação de que você vai perdendo tudo aquilo que idealizou. O filme de ficção, feito no modelo tradicional, tem muito essa construção do conceito, matéria e um trabalho sobre a matéria, que tenta atender um desenho prévio. Então as coisas escapam para fora. Já nesse modelo de filmar ficções com o tempo e com a disponibilidade e a flexibilidade do documentário, que é um pouco o que a gente faz, em 15 meses, e num contexto de uma alteridade radical, por muito que haja uma amizade e tudo, as coisas escapam, mas elas escapam para dentro. Que é um pouco o que aconteceu com essa sequência que a gente falou aqui, da Prỳrê, da esposa do Ropoxêt, porque aquilo escapou para dentro. A gente só sabia que queria muito a Prỳrê porque a gente a conhece e sabe que ela é uma das mulheres mais reivindicativas que, quando vai o político, o deputado, o caça-voto, o carro da saúde na aldeia, ela é a primeira a pôr o dedo na cara deles. Então, a gente pensou em trazer essa potência do enfrentamento para o filme. Mas a gente não sabia o que ela ia falar. A gente sabia qual era o posicionamento dela perante o roubo de arara, pois isso é inegociável, mas o que é que ela vai falar na hora, a gente não sabia... Também tem essa questão da língua enquanto transmissão de um sentido. Mas essa sequência, mesmo sem subtítulos, ela é igualmente potente. A gente, na edição, foi mostrando para um ou outro amigo em São Paulo e em Lisboa, e a galera entendia: essa mulher está falando uma coisa muito foda que eu não sei o que é, mas a potência do gesto e da palavra transcende a semântica. Então, tem muitos momentos no filme em que as coisas que escapam à direção, elas escapam justamente para dentro do filme. Então, é muito bonito ver também como o filme pode ser uma espécie de cofo, que vai recolhendo coisas que não estão escritas.

E muitas vezes, por exemplo, nas sequências em que filmamos rituais, ou sequências mais domésticas, em que passa alguém, ou que alguém chama o ator e ele olha, por exemplo, um detalhe super simples, quando a Patpro e a Jotàt, a filha, as duas estão conversando no mato num momento muito íntimo e passa um pássaro que vai para uma árvore e grita, elas realmente param a performance. Elas interrompem a performance do filme para olhar o pássaro e depois voltam. Não estava escrito isso, obviamente, mas o tempo passado ali permite que pequenos milagres do cinema como esse possam estar no filme.

Sobre a segunda parte da questão, quer falar? 

Renée: Eu penso que a gente tem uma necessidade, que é muito do cupê, do não indígena, de organizar. Então, toda tentativa de desorganização é talhada, inconscientemente. Eu vejo, por exemplo, a luta que foi na montagem. Porque, na verdade, esse filme é passível de muitas montagens. A gente começou pelo final e, quando viu, o começo foi para o fim. A gente fez isso mil vezes com vários blocos! Testamos: A GRIN entra no começo? Não! Vai para o final! Assim, até a gente encontrar essa dinâmica. E acho que tudo vem desse lugar, de uma tentativa violenta de organização, de tentar traduzir. É, no fundo, é também uma tentativa de tradução, de saber que a gente está produzindo, fazendo, construindo, tentando dar conta de uma história que, se a gente não se esforçar muito para organizar, o pessoal na aldeia talvez entenda, mas para fora isso vai ser outra coisa. E tem um lugar do nosso compromisso de tentar passar para fora uma coisa que seja justa e com a qual os Krahô se sintam confortáveis sabendo que, se um dia eles forem viajar não sei para onde, o público vai entender o que estão mostrando.

A gente teve várias questões com eles nesse roce entre a nossa vontade e a vontade deles. E eu acredito que a organização vem muito também nesse esforço de encontrar um lugar no meio. Eu não sei se a gente consegue realmente. A gente sabe que consegue para fora. Para dentro, eu penso que a gente ainda precisa trabalhar mais.

Ana: Deixa eu perguntar uma coisa para vocês. É uma curiosidade que me surgiu agora. Na direção, como era isso? Sei que vocês estão lá há muito tempo – já devem saber bem o contexto do que está sendo falado –, mas como é que é esse processo mais fino da direção com eles? Se tem alguém junto ou não?

Renée: Cada sequência tem o seu jeito, né? O seu jeitinho.

