Conforme as evidências se acumulam de que o regime climático planetário experimenta alterações radicais e irreversíveis, o rótulo de “controvérsia” – até bem pouco tempo inseparável das manchetes relativas ao aquecimento global – vai perdendo espaço (e sentido) para as notícias diárias que confirmam sucessivos recordes nas temperaturas médias anuais. A rigor, cada mês tem registrado temperaturas mais altas que o mesmo mês do ano anterior, e cada ano, médias mais altas que todos seus antecessores. Para complicar, a velocidade com que as temperaturas se elevam tem superado, em muito, a capacidade de qualquer reação política efetiva articular-se até o presente momento. A principal meta do celebrado “Acordo de Paris”, que estipula o aumento (note-se: o aumento!) das temperaturas globais em 1,5ºC, já é vista com ceticismo por boa parte dos cientistas.
Em março de 2015, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera – principal responsável pelo aquecimento do planeta – ultrapassou, igualmente, o limite de 400 ppm considerado “aceitável” pelos climatologistas para a manutenção do clima em condições minimamente parecidas com aquelas que a espécie humana conviveu até os dias de hoje. Como consequência direta das emissões de CO2, as geleiras derretem a passos rápidos e incontroláveis, elevando os níveis dos oceanos cujas águas, não obstante, apresentam índices alarmantes de acidificação e desoxigenação – duas graves ameaças à biodiversidade marinha. A esta paisagem, vêm se somar fenômenos climáticos extremos e cada vez mais comuns como longos períodos de chuva ou estiagem, nevascas, ciclones, ondas de frio ou calor, inundações e incêndios florestais. Em várias partes do planeta, os efeitos de tais alterações já se fazem sentir: diversos territórios arriscam submergir ou desertificar, populações inteiras se veem forçadas a migrar, a segurança alimentar está gravemente comprometida e os prejuízos econômicos são inestimáveis. O balanço, portanto, não poderia deixar de ser pessimista: caminhamos para uma dramática e acelerada redução da biodiversidade no planeta e para a vida em um mundo radicalmente diferente do que estivemos habituados a habitar, além de progressivamente inabitável. Muitos concordam que já estamos vivendo a Sexta Grande Extinção em massa da história terrestre. Nada garante que a espécie humana sobreviverá a ela.
Se há, portanto, “controvérsia” quanto às mudanças climáticas, atualmente, ela diz menos respeito à sua realidade ou origens do que às suas dimensões, consequências, formas de combate ou mitigação. Discute-se muito mais “o quê” e “como” fazer do que a necessidade ou não de fazê-lo. No entanto, ainda que a “controvérsia” inicial pareça resolvida pelo atual consenso científico, nada indica que as discussões que se desdobram daí sejam mais animadoras. Tudo parece se passar, ao contrário, como naquela inquietante instalação do artista espanhol Isaac Cordal, Waiting for climate change, na qual um círculo de homens brancos e engravatados submerge enquanto eles aparentemente discutem as mudanças climáticas e as possíveis ações para “mitigá-las”. Os debates, enfim, sobre a existência ou não do problema podem ter perdido algo do seu fôlego (sempre haverá um Donald Trump ou um Aldo Rebelo para nos provar o contrário), mas nada nos permite assumir ou esperar que uma resposta coletiva à altura esteja, nem por isso, se aproximando. Tudo indica, aliás, que a controvérsia alimentada especialmente pelos assim chamados “negacionistas” – isto é, aqueles que insistem ou até bem pouco tempo insistiam em negar as mudanças climáticas e suas origens – tenha apenas mudado de lugar...
Neste novo cenário, a disputa ganha novos contornos, agentes e direções. Frente à posição já um tanto insustentável da “negação” pura e simples, é preciso percorrer terrenos que a demonstração científica consegue com muito mais dificuldade penetrar. Pois não se trata tanto (pelo menos, não mais) de descrever ou traçar conexões entre fenômenos, mas de questionar “propostas” ou “saídas” geralmente apoiadas nas mais avançadas, das mais avançadas das tecnologias. Assim, se com um pouco de tempo e trabalho um climatólogo pode bem demonstrar as conexões entre, por exemplo, a queima de combustíveis fósseis e o aumento das temperaturas globais, muito mais difícil é contrariar as promessas de uma saída tecno-científica anunciada aos quatro ventos como o apanágio da “crise” instalada. Simplesmente porque não se trata aí de convencer os leigos quanto à primazia da “Ciência” sobre a “Fé”, mas de colocar em questão (o que é muito mais delicado) os fundamentos da própria “Fé” na “Ciência”¹.
