Durante os meses de outubro e novembro deste ano, com o intuito de produzir algum material reflexivo para o catálogo, pedimos aos homenageados pela mostra “Fotógrafos do Documentário Brasileiro” para se posicionarem a respeito de algumas questões ligadas ao trabalho da fotografia no documentário. Walter Carvalho, Mário Carneiro e Aloysio Raulino responderam as questões por telefone; Adrian Cooper e Edgar Moura responderam por e-mail, sendo que o último enviou excertos de seu livro 50 anos luz câmera ação; Conversamos com Dib Lutfi por telefone, sabendo que o fotógrafo não costuma dar entrevistas. Inicialmente, Dib não descartou a possibilidade de falar, mas por fim deixou que os filmes falassem por si mesmos. Segue uma montagem das respostas em forma de debate.
1 – Nos filmes de ficção, um dos principais critérios para definir uma boa fotografia tem sido a iluminação. No documentário, por outro lado, nem sempre é possível filmar com condições controladas de luz, seja pelas exigências da externa, pela iluminação variável, ou mesmo por situações criadas pela própria filmagem. Diante disso, como é possível tirar partido dessas limitações? Quais são as particularidades do trabalho de fotografia em documentário?
Adrian Cooper – Sempre acreditei que uma boa fotografia (seja num filme documentário ou de ficção) é aquela necessária para contar a história da melhor maneira possível – ao mesmo tempo oferecendo ao espectador algo atraente aos olhos, instigante como proposta (na medida das necessidades da história) e, quando possível, surpreendente.
Não acho que a boa fotografia é necessariamente aquela que enche os olhos a todo custo enquanto ignora o sentido da cena ou o contexto das personagens e da história.
Recentemente, nós vimos vários filmes nacionais e internacionais feitos em vídeo digital e até em MiniDV ampliadas para 35mm, que, apesar das limitações qualitativas do formato, foram perfeitamente aceitáveis em termos de realizações fotográficas e cinematográficas.
Mas, especificamente a respeito do documentário, podemos destacar a necessidade de ser ágil e rápido. A vida não espera a arte. Uma cena mal iluminada que tem força dramática é sempre preferível a uma cena lindamente iluminada, mas que perdeu o momento dramático e só registra as sobras do momento significativo. O fotógrafo de documentário está sempre fazendo concessões técnicas em função de questões dramáticas. Claro, tudo depende da proposta do filme.
Aloysio Raulino – Bem, de fato são bem diferentes as origens da imagem entre ficção e documentário. Pelo menos em princípio a ficção tem uma imagem mais controlada, mais planejada previamente, inclusive. Você pode planejar previamente um documentário, evidentemente, mas nem sempre isso é possível. Quer dizer, não devemos ficar perseguindo os mesmos acontecimentos e as variáveis são muito maiores, pois há variações de situações e de locais onde elas acontecem. Então, de fato, existe uma diferença. Em ficção existe um planejamento prévio, story board, você tem uma série de procedimentos que no documentário são obviamente fora do principio, até da narrativa, da linguagem. Evidentemente que o documentário hoje em dia está multi-afetado, ele tem várias tendências, nuanças ou possibilidades: tendências mais experimentais, o documentário mais convencional para a televisão, o “docudrama”, que é um nome... Enfim, o documentário tem variações internas, eu acho, maiores que a ficção. Mas de qualquer maneira, tirar partido dessa situação significa o quê? Em primeiro lugar: você estar muito atento a essas possibilidades, você ter uma elasticidade bastante grande com relação aos acontecimentos que você está ali filmando, e você ter um conhecimento o mais aprofundado possível das possibilidades técnicas de captação da imagem. Isso significa o quê? Significa que você tem que saber com o que você conta em termos de possibilidade de trabalhar com pouca luz, de explorar as relações de contraste nos altos e baixos etc. É mais ou menos essa a diferença que eu vejo.