João: Por exemplo, quando a gente filma com crianças, sempre vinha o Ihjãc, ou a Patpro, ou o Raj, uma pessoa que não esteve envolvido no filme, mas que acompanhava e que, de alguma forma, ia provocando, para tentar transformar o momento de filmar numa coisa lúdica e que fizesse sentido para eles também, que fossem brincadeiras ou pequenos jogos de cena, que não fossem muito extemporâneos ao que é o cotidiano de uma criança krahô. Agora, nas sequências que a gente filma mais íntimas, ou com o Hyjnõ, ou com a Patpro, muitas vezes estamos só nós e o protagonista dessa sequência. A sequência em Itacajá, que a gente filma com o Hyjnõ, com a Patpro, com a Kôtô, quando eles vão antes da viagem para Brasília, foi isso: foram várias noites ali em casa da Débora, uma amiga nossa que estava morando em Itacajá naquele ano. A gente trabalha primeiro a performatividade, então, eu vou dar um exemplo: o Hyjnõ curando a Jotàt em Itacajá, que é uma sequência polêmica também para os Krahô, tem pajés que dizem que não é assim que se faz, que está tudo errado...

Renée: Desculpa te cortar, mas é porque é importante. Eu acho massa isso... Essa pajelança que ele fez nessa cena, ela não existe. E a gente não interviu – ele fez o que ele quis fazer e fez do jeito que ele quis fazer. E, claro, os outros mẽhĩ que viram falaram: "não, essa pajelança não existe. Por que ele fez assim? Isso não existe". E eu fiquei pensando até que ponto a ficção não serve também de escudo. Ele mostra, só que ele não mostra tudo, ou ele mostra o que ele quer mostrar, ou ele mostra do jeito que ele quer. Porque os únicos que podem falar que aquela pajelança não existe são os próprios Krahô. Desculpa, só queria falar isso.

João: Imagina. Mas falando dessa pergunta, como que funciona filmar? Então, normalmente, a gente trabalha a partir de um jogo de cena. Como seria isso? A gente conversa. A gente diz, por exemplo: "nesse momento, vocês estão indo para a Brasília. Como é que é? Você acha que é de dia, de noite... Como seria isso? Eu vi que da última vez que você foi para Brasília, você dormiu em casa de um amigo em Itacajá, mas da outra vez você pegou o carro da FUNAI e saiu cedo". E eles dizem: "Não, não, é de noite, a gente vai, toma uma em casa da nossa amiga, fica trocando ideia, fumando cigarro e vai no outro dia". Então, tá, é uma sequência noturna – já temos aqui uma premissa. Vamos trabalhando a partir daí até o momento que a gente enquadra e aí sim começa um pouco um jogo mais tenso realmente, em que tem uma dialética, um embate do que a gente espera, do que eles conseguem dar para a cena. Coisas, às vezes, muito simples da gente explicar, tipo: "Hyjnõ você está a dizer uma coisa muito importante no filme, então, se você se coça e olha para a câmara e sobe e desce, você está um pouco poluindo o seu discurso". O exemplo da festa é uma coisa que muitas vezes a gente utiliza para equiparar o cinema, a produção do cinema, como um ritual, que tem sua organização, sua estética, suas estéticas. E eles entendem isso a partir dessa equiparação com a festa, como você encher a cara em casa é uma coisa, e encher a cara quando você é o mestre de cerimônias de uma festa não dá. Então, tem muito essa analogia com a produção da festa enquanto uma produção estética e o filme também. Claro que a gente, agora, tendo já feito Chuva, e todo mundo tendo visto o Chuva, eu penso que houve um salto enorme nesse diálogo. Ficou muito mais fácil. Hoje, todo mundo entende inclusive a amplitude que o filme pode ter. Antes, o Hyjnõ não tinha claro isso para ele. Tipo, vai que o filme passa em São Paulo, vai que o filme passa na Itália e ele vai para a Itália – e hoje ele pensa sobre essa possibilidade. Então tem também essa apropriação, que eu acho que é muito massa, que eles fazem do filme como um objeto de mediação para coisas que não têm nada a ver com cinema.

Renée: Estabelecer alianças.

João: Estabelecer alianças. Porque eles chegam em qualquer festival de cinema, seja na Mostra de São Paulo, ou no forumdoc, ou até em Cannes, e eles estão buscando aliados. Eles não estão minimamente preocupados se o filme vai ter o prêmio e tal – eles estão buscando potenciais aliados. Então, tem também esse lado que é como o filme é apropriado e usado como um mecanismo para outras demandas que estão no filme também.