É nesse ambiente, portanto, que se divisam pelo menos duas atitudes ou alternativas radicalmente opostas em relação ao “que fazer” diante do Novo Regime Climático. De um lado, ambientalistas alertam para a necessidade urgente de se atacar as suas causas, isto é, reduzir drástica e imediatamente as emissões de gases de efeito estufa, renovar a matriz energética mundial, recuperar áreas degradadas, alterar o modelo socioeconômico vigente etc. De outro, os assim chamados “aceleracionistas”² rejeitam severamente quaisquer medidas que envolvam alterações radicais no modelo capitalista-industrial hegemônico, projetando (sempre no futuro) soluções técnicas capazes de reverter a barbárie anunciada.
Humanistas convictos e otimistas declarados, os aceleracionistas defendem a superioridade técnica da espécie humana face ao que consideram como as exterioridades negativas produzidas pelo avanço do capitalismo industrial – o aquecimento global, por exemplo. Diferente dos negacionistas tradicionais, seus expoentes não costumam questionar o consenso científico em torno das mudanças climáticas ou da urgência em se endereçá-las. Entendem que o planeta vive transformações drásticas em seu regime climático, com efeitos desastrosos caso nenhuma atitude seja tomada. Compartilhando, contudo, o mesmo diagnóstico, discordam dos ecologistas no que diz respeito, sobretudo, ao prognóstico. Como sentenciaram dois expoentes da sua versão “ecomodernista”, os americanos Michael Schellenberger e Ted Nordhaus: “nós estamos convencidos que o moderno ambientalismo com suas concepções infundadas, conceitos ultrapassados e estratégias exauridas precisa morrer para que algo novo possa surgir” (SCHELLENBERGER; NORDHAUS, 2004, p. 06).
Para estes tecnófilos norte-americanos, o ambientalismo, em suas mais variadas vertentes, não passa, hoje, de uma forma de obscurantismo, incapaz de imaginar soluções que não passem por algum tipo de “retorno” a um passado primitivista ou por palavras de ordem como “redução”, “limites”, “restrição”, “prevenção” e “regulação”. Num texto programático intitulado The Death of Environmentalism: global warming politics in a post-environmentalist world (2004), Schellenberger e Nordhaus criticam, por exemplo, a total incapacidade dos ambientalistas em convencerem a opinião pública quanto à atual “crise” climática, além de atacarem neles uma determinada concepção do meio-ambiente totalmente descolada de qualquer agência humana – donde o apelo por um mundo pós-ambiental (post-environmental world).
Mais do que isso, acusam a esquerda ecologista de difundir um discurso de medo e resignação, incapaz, por isso mesmo, de atingir os nobres corações americanos, mais acostumados ao ritmo triunfante da conquista e da dominação contra todas as adversidades. Os autores chegam a evocar o “Eu tenho um sonho”, do célebre discurso de Martin Luther King, sugerindo que as versões ambientalistas da atual crise climática estariam professando algo como um “Eu tenho um pesadelo”, incapaz de inspirar “a esperança contra o medo, o amor contra a injustiça e o poder contra a impotência” (2004, p. 31). Numa versão expandida do panfleto, publicada sob o título Break Through: from the death of environmentalism to the politics of possibility (2007), os autores opõem, enfim, o que chamam de uma “política do limite”, propagada pelos ecologistas, a uma “política das possibilidades”. Evocando as palavras de Alexis de Tocqueville, os autores reafirmam que “nos Estados Unidos, não há limites para a inventividade dos homens em descobrir maneiras de expandir a riqueza e satisfazer as necessidades do povo” (2007, p. 16). Desse modo, a verdadeira estratégia a ser adotada, ensinam, é “adentrar os mundos criativos dos mitos e mesmo da religião, não para melhor vender propostas técnicas e superficiais, mas antes para descobrir quem somos nós e quem devemos ser” (2004, p. 34).