Edgar Moura – “Quando você estiver operando a câmera num filme de ficção, não olhe os atores como se fossem pessoas de verdade, nem preste atenção ao que eles estão dizendo. O texto não tem a menor importância para o operador de câmera, nem a emoção, nem a entonação dos atores, nem nada disso que interessa ao diretor e não ao câmera. O diretor do filme está lá para cuidar disso mesmo; concentre-se nas formas, olhe as formas e as sombras, os movimentos e os ritmos e... olhe os bordos do quadro. Preste toda a atenção do mundo na composição do quadro, se os atores estão ‘bem enquadrados’, se a câmera está fluindo e não deixe entrar no quadro nada que seja alheio à ficção, como microfones, continuísta no espelho, ou defeitos do cenário. No mundo da ficção, só deve entrar o que faz parte dela. O resto deve ficar lá fora, fora do quadro.
Já num documentário, só olhe as pessoas. Esqueça o quadro, a composição e a arte. Concentre-se nas pessoas e preste toda a atenção do mundo ao que elas estão dizendo; você está lá para isso: ver, ouvir e reagir ao que estiver acontecendo de verdade. Que se dane se entrar o microfone no quadro ou mesmo o engenheiro de som inteiro. Pouco importa se o diretor estiver em campo, ou se a Kombi de câmera aparecer de repente no bordo do quadro. Nada disso tem a menor importância. A única coisa importante é o assunto e o que ele está falando.
Nos dois casos, concentre-se em ver ‘pela câmera’ e se abstraia de tudo que não está em quadro. Abstraia-se no sentido de manter em mente que só conta o que está dentro do quadro, o que está fora ou deve ficar lá, porque não interessa, ou deve-se ir atrás para buscar, se é alguma coisa que deveria estar dentro e está fora. O que ficar fora do quadro na hora da filmagem ficará fora do filme na hora da projeção. Lembre-se de dar tempo para o público ver o que você está vendo. Ligue a câmera e conte até cinco, pelo menos, antes de cortar. O que você não conseguir ver ninguém nunca mais verá. Se você não se der tempo de ver nada, e ficar mexendo a câmera de um lado para o outro, mudando de quadro o tempo todo, você não terá visto nada e ninguém também nunca mais verá nada. É assim que se faz a câmera”.
Mário Carneiro – Deve-se diferenciar filme documentário de reportagem documental. No documentário, ocorre uma pré-produção onde são analisadas as condições de filmagem: locações, assunto etc. Deve ser feito o máximo de previsão no sentido de não comprometer o real com a presença do material de cinema (rebatedores, refletores, luz e demais aparatos). O documentário normalmente cria sua linguagem própria que é imposta pelas condições encontradas. Controlar o fluir do filme para evitar falhas de continuidade muito gritantes – não no sentido habitual, mas no sentido narrativo que venha a ter a ação documentada. Criar coberturas para os momentos que nos escapam. A reportagem, por outro lado, por sua própria natureza, deve buscar ser o mais abrangente possível na sua captação, usando grande angular e sensibilidade alta.