Renata: Eu acabei de assistir ao filme e estou muito impactada. Achei o filme muito forte, muito interessante, muito rico. Ele funcionou pra mim realmente como um mito, porque ele é cheio de camadas. Isso vai um pouco ao encontro do que vocês estão falando, sobre o caráter coletivo da elaboração dele. Por exemplo, eu fiquei bastante impactada, claro, com a história do massacre e com a forma como ela foi contada. Foi muito difícil para eu ver; eu até dei uma pausa naquele momento. Isso, de forma alguma, contraria a beleza do filme. Mas a questão que eu gostaria de fazer, ainda mais agora, escutando vocês falarem... Me voltou a sensação de que esse é um filme deslocado em relação ao filme anterior de vocês, muito em função de uma rotação de perspectiva de gênero. E acredito que isso tem a ver com essa demanda de construir um filme sobre a terra e o território. Mas, além dessa questão da terra e da ligação feminina com a terra, tem também essas coisas dificílimas de serem tocadas, tipo o parto, o nascimento, o acontecimento que começa e termina o filme. Essa força do roteiro amarrado aparece nisso também, mas achei maravilhoso, porque não tem jeito de negar que terminar com o nascimento é uma resposta de esperança, depois daquele massacre. Enfim, queria que vocês comentassem sobre essa questão de como apareceu essa perspectiva feminina para vocês no meio de tantas outras coisas. Se é isso mesmo, para vocês, para eles, para elas... Como é que foi isso?

Renée: Eu penso que era um momento assim. A gente vê muito como as mulheres ficam numa perspectiva secundária. Bom, obviamente, a gente tem uma espécie de patriarcado que atravessa também o nosso próprio olhar para as comunidades indígenas, mas, quando a gente começa a olhar com atenção, a gente vê que são precisamente as mulheres que estão segurando aquilo. E nas comunidades onde a gente trabalha, nesse filme – foram quatro aldeias –, era muito claro isso, como as mulheres estavam realmente mobilizadas... Porque tem um tipo de politicidade que elas trabalham no dia a dia, nas suas relações, que é invisível. A gente sempre leu essa balela que o pátio tem o centro, onde é o lugar dos homens, e tem as casas, que é a periferia da comunidade, onde ficam as mulheres. Só que é nessa periferia que a gente começou a perceber que era onde tudo acontecia, porque quando os homens iam para o pátio, eles iam depois de ter ouvido a esposa, a sogra e as irmãs da esposa descascando e falando tudo o que ele tinha que levar para o pátio. Mas é um entendimento que demora para você ter, porque, à primeira vista, você vê a reunião de manhã no pátio da aldeia e são só os homens que participam. As mulheres estão lá na periferia, tramando entre elas, mas a gente não entende, a gente demora para entender isso. E eu acho que outra lição que tem a ver com isso é como o movimento indígena foi sendo ocupado pelas mulheres. Até essa coisa com a Sônia Guajajara, e a gente viu isso repetido em outras comunidades também, onde amigos trabalham. E a gente fala muito sobre isso. Então eu vejo que o filme também tinha essa questão. Era preciso dar conta dessa realidade para fora.

E agora foi muito engraçado, porque eu fui para um festival em Bogotá mostrar o filme e a primeira pergunta que me fizeram foi "o filme é muito bonito, é forte, mas eu quero saber uma coisa, por que você faz tanta questão de mostrar essas mulheres na frente da luta? A gente sabe que não é assim". Ele achou muito esquisito. Ele achou o filme tão realista, mas tinha esse aspecto que, para ele, não era nada realista: estarem as mulheres na frente da luta. E foi muito massa, porque quando eu falei com ele "não, veja bem, essa mulher agora é ministra, ela era a maior liderança da Articulação dos Povos Indígenas”, eu expliquei um pouco, aí ele falou: "nossa, meu Deus, que incrível, porque nunca tinha visto assim na Colômbia". Eu sinto que essa face do filme é muito visível e é muito importante dar conta dela, porque realmente eu também participo nesse lugar.