Criatividade e proselitismo religioso (além de investimentos vultuosos) de fato não faltam a Schellenberger e Nodhaus. Os dois são os fundadores do Break Through Institute, um think tank americano sediado em Oakland, na Califórnia, cuja missão anunciada no próprio site – ao lado das fotos sorridentes de uma equipe predominantemente branca – é “ acelerar a transição para um futuro onde todos os habitantes do mundo possam usufruir de uma vida segura, livre, próspera, e plena num mundo ecologicamente vibrante”. Um futuro, em suma, em que tudo será californiano, como ironizaram Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro recentemente (2014, p. 66).
A sessão “acreditamos” do site do Instituto resume bem os fundamentos teológicos da organização:
Acreditamos que a tecnologia e a modernização estão nos pilares do progresso humano. Acreditamos que a prosperidade e um mundo ecologicamente vibrante são não somente possíveis, como inseparáveis. Acreditamos que o mercado é uma força potente de mudança, mas que investimentos governamentais de longo prazo são necessários para acelerar o progresso tecnológico, o crescimento econômico e a qualidade do meio-ambiente. (http://thebreakthrough.org/about)
No recente Manifesto Ecomodernista (2015), os autores retomam ainda algumas dessas crenças e acrescentam outras mais, pregando uma versão idílica do Antropoceno. Críticos do “velho testamento” ambientalista – demasiado calcado em ideias como “recursos limitados” ou, pior ainda, “desaceleração econômica” – os autores enaltecem o papel da tecnologia na progressiva libertação dos homens, reconstituindo uma história linear e ascendente marcada por transições que vão dos caçadores-coletores (expressão que usam sempre no passado e com indisfarçável desprezo) até o capitalismo neoliberal dos dias de hoje. A conclusão a que chegam é que só o investimento maciço em tecnologia poderá garantir o grande salto – the breakthrough – rumo a um mundo pós-capitalista e pós-material, onde a humanidade se verá enfim libertada de quaisquer constrições materiais. No lugar, portanto, de um ambiente descolado da agência humana, somos convidados a admitir a possibilidade inversa e simétrica de uma humanidade descolada (decoupled) do ambiente ou, melhor dizendo, de um ambiente totalmente conformável à insuperável e destemida imaginação técnica humana.
Mas vejamos como esses ecomodernistas concebem, na prática, a solução dos problemas que ocupam a ordem do dia. Como já ficou claro, em sua opinião, “sem profundas mudanças tecnológicas não há nenhum caminho válido para mitigação climática significativa.” (2015, p. 21). Mas, para compreender o que os autores entendem por “profundas mudanças tecnológicas”, é preciso antes conhecer as promessas de um ambicioso campo de estudos: a geoengenharia. Numa definição comum, trata-se de “intervenções deliberadas e em larga escala nos sistemas naturais da Terra para revertero aquecimento global”³. Suas promessas concentram-se em duas frentes principais: a “geoengenharia solar”, que estuda intervenções capazes de refratar os raios do sol que contribuem para o superaquecimento do planeta, e a “geoengenharia do carbono”, que almeja diminuir a concentração do gás na atmosfera. As técnicas, em ambos os casos, variam, podendo ser tão simples e óbvias quanto o reflorestamento ou um pouco mais complexas como a captura de carbono através de máquinas superpotentes capazes de “sequestrá-lo” no ar e retê-lo em algum lugar no subsolo ou ainda a alteração da composição química da própria atmosfera com a introdução de partículas capazes de eliminar o dióxido de carbono acumulado e bloquear os raios solares indesejados. Quando os ecomodernistas evocam e louvam a tecnologia como passaporte para o futuro estão se referindo, portanto, a soluções técnicas do porte destas últimas, combinadas, é claro, com a intensificação da agricultura, da urbanização e do amplo recurso à energia nuclear e hidrelétrica.