Walter Carvalho – Na verdade você está colocando uma pergunta que transita entre qual a diferença entre filmar um trabalho de ficção e filmar um trabalho de documentário. Vamos considerar o documentário de forma geral. Por que você tem documentários e documentários, ou seja, nem todo documentário é igual. Em alguns documentários você pode elaborar uma luz. Mas vamos partir do pressuposto que na grande maioria dos documentários, o grande desafio para o fotógrafo é que ele trabalha com uma luz que não controla, não tem sobre ela praticamente nenhum controle. Porque ela acontece no momento em que você está filmando, e o que comanda não é a luz e sim o próprio assunto. O fotógrafo que consegue dar uma leitura razoável de compreensão da imagem no documentário, o bom realizador nesse sentido, é aquele que tem a capacidade de controlar a luz sem perda da compreensão da imagem. Veja bem: eu acabo de ler no jornal sobre um filme que o Antonioni fez em 1972 na China, sobre a política de Mao, em super 8. Quero dizer, o que é necessário ter na verdade é a fidelidade e a compreensão do assunto que você está focalizando. Se essa imagem tem uma deficiência porque não há possibilidade de controlar a luz, essa deficiência passa a ser elemento narrativo do próprio assunto, haja vista a sua importância. O que era mais importante? Que o Antonioni tivesse filmado em 1972 com super 8 como ele filmou? Ou não tivesse filmado porque precisaria filmar com controle, com 35mm, com o controle de tudo? A importância da filmagem dele foi ele ter feito. Como ele fez não importa. Importa o assunto que ele colocou diante dele. Portanto, a luz e a construção da imagem no documentário passam a ser importantes na medida em que são incorporadas ao processo narrativo do próprio filme. Agora, esse raciocínio levado para dentro da ficção é exatamente o contrário. Tudo o que acontece no espaço da imagem sendo captada na ficção está sob o absoluto controle de todos os departamentos: do diretor, do som, da imagem, do figurino, da cenografia, da maquiagem etc. E quando alguma coisa acontece que não corresponde ao interesse, ao desejo do fotógrafo e do diretor, a filmagem é suspensa. Quando chove quando não deveria, quando o sol se põe quando não deveria, a luz muda no momento em que não deveria. Então, a diferença básica entre uma coisa e outra é que no documentário você não tem o controle da situação da luz ambiente, e em um filme de ficção você tem total e absoluto controle da luz ambiente. Aí você tem as exceções como você tem exceções no documentário. Você pode também operar uma luz, dependendo do documentário. Na ficção também tem aqueles filmes em que não se utiliza o controle da situação para ter uma outra proposta que vem a ser exatamente o cinema mais experimental, ou o cinema de invenção, ou o cinema de improvisação. Mas isso não é uma regra. De uma maneira geral você tem o controle, você procura filmar naquela hora, em uma sequência que tem determinadas características de luz você procura para poder respeitar os elementos que estão dentro da ficção.
2 – A relação do fotógrafo com aqueles que são filmados é marcada pela imprevisibilidade, o que pode levá-lo a relativizar a excelência técnica em função da necessidade de movimento, da condução da situação pelos sujeitos filmados, do improviso. Como se dá, a seu ver, a tensão entre o que é convencionalmente correto (do ponto de vista fotográfico) e a imprevisibilidade dessa relação?
Adrian Cooper– A imprevisibilidade é o rio em que nada o documentarista, de onde ele tira sua sustentação e sua razão de ser. (Claro, aqui não estamos falando de documentários institucionais ou publicitários onde o controle sobre a imprevisibilidade é maior).
A dramaticidade das vidas e circunstâncias que o documentarista quer registrar reside justamente na imprevisibilidade – nos acidentes, nos momentos não programados, nas flagras, no “off the record” (como dizem em inglês),“quando baixam a guarda” (como nós diríamos). Em geral, são esses os momentos “verdadeiros”, reveladores e significativos. Por isso, o fotógrafo e a equipe de documentário precisam estar sempre atentos, sempre ligados – profundamente integrados na proposta do filme e do diretor – para que esses momentos preciosos e imprevisíveis sejam captados. A questão técnica aqui (ao meu ver) é sempre subordinada às necessidades dramáticas e narrativas do filme. Com isso, não quero dizer que vale filmar de qualquer jeito, mas, dentro das possibilidades técnicas, eu coloco sempre em primeiro lugar a questão do conteúdo do filme. Por isso precisamos ser ágeis, decidir com muita rapidez as considerações técnicas. Obviamente, e quando possível, é melhor filmar com uma luz que favoreça a cena, que quer dizer algo sobre a situação e que corresponde à proposta fotográfica geral do filme. Mas, isso não é sempre possível. Na dúvida, eu acredito na minha intuição informada pela intenção geral do filme.