João: Eu penso que, além de um lado de uma consciência de querer filmar a partir dessa perspectiva feminina, tem um lado que são os afetos. E a gente filmar com as pessoas mais próximas. Então, a Patpro realmente é a pessoa mais próxima de nós, é a mulher que deu o nome para a Renée na aldeia – ela é a mais próxima de nós desde sempre. A casa dela é onde a gente sempre fica, que é a pessoa mais importante, talvez a maior amizade que nós temos na comunidade. Então, há também esse gesto que parte de uma afinidade profunda. Mas uma coisa que nos fez pensar e que é uma pergunta que o processo nos devolve sempre, eu acredito que na antropologia, quem faz etnologia também passa por isso, eu falo com todo o cuidado, de meros cineastas, que não têm formação académica, mas a gente vê um pouco em todas as etnografias na história da antropologia como são homens falando com homens. Isso eu acho que atravessa toda a produção, 99% da produção antropológica do século XX. São homens dialogando com homens. O antropólogo falando com o interlocutor. E a gente vê um caso muito específico, mas que eu considero muito paradigmático no mito de Aukê. Não sei se vocês sabem que é o mito do primeiro homem branco, segundo os Krahô, que o Roberto DaMatta tem o texto que fala que é o anti-mito. Tem uma recolha mais antiga feita pelo Harold Schultz desse mesmo mito. Basicamente há três recolhas desse mito que viraram meio canonizadas e até hoje tem teses produzidas na academia se referindo sempre a essas três mesmas versões do mito. Eu não entendo porquê isso acontece ainda. Porque é só você ligar para a aldeia e falar “oh, pessoal, alguém me conta o mito, por favor?” e você vai ter mais dez versões atuais do mito. Então, sempre me questiono porque é que a gente se refere a uma versão cristalizada que um alemão nos anos 1940 guardou do mito. E tem um momento no mito em que o Aukê [o protagonista do mito] oferece a escolha: vocês querem escolher a espingarda ou o arco e flecha, dando essa possibilidade de os Krahô virarem cupê, virarem branco, ou não. E eu um dia estou conversando com a Renée sobre o mito, e a gente pensou alguma forma de incluir o Aukê ou alguns mitemas do Aukê dentro do filme e acabou que estávamos enfrentando essa ideia. E do lado estava a ĩxê² da Renée, a mãe da Patpro. Ela ouve a história e fala: “não, não é assim, Aukê deu o arco e a flecha ou a espingarda e também deu, como possibilidade, a panela ou o cofo”. E a gente nunca tinha escutado essa versão. Então, entendemos que a versão contada por uma mulher é outra. Remete lá para a teoria do cesto da Ursula Le Guin. A alternativa do mito pode ser entre a panela e o cofo. O cofo tradicional, que era feito com palha de buriti, e a panela de ferro. E a gente pensa como essa interlocução, feita quase exclusivamente por homens, ela foi condicionando um jeito, inclusivamente um jeito de pensar e de produzir e de escrever e de formar alianças também, que eu ainda sinto, que num plano institucional, as alianças entre indígenas e não indígenas, ou entre organizações indígenas e não indígenas, elas ainda operam muito num terreno dentro de uma lógica masculina, patriarcal. E, de repente, a gente filmando, se depara com isso muitas vezes. 

Então, a sequência do parto, voltando ao que você falou, Renata, foi muito lindo, porque a gente sabia. Era das poucas coisas que a gente sabia que queria que sobrevivessem a tudo que foi esse um ano e meio de filmagem. Terminar com quase uma coisa mítica, terminar com uma criança nascendo e lançar essa potência de um guerreiro, mais um índio povoando aquela terra. Eles falam muito, tem quase uma ideologia demográfica: “A gente precisa de mais ​​mẽhĩ, precisa de mais mẽhĩ”. Eles vão em Palmas, em São Paulo – ficam espantadíssimos: “tem muito branco, vocês são muito mais numerosos do que a gente imagina! Então precisamos ter mais filhos aqui”. Então a gente tinha muito essa intenção. E a gente ficou muito tempo esperando alguma menina próxima, grávida, que a gente pudesse filmar um parto. A gente sempre esperava, ainda achando que talvez fizesse sentido filmar um parto de uma forma documental, mas com muitas dúvidas sobre o que é que isso implica. E realmente nos demos conta de que não seria o caminho. Então, esse parto, enfim, foi filmado. Na verdade, esse parto é uma reencenação de um parto que aconteceu dois dias antes. A gente estava dormindo no fim da rodagem e a gente escuta um auê. Era madrugada, várias mulheres correndo, a gente meio dormindo se pergunta: o que é isso, o que é que está rolando? E na casa do lado da nossa tinha uma menina parindo. E ela pariu. Duas horas depois, chegou o carro da SESAI e levou ela para a cidade, ela foi lá fazer os exames e voltou. E aí a Patpro falou: “não, agora a gente vai filmar o parto!”. A Patpro, protagonista do filme. A gente falou: “o parto já foi!”. Ela: “Não, a gente vai reencenar esse parto, vamos filmar de novo, vamos chamar toda a mulherada que estava no parto. Vamos filmar o parto com o neném! Tem que ter o parto, tem que ter o parto! Vamos lá! É o craré³, é o neném nascendo!” E fomos filmar o parto. E elas falaram: "bom, a única condição, obviamente, o João não vai entrar nesse parto. Vai Renée sozinha filmar". E essa interlocução foi permitida pela amizade da Renée com a Patpro e com elas. E, obviamente, pela ausência do homem, como é absolutamente compreensível. Então essa ideia de que é uma família filmando outras famílias ali, eu acredito que também amplifica muito a potência, não só da nossa relação com os Krahô, como do nosso trabalho. Porque também a Mira [filha de Renée e João] foi quem abriu a nossa relação com o mundo das crianças, que era um mundo inacessível para mim e para a Renée, antes da presença dela. Talvez um dos poucos âmbitos da comunidade que não nos era acessível antes, porque as crianças pensavam: quem são esses dois velhos? Você, com 30 anos, sem filho ainda! É um velho falhado, né? Por que é que você não tem um filho? É uma coisa inconcebível para um Krahô – algum problema você deve ter. De repente, quando a gente, há cinco anos atrás, começa a ir para a aldeia com a Mira, e ela é batizada, ganha nome, a gente, nesses 15 meses, ficou banhando. A gente saía para ir no rio com a Mira banhar e as crianças todas das casas ali do lado, menorzinhas, que ainda não têm autorização para ir sozinhas no rio, vinham comigo. De repente, a Mira também abriu o seu mundinho de afetos, e foi com essas crianças que a gente acabou filmando. Então, eu insisto muito nessa questão, muito pragmática, de que o nosso filme é também a consequência de relações de amizade muito específicas. E tem algumas coisas no filme que podem parecer um pouco, não sei se programáticas, mas pensando um pouco em termos de qual é a discursividade desse filme, que é que ele está trazendo, muitas vezes, penso que é a da simples materialização de uma relação.

