A Escola e a Câmera

O Programa de Extensão forumdoc.ufmg da Faculdade de Educação e da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFMG) apresenta, dentro da programação geral do forumdoc.bh, a mostra/seminário “A escola e a câmera” dando continuidade a mais uma atividade de extensão – fórum de filmes e debates, este, em torno de conexões parciais entre fotografia, cinema e educação.

O audiovisual constitui-se em um dos mais potentes modos de expressão cultural e ideológica da sociedade contemporânea. A relação entre cinema e educação, entre cinema e escola, seja no contexto da educação escolar ou da educação informal, é parte da própria história do cinema. Desde as primeiras produções cinematográficas, produtores e diretores de cinema o consideravam como uma poderosa ferramenta para instrução, educação e reflexão humanas, cabendo ressaltar que a relação entre cinema e conhecimento excede o campo da educação formal.

Considerando-se a variedade de saberes apresentados nos filmes e em suas práticas de realização, é possível transcender a simples utilização do cinema como estímulo audiovisual ou como uma representação da realidade. Deve-se trazer para o campo da educação e da didática a reflexão e a investigação sobre como os filmes, as imagens e os estímulos audiovisuais educam as pessoas e influenciam suas capacidades de reflexão e, sobretudo, ação no mundo. Para isso deve-se partir de um enfoque não apenas estético, mas também sociocultural, para se construir uma didática que identifique e discuta as questões que envolvem produções culturais como o cinema. A utilização do cinema como veículo e ferramenta de ensino-aprendizagem possibilita enfocar os aspectos culturais, históricos, literários e políticos, proporcionando uma visão integral do cinema enquanto mídia educativa, tal qual um “fato social total”, na fórmula maussiana.

A inserção de novas estratégias de desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem é primordial para a inovação pedagógica e a adequação às mudanças sociais com a finalidade de proporcionar uma formação integral aos estudantes. Nesse contexto, o cinema se torna uma ferramenta educativa potente ao constituir-se em um meio de contribuição para a mudança social.

A mostra-seminário “A escola e a câmera” foi estruturada em dois eixos: o primeiro, dedicado a uma pequena, mas não menos importante, curadoria de filmes consagrados que, de formas diferentes, atravessam aquela, que não é senão uma das principais instituições sociais criadas pelo homem, a saber, as instituições de ensino.

Dos sete filmes que compõem essa curadoria, o mais antigo é o marcante Zero de Conduta (1933) do legendário Jean Vigo, dono de uma filmografia que se constitui como uma máquina de guerra contra a convenção cinematográfica, atitude análoga aos atos de rebelião e leituras libertárias de jovens estudantes franceses diante de um sistema educacional repressor que o filme resgata não sem algum heroísmo infantil.

A pirâmide humana (1959), de Jean Rouch, que também faz parte da mostra, é outro filme não- convencional sobre o ambiente escolar. Rotulado de “psico-drama”, Rouch convidou um grupo de alunos, negros e brancos, de um liceu em Abidjan (Costa do Marfim) para atuarem em um filme de “ficção real” que, ao invés de refletir a realidade, se propunha a criar uma outra realidade mediada pelo aparato cinematográfico. Nas palavras de Rouch, “este filme trata da difícil amizade entre brancos e negros”, sendo, portanto, e ao seu modo, um filme-libelo contra o racismo.

Do cinema direto americano e canadense¹, não poderiam faltar dois filmes seminais sobre o tema, High-School (1968), de Frederick Wiseman, e Elogio ao Chiac (1969), de Michel Brault.

Ambos os filmes, inaugurais no uso do som direto, se passam dentro de instituições formais de ensino; o primeiro, em uma escola secundária na área urbana da Filadélfia, nos EUA, e o segundo, em uma escola francesa na cidade de Moncton, no Canadá.