Às vezes é possível criar (cenográfica e fotograficamente) um ambiente mais propício para a realização do propósito do filme. Às vezes, sem que seja necessariamente uma mentira, a criação de um ambiente pode dizer mais sobre a realidade retratada do que a realidade nua e crua. Aí, é uma questão ética a ser resolvida pelo diretor e a equipe. Eu, pessoalmente, não descarto – a priori – esse tipo de intervenção. A grande discussão sobre “cinema verdade” dos anos sessenta, nos leva a entender que todo filme é pessoal e, no fundo, uma forma de ficção. Acredito na ética e julgo as intervenções a partir dessa ética. É um terreno difícil e cinzento para o documentarista.
Aloysio Raulino – Bom, aí sim que você toca no assunto da elasticidade mesmo, da..., não sei se a palavra é prevenção, é uma certa agilidade que deve haver no sentido de você estar realmente preparado para essa quantidade de variações possíveis da situação. Se você impuser a priori a sua necessidade do que você chama de excelência técnica, muitas vezes isso vai acontecer em detrimento de uma outra virtude, digamos assim, de uma outra qualidade que seria a vida latente do documentário, que é, digamos assim, a sua tensão estrutural com a realidade. Então se você não seguir essa vocação do documentário para humanizar as imagens a partir das próprias precariedades, ou seja, dar a isso uma estética, falar disso um pouco com a imagem, você está condenado a fazer documentários bastante convencionais e que aí são documentários que eu acho bastante aborrecidos. O documentário quando é totalmente pré-organizado de imediato, eu acho que ele é tedioso. Eu sou contra esse tipo de encaixotamento da necessidade expressiva do humano dentro do documentário.
Mário Carneiro – Um exemplo concreto: quando filmei Iberê Camargo pintura-pintura não havia previsão de tempo para o quadro que Iberê pintava ficar pronto. Embora houvesse modelo, a maneira de pintar do Iberê, que buscava uma figuração de “volta da abstração”, o levava a refazer muitas vezes o trabalho. O filme virgem acabou e resolvi na hora acompanhar o tempo que faltava, fotografando com intervalos significativos em slides o desenrolar do quadro. Os slides resultantes foram então filmados pelo Zequinha Mauro, na truca, com fusões de uma foto para outra. No caso, o problema é mais econômico do que cultural. Mas o cinema é isso: saber resolver os problemas que surgem durante a filmagem. No caso, eu devia ter previsto o uso de fotos da fase final do quadro já que conhecia bem a maneira do Iberê trabalhar.
Walter Carvalho – Por exemplo, em Entreatos, que é um documentário sobre a eleição do Lula, do João Moreira Salles, eu fiz 180 horas de captação de imagem, com a câmara no ombro. Jamais ela foi no tripé e jamais eu acendi um refletor, a iluminação; eu entrava e saia de dentro do carro com o Lula, Lula metalúrgico, e entrava num hotel para uma reunião com empresários por exemplo. Eu ia atrás com a câmara, e ele passava na portaria do hotel para pegar o elevador, entrava no elevador, e eu ia modificando, adaptando a câmara à luz daquele momento, corrigindo diafragma, mudando o filtro e balanceando o branco, tudo simultaneamente sem cortar, porque tudo poderia acontecer naquele momento, naquele percurso que eu estava indo com ele. Então eu não tinha nenhum, mas absolutamente nenhum controle sobre essa realidade. Se eu ficasse com a fotografia deselegante, com uma fotografia sem beleza, com uma impureza na imagem não importava, porque o assunto é maior que a beleza nesse caso. Então, é preciso, no documentário, estar atento às possibilidades. Isso não quer dizer que você invalide a tentativa e a busca da beleza através da imagem, você está sempre procurando, se você pode fazer de um ponto de vista mais elegante você faz, por que você vai fazer de um ponto de vista que fique feio? Não é o caso. Você está sempre