Daniel: Eu perguntaria também o porquê dessa questão de levar a luta para o centro da política, para Brasília, através da Patpro e do Hyjnõ, sendo a Patpro quem puxa mais a luta e permite que vocês também estivessem lá, não só nesse momento, em Brasília, aparentemente é o ATL...

Renée: Era votação do Marco Temporal. As sequências em Brasília foram feitas na votação do Marco Temporal, nas duas viagens que a gente fez para fazer a sequência. Porque tem uma diferença de um mês nos dois movimentos. Mas era a votação do Marco Temporal pelo STF, não era o ATL. Mas tinha muita gente. O ATL é realizado em abril. A gente foi em agosto, setembro.

Daniel: O que me chama a atenção é que essa luta, ela está encenada na própria terra. Essa luta, que é um entrelaçamento de uma luta espiritual com uma luta política, está ali na própria terra. E tem outra luta quando eles vão em direção à Brasília com a expectativa de se colocar ali, numa luta que se reúna à luta dos povos indígenas, a muitos povos indígenas, que sofrem situações semelhantes. E aí tem a inclusão de alguns vídeos do YouTube, vistos pelo celular na aldeia, tem a Sônia Guajajara, tem outras lideranças que estão lá em Brasília falando. E também tem certos elementos do filme – por exemplo, a introdução de duas músicas, “Carcará” e “Funeral de um Lavrador”, que são músicas que vêm do universo completamente externo, mas que eu imaginei que fossem também vocês colocando um pouco essa tonalidade. De certa maneira, é um filme que também se põe à disposição para ser um filme de protesto. Não sei, eu queria entender como vocês pensam o filme a partir dessa questão política. Como que eles se utilizam do filme politicamente, e como que vocês também trazem alguma coisa de uma tradição do cinema político?

Renata: Eu também fiquei reparando em várias coisas que parecem ir nesse sentido. Por exemplo, a personagem da professora negra, a professora negra de um outro lugar que se instala naquela cidade ali, ou aquela história do professor que foi um dia levar seus alunos brancos para conhecer a aldeia. Todas essas coisas que pareciam inserções do mundo de vocês, do nosso mundo, do mundo branco, mas do branco que está entrando em aliança com os Krahô. O branco visto pela aliança, uma vez mais constituída, com aqueles brancos, que não são tão brancos, quase todos pretos, do lugar, que aparece também no filme. 