Frederick Wiseman – que conta com três filmes na programação geral do forumdoc.bh.2014, inclusive na Competitiva Internacional! – é reconhecido como, nas palavras de Tiago Mata Machado, cúmplice-delator das instituições americanas. Sobre High-School, Mata Machado resume com agudeza — um filme sobre “moldar, disciplinar e constranger a juventude” e, assim, continua em artigo exemplar:

Do primeiro [Titicut Folies (1967)] para o segundo filme [High-School (1968)] de Wiseman, ficamos, afinal, com a seguinte constatação. Não é que a sociedade disci- plinar destrua os indivíduos, ela antes os fabrica. [...] A carta do jovem voluntário [em High-School] é dos gestos simbólicos mais fortes da obra de Wiseman: ele sinaliza aquele ponto paradoxal em que o pertencimento a uma sociedade implica abraçar voluntariamente, como se uma escola nossa fosse, o que de todo modo nos seria imposto – amar nosso país, nossos pais, nossos professores, nossa religião... fingir que há uma escolha livre onde efetivamente não há, gesto primordial da vida em sociedade.

Quando essa aparência de liberdade se desintegra – aparência, de resto, especialmente cultivada pela sociedade americana – é o próprio vinculo social que se dissolve. É assim que High-School, à primeira vista uma das obras mais inofensivas e “institucionais” de Wiseman, termina por se afirmar, no último corte, como um dos trabalhos mais políticos do cineasta. (MACHADO, 2010, p. 258)².

Michel Brault, o fotógrafo do direto, importante representante da voga franco-canadense, realizou em 1969 o impactante Elogio ao Chiac, filme centrado na entrevista de uma jovem professora que, intercaladamente, discute e, sobretudo, ouve seus alunos falarem e debaterem entre si e em sala de aula a respeito de um tema candente, as relações controversas entre a língua francesa e a inglesa, a partir da dificuldade dos francófonos de manterem uma língua que não é senão uma variedade canadense do francês arcaico, o chiac, em um contexto cultural cada vez mais anglicizado. Filme inaugural da discussão contemporânea sobre o bilinguismo em escolas situadas em contextos bilíngues, Elogio ao Chiac foi um dos primeiros da história de cinema em que vemos estudantes argumentando pontos de vistas diferentes a respeito de um mesmo tema sem ter de passar pelo crivo interpretativo e totalizante de legendas ou vozes em off. A palavra, nesse filme, lhes é inteiramente dada e o resultado é surpreendente.

Tido como um dos documentários mais tocantes sobre o ofício professoral, Ser e Ter (2002), do cineasta francês Nicolas Philibert, aborda uma pequena escola primária do interior da França, na região de Auvergne, onde George Lopez é o principal personagem e professor de uma turma multisseriada de treze crianças. No filme, sobressai o retrato de uma escola que reflete não os parâmetros gerais de uma educação formal, mas sim a capacidade inventiva de uma pedagogia cuidadosa calcada no diálogo e, sobretudo, escuta atenta e próxima das dúvidas, desejos e sofrimentos que cada estudante está envolvido. George Lopez aparece como um professor exemplar que soube manejar sua proposta pedagógica com a agência de seus próprios alunos que aparecem como coautores desse processo. A imagem emerge de uma relação de respeito e confiança entre o professor e seus alunos, tendo o filme se esforçado, portanto, em construir uma narrativa donde sobressai uma visão bastante positiva dessa escola em particular, a despeito do ascetismo depressivo encarnado pelo personagem do professor.

O sexto filme da lista, do aclamado diretor Gus Vant Sant, é Elefante (2003). Inspirado no filme homônimo de Alan Clarke (1989) que acompanha a ação de um serial-killer por espaços ermos de uma cidade – piscinas vazias, banheiros públicos, lojas de conveniência – onde vítimas solitárias são sordidamente assassinadas em uma sequência de assassinatos. A câmera, para ficarmos com a expressão de Mata Machado, é cúmplice-delatora dos assassinatos que ela figura.

Elefante, de Gus Van Sant, por seu turno, mantém essa sinonímia entre câmera e arma (explicitamente em um dos trailers do filme), dessa vez a fim de acompanhar uma dezena de adolescentes em suas perambulações diárias em torno de um típico colégio norte-americano com seus ginásios, salas de aulas e corredores repletos de escaninhos. O ambiente escolar, que ressalta das relações que esses estudantes acionam, é de um local tensionado por um mal-estar disciplinar que não é senão o anúncio de uma tragédia. Se o ponto de partida é o filme homônimo de Alan Clarke, o de chegada é o massacre do colégio de Columbine nos EUA ocorrido em abril de 1999, quando doze pessoas foram mortas, em sua maioria adolescentes, por dois estudantes dessa mesma escola que se mataram em seguida. Filme-sintoma de uma sociedade armada.