procurando. Agora, nem sempre a realidade te permite procurar isso. No caso do Entreatos a câmara estava onde era possível estar. Às vezes eu estava num lugar que era até proibido eu estar. Tinha uma reunião que eu não podia filmar e eu forçava a barra e tava naquela reunião filmando, então nem aí eu poderia estar, quanto mais pensar numa imagem que tivesse uma determinada beleza necessária para o plano. O que interessava era o plano ser captado, era a realidade ser captada na sua essência. Isso muda se eu estiver fazendo um filme de ficção sobre um determinado personagem que é candidato à presidência da república. Aí eu vou preparar o cenário, eu vou iluminar etc. Eu posso fazer o plano absolutamente igual, saindo de dentro do carro, entrando na portaria do hotel, na recepção do hotel, pegando o elevador, e indo até a sala de reunião, e preparar todo esse percurso de uma forma correta, e aí eu estou fazendo um filme de ficção. Eu falei demais, mas eu acho que essas duas maneiras que eu vejo é o que estabelece a grande diferença entre o que é filmar para o documentário e o que é filmar para a ficção. Eu vou dar um exemplo: de um dos maiores documentários feitos na história do documentário, que eu considero, que é o Ônibus 174. Veja bem o valor do documentário nesse filme, como ele tem um valor que extrapola qualquer expectativa. Depois do ocorrido do personagem Sandro, do Ônibus 174, o camarada pegou 5, 6, 4..., não me lembro agora, câmeras de televisões diferentes, e um ano depois ele pega esse material e descobre um filme com uma densidade dramática extraordinária, no entanto ele não rodou um plano feito por ele, ele não controlou nenhuma dessas câmeras. Essas pessoas, por sua vez, estavam lá sem controle da situação porque havia risco de vida, tanto de quem estava filmando, como de quem estava sendo filmado, das pessoas que estavam naquele ônibus, das pessoas que estavam fora do ônibus. Tanto que uma pessoa morreu por conta disso e, consequentemente, o objeto da sua especulação, que é o caso do personagem Sandro, também faleceu. Então, havia um perigo, e ninguém se colocou ali, dizendo: “Aqui é o plano perfeito!”. Não! Disseram: “Aqui é o plano possível!”, “Aqui eu posso ver uma parte do ônibus” – e rodou. Você juntar essas imagens todas num filme só, já tem um problema de direito autoral. Você tem que comprar, negociar com essas televisões, e a partir disso, ele evidentemente filmou mais: filmou os parentes, filmou os amigos, filmou a situação política, o inquérito, os polícias, filmou as pessoas envolvidas diretamente no ocorrido, e montou a partir de imagens que ele não teve nenhum controle, nenhuma ingerência. Ele monta um filme absolutamente extraordinário que é o Ônibus 174, que é o maior exemplo de como você pode se utilizar de uma imagem como essa.
3 – Cada vez mais realizadores fazem seus filmes em vídeo. Quais as diferenças entre filmar em película e nos novos equipamentos digitais?Cada vez mais realizadores fazem seus filmes em vídeo. Quais as diferenças entre filmar em película e nos novos equipamentos digitais?
Adrian Cooper – Como fotógrafo de documentário, eu não distingo demasiadamente entre os diversos suportes da imagem. É claro que existem diferenças técnicas entre a captação de uma imagem em filme 35mm, 16mm, em vídeo digital, em MiniDV e HDTV.
Cada formato determina questões como o tamanho e agilidade da equipe, o tamanho do equipamento da luz, a “invisibilidade” da equipe, a sensibilidade do suporte e a resolução da imagem, facilidades de pós-produção etc., mas todas partem do mesmo princípio e do mesmo ponto de partida – a imagem captada na hora da filmagem –, a maneira que a realidade se apresenta em frente de uma lente e como é captada num suporte qualquer. Nesse sentido, todos os suportes são iguais. A discussão técnica sobre os prós e contras de cada suporte é infinita e, acho, não cabe aqui.