João: Eu acho que tem um lado... A gente sempre fala, e queremos deixar muito claro que esse é um filme feito com os Krahô, mas com uma presença nossa. Não é um filme "krahô", de certa forma. Não é como um filme do Isael Maxakali, que é um filme maxakali, pensado nos termos indígenas pelo Isael, pela Suely. Por outro lado, também não é como algum cinema feito hoje, que eu vejo que às vezes tem uma coisa um pouco estratégica de diretores brancos que se aliam com diretores indígenas, ou umas colaborações que cumprem ali todos os cânones certos em que explicitamente exibem codireção, corroteiro, co-não-sei-o-quê. Mas terminam por serem uns filmes que eu acredito que, de fato, não têm uma – não falo nem em colaboração nos termos do trabalho mesmo –, não têm realmente um encontro verdadeiro. Eu acredito que isso funciona muito para os Estados Unidos e para a Europa e tal. Você põe lá os nomezinhos todos certinhos, “ah, foi um filme colaborativo, que bonito!”, mas depois as imagens não respiram ou não transpiram esse encontro. E isso é uma das poucas crenças que eu tenho nos nossos filmes. Desde o Chuva, com todos os acertos e com todos os equívocos dele, eu vejo um encontro no filme. Eu sei que esse encontro está lá, está nas imagens mais que tudo. Eu acho que a gente não esconde nossa presença. Então, eu penso que a utilização dessas músicas do “Carcará”, do “Funeral do Lavrador”, da Zélia Barbosa...

Renée: e a personagem da Débora – a Débora, ela é também nossa presença ali.

João: Sim, ela é essa mulher que estava morando ali. Ela que ficou nossa amiga, e a Patpro e outras mulheres começaram a frequentar a casa dela no ano que a gente filmou. E ela namorou com o amigo nosso, também desse grupo que passa muito tempo lá e que colaborou também com o Mentuwajê.⁴ E ela foi morar um ano em Itacajá e acabou por estabelecer essa relação conosco. Então, de algum modo, se afirma um pouco essa nossa presença no filme. Mas se afirma também a ideia de que os Krahô buscam, eles mesmos, esse encontro. Buscam estrategicamente, mas também afetivamente. Não é só uma relação cínica, como às vezes a gente acha: “ah, os Krahô estão pacificando o branco, estão só instrumentalizando a relação”. Eu acho que é isso também, que é muito disso, mas também há um espaço para uma amizade real entre as pessoas. A gente, às vezes, esquece um pouco que, além das nossas diferenças radicais, tem amizade e amor, e conflito, e tem afeto. Nem sempre, mas tem também afeto. Não com todo mundo, obviamente...

Mas eu penso que o equilíbrio difícil é a velha questão de como fazer um cinema político, que não seja um cinema feito para aqueles que já estão convertidos ao nosso posicionamento político. Como fazer diferente do tipo testemunhas de Jeová, que, com aqueles papeizinhos que eles distribuem, só convertem os já convertidos? A gente acaba dialogando muito num universo fechado, que é dos nossos amigos indigenistas e dos nossos amigos Krahô. E às vezes isso é difícil, porque – pensando assim em termos marxistas – tem a tese, mas nunca tem a antítese. Estamos todos mais ou menos de acordo nas coisas que a gente pensa, sobre como as coisas devem ser. Tem vários consensos aqui, para a gente que trabalha com indígenas. Mas é muito curioso que, nas vezes em que o filme foi mostrado na Europa, como agora, a gente sacou que a parte de Brasília é a parte que os europeus menos querem ver. Eles dizem: “ah é muito lindo, mas ver Brasília, a cidade, o celular, me cortou”. E no Brasil, e mesmo aqui na Argentina, para muita gente, é a sequência que a galera mais vibra. É muito louco! Você entende um pouco que essa construção do indígena na floresta, tendo delírios tropicais de ordens xamânicas, vinte e quatro horas por dia, ainda é a imagem que é esperada por um público europeu, mesmo o público engajado, digamos assim. E a gente sente que o bloco de Brasília, ele realmente traz uma outra coisa para o filme.

Mas eu acho que os momentos mais políticos do filme nem são em Brasília. Eu penso que em Brasília eu gostaria de ter ido mais, e filmar mais e ter mais ficção em Brasília, inclusive. Eu ainda sinto que aquelas sequências operam mais no lugar do registro, e não no lugar de gerar essa tensão pela produção de uma realidade cinematográfica que o resto do filme produz. Embora eu ache que seja fundamental existir esse momento no filme. De alguma forma, aquele plano que abre Brasília é uma espécie de “somos todos ribeirinhos, todos corpos confluindo num rio principal”... É uma espécie de imagem representativa do pan-indigenismo, se é que dá para usar esse termo hoje. São todos os indígenas de todas as partes do Brasil chegando nesse centro político e geográfico, nesse pátio da política institucional. E de alguma forma não tinha como não filmar Brasília num filme filmado em 2019, 2020 e 2021. Mas eu acho que quando a gente pensa no que é um cinema político, muitas vezes a política está na politicidade sobre a qual a Renée falava. Eu acredito que as meninas andando pelo mato é um movimento político. Para mim, o momento mais poderosamente político do filme é o parto, que é um trabalho coletivo de produção de um novo ser. Eu não consigo conceber algo mais radicalmente, violentamente, político no mundo, na vida, do que um grupo de mulheres parindo juntas. Todo mundo ali está parindo. E esse para mim é o momento mais político do filme. E eu acredito que se viesse censura, se um dia rasgassem todo o filme, jogassem tudo no lixo, eu rezava para que esse momento sobrevivesse. 