Por atraentes que possam parecer – especialmente aos olhos dos negacionistas do clima e de uma indústria que vislumbra aí toda uma nova “oportunidade” – os resultados dessas tecnologias são, no mínimo, incertos. Primeiro, pelo motivo óbvio de que elas visam atingir as consequências e não as causas do problema, concentrando em reduzir o aquecimento enquanto mantêm relativamente intactas as emissões. Segundo, porque nada garante que as mutações ecológicas obedeçam às equações simples através das quais suas soluções são apresentadas. Ao contrário, a intensificação das pesquisas climáticas só têm reforçado a complexidade dos “sistemas naturais” e a imprevisibilidade/irreversibilidade de suas transformações em cadeia. Por fim, a esperança de que a velocidade dos avanços tecnológicos supere ou mesmo antecipe os efeitos catastróficos das mudanças climáticas, além de ignorar a realidade das práticas científicas – sua organização e temporalidade próprias – reafirma justamente uma ideia que, só aparentemente, os ecomodernistas pareciam dispostos a rejeitar: a existência de uma “natureza” intocada, inerte e exterior aos homens. O que os ecomodernistas ignoram solenemente, com isso, é uma das principais características daquilo o que Isabelle Stengers tem nomeado a “intrusão de Gaia”, um evento marcado por um tipo de transcendência totalmente indiferente aos nossos desígnios (ou ao ritmo das pesquisas em geoengenharia). Um ser, em suma, “implacável”, “surdo às nossas justificativas” contra o qual não se pode “lutar”, mas apenas “compor com”, “agenciar”, “negociar” (2015, p. 41)... Pois não temos escolha.
Os argumentos, portanto, que não encaram essa “verdade inconveniente” são tão frágeis quanto atraentes. Pode ser (e talvez seja mesmo mais provável) que a “opinião pública” prefira as versões prometeicas ou épicas da história difundidas por esses profetas californianos. Mas, neste ponto, convém botar os pés ali mesmo, na Califórnia. É no mínimo notável (para não dizer irônico) que nem toda a grandeza de espírito, a supremacia técnica ou o pragmatismo ecomodernistas tenham produzido grandes efeitos no enfrentamento da longa estiagem, das altas temperaturas ou dos incêndios históricos que vêm acometendo o estado americano nos últimos anos. É verdade que eles talvez estejam ocupados demais com “o futuro” da humanidade (e só dela) para se inquietarem com esses probleminhas locais. Veremos (ou não) até quando.
Mas há mais entre ambientalistas e aceleracionistas do que apenas diferenças radicais quanto aos modos de se pensar e agir. Suas divergências apontam, igualmente, para dois modos distintos de sentir essas questões. Os primeiros, diante das evidentes dificuldades em ver a urgência dos seus alarmes mobilizar a “opinião pública” e os governantes, ao passo em que todos os limites “aceitáveis” vão sendo pouco a pouco expandidos ou ultrapassados, se assumem ou são vistos como “pessimistas”. Os últimos, convictos da supremacia humana (e norte-americana) frente a todos os problemas e a despeito do que sugerem as evidências, reivindicam para si o “otimismo”. Os primeiros têm medo. Os segundos, esperança. Na situação em que nos encontramos e para a qual caminhamos seria urgente indagar as profundas motivações históricas e filosóficas que tornam imediatamente condenável qualquer convite ao pessimismo e ao medo, em detrimento do otimismo e da esperança. Numa sensível cartografia dos afetos que atravessam os debates em torno do Antropoceno, Déborah Danowski definia a esperança como
(...) sentimento-símbolo da modernidade, expressão de uma visão linear e progressista do tempo, segundo a qual deixamos definitivamente para trás um passado pré-moderno e nos encaminhamos a um futuro melhor, mais racional, mais livre, mais democrático; e que, frente às mudanças climáticas, costuma se traduzir na crença de que, de alguma maneira, apesar de todas as incertezas que nos rondam (...), conseguiremos manter em seu caminho a flecha do tempo; que, quem sabe, não precisaremos abandonar nossas conquistas e aquilo que mais prezamos, não voltaremos para trás. (https://www.youtube.com/watch?v=yENRG9MZJjc)
A esperança é, pois, o sentimento de quem imagina um futuro em grande medida descolado do presente; um futuro em que sempre haverá a possibilidade de redenção, seja pela chegada (ou retorno) do Messias, pela Revolução, ou pelo avanço exponencial da Tecnologia. A esperança é o afeto da transcendência. Ela permite dizer que “tudo é possível”, mas sem qualquer exigência de que se abram campos de possibilidades. A “política das possibilidades” ecomodernista é, assim, deleuziana de fachada, porque não assume que o futuro não será, mas já está sendo; que o futuro não é lá, mas é aqui... Por que, afinal, no horizonte de possibilidades aceleracionista, o fim da espécie humana nunca é possível ou pensável? Por que deveríamos, apesar de todos os sinais indicarem o contrário, acreditar que o futuro será melhor (porque sim!)? Por que todo possível deve ser necessariamente bom e belo? Vê-se, assim, que a esperança é um cheque sem fundo, um contrato que se assina sem antes ter lido os seus termos e condições, uma miragem...