Para fechar a lista dos filmes que compõem o primeiro eixo de nossa mostra/seminário, outro filme, do genial Frederick Wiseman, At Berkley (2013), documentário de “longa duração” (quatro horas!) praticamente inédito no Brasil, que se debruça, novamente, sobre uma instituição educacional, dessa vez, a renomada Universidade da Califórnia em Berkley. As sessões desse primeiro eixo da mostra acontecerão no Cine Humberto Mauro.

O segundo eixo da mostra-seminário “A escola e a câmera” é inteiramente dedicado a apresentar e debater projetos contemporâneos que buscam disseminar a reflexão e prática do cinema e fotografia através de oficinas em contextos escolares e de comunidades.

Três mesas redondas estão programadas na Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para a discussão desse eixo. A primeira delas girará em torno do projeto Inventar com a diferença [http://www.inventarcomadiferenca.org/], gestado a partir de uma parceria do departamento de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que tem como mérito uma proposta inovadora de juntar todo um arsenal do aprendizado de militância nos direitos humanos conectados ao mundo do cinema com a educação. Na apresentação da rica publicação (material de apoio) que sintetiza a proposta do projeto³ lemos o seguinte:

Com esse material, buscamos compartilhar saberes e práticas para que todos aqueles interessados em levar o cinema e os direitos humanos para a educação possam fazê-lo, mesmo que não tenham experiências com técnicas ou com a linguagem cinematográfica. (...) Com as propostas que aqui apresentamos, imaginamos ser possível um trabalho colaborativo, sem competição, atento ao outro, aberto às diferenças e aos modo de vida que constituem nossas comunidades. Nos concentramos em processos do cinema com a educação em que o direito à diferença seja estimulado constituindo o que nos mantêm juntos: a possibilidade de criarmos coletivamente com as singularidades de cada um. Todos esses processos geram vídeos, filmes, experiências, narrativas e pensamentos em forma de imagens e sons. Formas de construir o que somos e de descobrir e inventar com o outro. (MIGLIORIN, 2014, p. 11-12)⁴.

Cezar Migliorin, a quem agradecemos imensamente o apoio dado a essa Mostra/seminário, em post recente nas redes sociais, afirmou que “o cinema mais político que se faz no Brasil hoje está na escola, feito por crianças e adolescentes”, se referindo, evidentemente, entre outros, a um conjunto de projetos de cinema em mais de 200 escolas do Brasil, a saber o projeto Inventar com a diferença, sendo ele um dos co-realizadores. A fim de comprovar a afirmativa acima, exibiremos, na programação do forumdoc, uma pequena curadoria de filmes realizados em diferentes contextos de oficinas do projeto em Belo Horizonte, seja em escolas municipais ou em um CEIP – Centro de Internação Provisória. Dia 25 de novembro, às 10h, na FaE/UFMG, exibiremos cerca de oito filmes selecionados e realizados pelo projeto, seguidos de uma mesa-redonda com a presença de Isaac Pipano – idealizador e coordenador do projeto –, professores da rede municipal de educação e mediadores do projeto em Belo Horizonte, Marília Andrade Dias e Hudson Eduardo de Souza, e a professora da Faculdade de Educação (FaE-UFMG), Inês Teixeira, coordenadora do grupo MUTUM: Educação, docência e cinema.

A segunda mesa redonda será dedicada a apresentação e discussão de diferentes projetos realizados no contexto da Associação Imagem Comunitária [http://aic.org.br/], ONG que atua no campo da educação na sua interface com o acesso público à comunicação e à arte com o intuito de promover a valorização da diversidade cultural por meio da cidadania e ações comunitárias. A AIC, como é amplamente conhecida em Belo Horizonte, surgiu em 1993 quando um grupo de estudantes do curso de Comunicação Social da UFMG passou a se interessar por criar novos canais de divulgação e exibição de formas contemporâneas de apropriação de diversos meios de comunicação, o audiovisual em especial. Seu objetivo, como informa seu site, “era construir imagens plurais e positivas sobre a cultura, a periferia e as comunidades da cidade”.