Ana: É o parto de um guerreiro que aquela música [no final do filme] vem trazendo junto. É, claro, de uma maneira fabulosa.

Renée: E aquela música foi encontrada bem depois. Ela foi sugerida pelo Ihjãc. E a gente não a conhecia. E muito pouca gente conhecia aquela música. Então, casou perfeitamente para o filme. 

Renata: E essa música diz “chama mais um”... De uma certa forma, ela também remete ao mito do Aukê, porque é uma aliança que está sendo reivindicada ali. “Mais um” é o chamado do outro. Sempre precisa de dois. 

João: Porque o um é ausência de relação...

Ana: Eu só queria retomar essa questão que você trouxe do filme como um mito. Eu acho muito bonito como o filme é construído, e se vê como essa outra organização – eu tinha falado de uma desorganização –, mas como essa outra organização se manifesta. Essa temporalidade, essas temporalidades se organizam no filme. Vocês trabalham com o registro de um acontecimento ali no massacre, o registro do sonho e o registro mítico mesmo. E como isso vai se embrenhando em várias camadas. Isso é tão próprio dessa, entre aspas, agora, desorganização, desses outros mundos, desse pensamento outro. As escolhas que foram feitas por vocês, junto com eles, e por vocês na direção, da forma como essas temporalidades se organizam no filme, achei muito acertado, muito preciso.

Renée: Eu sinto que essa coisa do mito é onde a gente consegue de alguma forma se aproximar ao pensamento, da forma de fazer, da forma de olhar krahô. A gente sempre tentou que o mito estivesse presente e eu vejo que tem muito por extrapolar ainda essa ideia, porque eu acredito que a gente só esbarrou nele nesse filme. Eu acho que, se tiver um próximo filme, ele vai ter que explodir essa relação com o mito – tem que surgir outra coisa, outra imagem... Porque eu acho que é o único lugar que a gente consegue se aproximar um pouco mais é através do mito.

Renata: Dos mitos, das versões, que é o pensamento selvagem. Porque ele também não fica só na estrutura do pensamento abstrato. É aquilo que aparece por meio das relações concretas, quando são as coisas que se apresentam. Não seria possível trazer o mito sem aquela rocha e os meninos realmente ali ao pé dela...

João: É, exatamente.

Renata: Também naquela caça da espera, no xamanismo da menina, dela se colocar no alto da árvore, que é um outro lugar do desaninhador, porque não está mais presa no alto de uma rocha, mas na árvore, esperando a presa, mirando o boi, o avatar do invasor, o boi que vai destruir tudo, uma outra onça. Acho que vocês realizaram coisas muito expressivas, que cativam a gente aos poucos e repetidamente. Outro exemplo, é aquele close na garota, que está totalmente fascinada e aturdida, vidrada, no desenrolar do parto. E agora vocês ainda estão falando que era uma recriação. Esse tipo de coisa faz a gente voltar a muitas páginas de etnografias. Como se elas fossem um filme – estou pensando no livro do Pierre Clastres, que começa com o parto...

João: Quando rolou isso, a gente lembrava desse momento. O Pierre Clastres relatando que acorda de noite e ele perde o parto também, né?

Renata: Na verdade, ele chega, mas quase perdeu.

João: É, exato. Quase perde o parto. A gente perdeu.

Ana: Enfim, eu fico pensando o que vai ser um terceiro filme. E o quarto... E, depois, nessa trajetória de vocês com eles. Acho que as coisas vão se elevando a uma potência muito grande, que diz dessa aliança, desse tempo, sobretudo dessa continuidade no tempo que faz toda a diferença nesse cinema. Enfim, é um chão para atravessar e trabalhar, trabalhar...