Mas como, diante disso, positivar o medo e o pessimismo? Como aprender a ter medo sem, nem por isso, recair numa forma generalizada de apatia e niilismo? Neste ponto, precisamente, conviria nos voltarmos para o exemplo ameríndio, por exemplo⁴. É conhecida a imagem antropólogica que com enorme frequência atribui a estes povos (e tantos outros “supersticiosos”, “místicos” e “mágicos” que habitam o planeta) uma espécie infantil de medo generalizado. Os índios teriam medo de tudo: dos inimigos, dos feiticeiros, dos espíritos, dos grandes predadores da floresta, dos brancos, dos mortos, da queda do céu... Um olhar mais atento, entretanto, logo perceberá que é outro o “medo dos outros” (Viveiros de Castro, 2011). Em primeiro lugar, porque essas formas do medo, entre eles, pouco têm a ver com a correlativa necessidade de aniquilação daquilo que se teme. Mas também porque estão intimamente apoiadas em concepções inteiramente diversas das relações que constituem os seus mundos, geralmente fundamentadas por aquele princípio vital traduzido por expressões como “tudo tem alma”. O ponto, como diversas autoras e autores têm sublinhado, é que lá, onde “tudo tem alma”, a caça é uma forma da guerra, a doença, uma forma de agressão, a cozinha, uma espécie de canibalismo e o xamanismo, tradução. Não há ação sem consequência, nem morte sem vingança. Habitar este mundo exige, assim, uma atenção constante e um cuidado particular no trato com os agentes e agências que o povoam. Viver, em suma, exige um verdadeiro esforço diplomático, um engajamento constante em “cosmopolíticas”.
Nestes mundos, portanto, o “medo” e o “perigo” implicam antes um “cuidado” generalizado – aquela espécie de “deferência para com o mundo” de que falava Claude Lévi-Strauss (2006 [1968], p. 460). Como tem insistido Isabelle Stengers, “(...) quando o assunto que está em jogo é o chamado ‘desenvolvimento’ ou ‘crescimento’, a determinação é, principalmente, não ter cuidado.” (2015, p. 56). Parece sempre mais fácil recuperar ou mitigar os danos do que reverter ou controlar suas causas. Compreende-se, portanto, o espanto que o ativista oglala lakota, Russell Means (1980), manifestava diante de uma atitude aparentemente tão banal quanto abater um cervo: “Nós oramos nossas gratidões ao cervo, a nossas relações, por nos permitir sua carne ser comida; os europeus simplesmente tomam a carne como garantida e consideram o cervo inferior. Afinal, europeus consideram-se semelhantes a deuses em seu racionalismo e ciência. Deus é o Ser Supremo; tudo o mais deve ser inferior.”
Tamanha inconsequência preocupa e ocupa diariamente estes povos, pois eles sabem bem (e temem) as consequências da presença desastrada e desastrosa dos brancos neste mundo. Os brancos somos, aliás, a imagem mesma da falta de “etiqueta” para os índios: agressivos, arrogantes, estúpidos, sovinas, falastrões, somos “bichos surdos”, como dizia uma mulher kisêdjê numa vídeo-carta circulada durante a Rio+20⁵. Ou ainda, como Rosângela de Tugny (2008) ouviu certa vez de um índio maxakali: “os brancos são como onça: não conversam, nem esperam, chegam logo atirando”. A diplomacia que os brancos recusam, entretanto, acaba por exigir um esforço dobrado dos diplomatas indígenas, isto é, seus xamãs, pajés ou rezadores. Como sempre chama atenção Davi Kopenawa, é graças aos esforços diplomáticos conduzidos pelos xamãs indígenas que ainda estamos aqui, sobre a mesma terra, pois, do contrário, o céu já teria desabado nas nossas cabeças, como já aconteceu outras vezes e, claro, sempre pode acontecer. Ou ainda, como adverte a opuraheiva (rezadora) guarani, Estela Vera (2017): “Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar. Tudo vai acabar, os sinais de que o mundo está acabando já estão aparecendo. Hoje temos menos rezadores (opuraheiva), chuvas sem limite. Está tudo fora do tempo.”