Se era esse o objetivo do projeto desde 1993, podemos concluir que muito se cumpriu, e é com muito respeito e admiração que o forumdoc recebe em sua programação do ano de 2014, parte da vasta produção da AIC, em uma pequena seleção de quatro projetos cinematográficos que descrevem situações de interação audiovisual com diferentes espaços da cidade. Esses filmes serão exibidos dia 26 de novembro, às 10h, na FaE/UFMG, e serão seguidos de uma mesa redonda com a presença de Ana Tereza Melo, sócia-fundadora da AIC e diretora da Oi Kabum! BH escola de Artes e Tecnologia; Aléxia Melo, também sócia-fundadora da AIC, além de atuar como educadora audiovisual em diferentes projetos, Amanda Ibis, ex-aluna da Oi Kabum! e membro do coletivo Junta, e Clebinho Quirino, que além de rapper é educador e artista plástico, tendo também se formado na AIC, sendo hoje um de seus colaboradores.

Finalmente, encerrando a programação da mostra/seminário “A escola e a câmera”, no dia 27 de novembro, às 10h, na Fae-UFMG, faremos a última mesa redonda dedicada à discussão focada nas relações parciais entre fotografia e educação, em especial aquela resultada do projeto Bit e Ponto [http://www.biteponto.art.br/principal/].

O projeto Bit e Ponto tem atuado em diferentes escolas públicas da cidade de Pedro Leopoldo (MG), mobilizando mais de trezentos estudantes em suas oficinas voltadas para crianças e adolescentes que participam de atividades de desenho. Estes conhecem a “câmara escura” e sua magia, além de serem introduzidos no universo prático da produção fotográfica, inclusive em conteúdos 3D. De acordo com um dos oficineiros do projeto, o artista Vinicius Ribeiro, a proposta é “desconstruir a ideia de que a fotografia se limita aos atuais selfies que os alunos estão acostumados, mas que pode trazer um novo olhar para a arte de fotografar e o mundo ao seu redor”.

Para a apresentação e discussão do projeto, a mesa redonda será composta por Daniel Perini, coordenador geral e pedagógico do projeto, Henrique Marques, artista visual e coordenador da oficina de fotografia do projeto, Bruno Vilela, artista visual, idealizador e coordenador do FIF BH – Festival Internacional de Fotografia de BH, e Kátia Lombardi, fotógrafa e professora do departamento de jornalismo da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ). Algumas fotografias realizadas por estudantes dessas oficinas serão expostas nos corredores da Faculdade de Educação (FaE-UFMG) e da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich-UFMG), e serão também projetadas na festa de encerramento do forumdoc.bh.2014.

Convidamos ainda o espectador para a leitura de dois ensaios publicados no catálogo do forumdoc.bh.2014 que servem de suplemento à presente mostra/seminário: o primeiro, de Cezar Migliorin, “Deixem essas crianças em paz: o mafuá e o cinema na escola”; e o segundo, de Ana Tereza Melo Brandão, “Dos princípios: uma didática da invenção”. Ambos textos potencializam a proposta dessa mostra, que não é senão a do forumdoc.bh, ou seja, a crença de que o cinema é um artefato que não serve apenas para representar o mundo mas sobretudo para transformá-lo.

Currículo

Paulo Maia

Antropólogo e professor associado da Faculdade de Educação (UFMG). Coordenador do curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) e do projeto de extensão forumdoc.ufmg. Co-fundador e curador do forumdoc.ufmg desde 1997, se destacando as mostras/seminários “O animal e a câmera” (2011), “Queer e a câmera” (2016), dentre outros.

Como citar este artigo

MAIA, Paulo. A Escola e a Câmera. In: forumdoc.bh.2014: 18º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2014. p. 69-77 (Impresso); p. 71-79 (On-line).

Notas

[1] Em 2010, o forumdoc.bh apresentou uma grande retrospectiva com 53 filmes, entre curtas e longas metragens, do cinema direto norte-americano e canadense. No catálogo desse ano, o leitor poderá encontrar não apenas informação sobre esses filmes mas também diversos ensaios importantes sobre essa ver- tente cinematográfica.

[2] MACHADO, Tiago Mata. Wiseman: a cela e a vida nua. In: Catálogo forumdoc.bh.2010 – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2010. p . 249-271.

[3] A publicação pode está disponível no seguinte link: <http://www.inventarcomadiferenca.org/sites/ default/files/arquivos/Inventar_com_a_Diferen-ca_20140514.pdf>.

[4] MIGLIORIN, Cezaretal. Inventarcomadiferença: cinema e direitos humanos. Niterói: Editora da UFF,2014.