Renée: Sim. Acho que tem uma coisa sobre a qual a gente fala pouco, que é sobre o fato de que, além dessa aliança de cinema, tem a aliança da vida, das lutas. A gente passou por muitas coisas, já na aldeia, que não têm nada a ver com o cinema. Eu acredito que talvez exista um lugar onde essas alianças até se sobrepõem à aliança do cinema. Talvez, para muita gente ali, elas são muito mais importantes do que a aliança do cinema. Você poder estar presente, apoiando uma comunidade em vários tipos de enfrentamentos. Eles têm esse entendimento de como é importante, de como a gente também cumpre esse papel. E durante a feitura desse filme, com a pandemia, a gente passava boa parte do tempo fazendo documento para o Ministério Público. Então, acho que essas duas formas, esses dois lugares da nossa relação, se retroalimentam. Uma coisa não é separada da outra.

João: Realmente, os filmes são um lado, talvez mais visível, da nossa relação com os Krahô. Mas ela ocorre em tantos outros, vocês sabem. Vocês também passam por isso – a relação se dá em todos os outros âmbitos que não necessariamente estão nos filmes... São tantas relações que os Krahô esperam dos aliados cupê que eles ocupem pelo menos um lugar positivo na relação para fora com o mundo branco. Às vezes você é uma espécie de escudo, outras vezes você é uma espécie de lança – vai ali na frente e você vai ocupando esse lugar por demanda, até por imposição ou obrigação. 

Renée: E eu penso que não tem outra forma de filmar na aldeia: se você não aceita o pacote completo, eu não acho que é possível. Talvez seja com dinheiro. Você vai jogando um monte de dinheiro na aldeia e vai fazendo o que você quer. Eu já vi isso acontecer, inclusive lá nos Krahô. Mas você vê os filmes e são filmes que já não valem nada.

João: Mas tem um lado também, que demora muitos anos pra você aceitar. É que essa tal aliança, ela nunca será uma relação harmoniosa. Não é harmoniosa. Não tem como ser. Ela é tensa. Ela é conflitiva em alguns momentos. Ela exige, em muitos momentos, que você participe de coisas das quais você não está muito convicto, mas você acaba por ser impelido por algumas circunstâncias e você pensa “poxa, será que é isso mesmo? Mas, bom, bora”. E se arrepende. Outras vezes você fala: “que bom que a gente fez isso!”. É a relação real. Não teria como ser diferente. Muitas vezes, você aceita que o seu trabalho, no cinema, e à parte do cinema, não é harmonioso, não fecha. Não tem uma fórmula que um dia você fala: “bom, achei o jeito certo de trabalhar numa comunidade indígena, de me associar com a associação, de fazer filme, de pegar a grana do projeto da Secretaria de Cultura de Palmas para fazer não sei o quê”. Então, é tenso. A relação, ela é tensa, não fecha nunca.

Renata: Eu acho que pude ver essa coisa meio tensa, que não se quita, essa coisa de um único branco já carregar consigo o mundo dele inteiro, mesmo depois de tanta circulação, tanta troca, tanta aliança e tanta guerra – tem coisas que continuam emblemáticas do mundo dos brancos. Como naquela cena do banho, quando a mãe e a filha estão naquele paraíso de igarapé, com aquela água limpíssima e vem o sabão, e uma delas até comenta sobre o cheiro do sabão. Porque o sabão é tipo veneno, ou remédio, essas coisas que entram e são muito eloquentes da nossa invasão. Achei muito rico vocês focalizarem esses detalhes e, por meio deles, darem a ver a materialidade das relações. Mas também, retomando as versões dos mitos, tem uma que repercute justamente o nome do filme, que menciona a história da antiga pajé, e que é considerada mais forte que os pajés homens. Então eu achei esse passo muito atual e importante, encarnar a perspectiva feminina das histórias, e também da luta.

Daniel: E o filme vai estar num seminário – a gente vai conversar muito mais sobre tudo isso. A gente acabou de definir o nome do seminário. Vai ser “A Câmera é a Flecha”.

Renée: A Câmera é o Cofo! Na perspectiva feminina!

Daniel: O interessante é isso de como a câmera nunca é a câmera, porque o Alberto Alvares definiu a câmera como o petyngua, que é o cachimbo guarani, e agora vocês estão falando que a câmera é o cofo e tem A câmera é a flecha, do Takumã Kuikuro. Então a câmera dos cinemas indígenas é sempre alguma coisa outra.

Renée: É o mecarõ krahô. É o espírito!

Notas

[1] Cupē Te Mē Iquêtjê Jipej Catêjê / Homem branco massacrou o meu Povo Krahô (2023) Direção de Francisco Hýjnõ Krahô e Felipe Kometani Melo.

[2]Mãe.

[3]Criança.

[4] Mentuwajê Guardiões da Cultura, coletivo audiovisual krahô da Aldeia Pedra Branca.