Kopenawa e Estela sabem bem que as suas palavras (e, através delas, as dos xapiripë e nandejara) têm muito pouco ou nenhum efeito diante da impressionante surdez e apatia dos brancos. Os brancos não têm medo. Pelo menos, não das coisas que realmente importam. Por isso, justamente, também não têmcuidado. Não surpreende, portanto, que o discurso aceleracionista ataque com tanta frequência a suposta pusilanimidade dos ecologistas, exortando-nos precisamente a não temer. Como afirmavam Schelleberger e Nodhaus ainda naquele primeiro artigo: “aqueles dentre nós que prestam tanta atenção nos ciclos da natureza sabem fazer melhor do que temer a morte (...). Nas palavras do Tao Ti Ching, ‘se você não teme a morte não há nada que não possa alcançar” (2004, p. 10). A teologia ecomodernista, de fato, não conhece limites. A isto chamam “esperança”. Mas a esperança é a última que mata e quem hoje não tem medo, se viver, terá: “Ao contrário de nós, os brancos não têm medo de serem esmagados pela queda do céu. Mas um dia eles terão tanto quanto nós temos!” (ALBERT; KOPENAWA, 2015).
Currículo
Roberto Romero
Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ), membro da Associação Filmes de Quintal e um dos organizadores do forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. É codiretor do filme Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa terra é nossa! (2020).
Como citar este artigo
Roberto Romero. A esperança é a última que mata. In: forumdoc.bh.2017: 21º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2017. p. 139-148 (Impresso); p. 141-150 (On-line).
Notas
[1] Utilizo “Fé” e “Ciência” com iniciais maiúsculas propositalmente e na esteira da diferenciação proposta por autores como Isabelle Stengers (2015) e Bruno Latour (2013), que opõem as práticas cientificas ou “a ciência em ação” a um certo discurso maior – a Ciência (com “C” maiúsculo) – que insiste em associar estas práticas ao monopólio da razão e da verdade.
[2] Estou ciente que reúno sob este rótulo vertentes que nem sempre se identificam totalmente entre si ou mesmo como tal, preferindo autodenominações como “ecomodernistas”, “ecopragmáticos” ou “singularitanos”. O termo “aceleracionista”, entretanto, me parece propício a unificá-los na medida em que todos compartilham um mesmo projeto de fundo: a aceleração da modernidade como solução para a “crise ecológica” atual. Para uma apresentação detalhada destas diferentes correntes, ver Danowski e Viveiros de Castro, 2014, pp. 64-78.
[3] Sobre a geoengenharia: http://www.geoengineering.ox.ac.uk/what-is-geoengineering/what-is-geoengineering/
[4] Sobre a diferença entre o “modelo” e o “exemplo”, ver a recente conferência de Eduardo Viveiros de Castro, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_PfE54pj1wU.
[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FU2O9RNNTx8
Referências
ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
DANOWSKI, Deborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014.
MEANS, Russell. 1980. Discurso do ativista Oglala Lakota Russell Means em 1980. Em: http://radioyande.com/default.php?pagina=blog.php&site_id=975&pagina_id=21862&tipo=post&post_id=615
LATOUR, Bruno. Face à Gaïa: huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris, Éditions La Découverte, 2015.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Homem nu. São Paulo, Cosac&Naify, 2006 [1968].
SCHELLENBERGER, Michael; NORDHAUS, Ted. 2004. The Death of Environmentalism: global warming politics in a post-environmentalist world. Disponível em: <https://www.thebreakthrough.org/images/Death_of_Environmentalism.pdf>. Acesso em: 20/10/2017.
SCHELLENBERGER, Michael; NORDHAUS, Ted. Break Through: from the death of environmentalism to the politics of possibility. New York, Houghton Mifflin Company, 2007.
SCHELLENBERGER, Michael (et al.). Ecomodernist manifesto. 2015. Disponível em: <http://www.ecomodernism.org/>. Acesso em: 20/10/2017.
STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: como resistir à barbárie que vem. São Paulo, Cosac&Naify, 2015.
TUGNY, Rosângela. Um fio para o ĩnmõxa: em torno de uma estética maxakali. In: Revista Nada, n. 11, Lisboa, 2008.
VERA, Estela. Se não tiver mais reza o mundo vai acabar. In: Povos Indígenas no Brasil 2011/2016. São Paulo, Instituto Socioambiental (ISA), 2017.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O medo dos outros. São Paulo, Revista de Antropologia, vol 54, n. 2, 2011, pp. 885-917.