Aloysio Raulino – Bom, o que se pode diferenciar entre os dois, e isso é bastante notável, é o custo. O custo não significa só o preço de uma câmera, seu aluguel, sua aquisição, nem só também o preço do material sensível, a diferença de preço de fita magnética, fita vídeo, e agora disco e etc., ou a película, que implica também revelação, processamento e depois telecinagem e copiagem. A diferença é o custo, além dessas características que são técnicas. Técnicas e mecânicas. Tem uma outra diferença de custo muito grande que é a agilidade do tamanho da equipe. Quer dizer, o tamanho da equipe se converte em economia, se converte em agilidade, no sentido de que você precisa de menos gente e de menos tempo de preparação e ajuste para a confecção da imagem. Você precisa em alguns casos, de menos luz, porque há câmaras bastante sensíveis em vídeo, que permitem trabalhar com condições de iluminação bastante baixas, bastante escassas em termos de quantidade. Então o vídeo ajuda, e isso mesmo antes de haver esses procedimentos que hoje são corriqueiros de transferência de vídeo para película a posteriori – você captar a imagem em vídeo digital e depois fazer um procedimento de conversão para negativo em 35mm. Você pode arguir que a qualidade não é tão precisa, digamos assim. A virtude plástica, técnica da película, em termos de definição e de resolução pode até ser melhor, mas o que você ganha em troca disso é espantoso. Vou dar só um exemplo: O prisioneiro da grade de ferro é um filme em que a gente captou cento e setenta e tantas horas de material. É um filme de duas horas ao longo de sete meses, só de imaginar nosso percurso dentro desse filme, que é todo dentro de um presídio, o Carandiru, só de pensar isso em película já seria impossível de se fazer. Completamente diferente, não é? Em todos os aspectos, o custo disso... nós tínhamos uma equipe de seis pessoas, o que é impensável em qualquer filme em película, mesmo se captado em 16 e super 16mm, o custo do equipamento ao longo desse tempo e essas 180 horas de material sensível, não é preciso nem dizer que seria feito de outro jeito, e eu tenho certeza, de maneira menos expressiva, então ficaria mais precário o resultado final, embora a gente saiba que a película tem seu preciosismo e tal. Mas nesse caso, por exemplo, era totalmente impossível. Acho que quase a totalidade dos documentários em longa-metragem hoje estão revestidos dessas características.
Edgar Moura – “Enquanto houver ar para respirar e olhos para olhar, isso viverá e vivendo vos fará viver”.
“Enquanto houver gente e olhos, isso viverá. O ‘isso’, embora ele [Shakespeare] não soubesse do que estava falando, é evidentemente a fotografia. Não a fotografia acidental do lambe-lambe da esquina que fotografa o que pode e tem como resultado o acaso, e sim, aquela fotografia que [Vittorio] Storaro gosta de citar, o ‘photo-grafar’. O ‘escrever com a luz’. Só que o sentido que estou usando aqui não é o do Storaro que pretende escrever como se fosse co-autor do filme que faz. Uso no sentido que Shakespeare quis: ‘Enquanto houver olhos para ver’. Quer dizer: enquanto a luz passar por uma lente e tocar uma superfície photo-sensível, isso viverá. E ‘isso’ quer dizer ter olhos para ver o efeito que a luz faz quando fere a superfície sensível. Esta superfície tanto pode estar na retina, no fundo do olho, quanto no filme de uma máquina de fotografia, ou no CCD do VT. Pode também estar num telescópio, ou no filme 35, 75, 80mm, no Super-8 ou em qualquer sistema que você possa imaginar ou inventar. Todos eles têm que ter uma lente para focalizar os raios da luz e uma câmara escura onde os raios se cruzam antes de chegar à superfície photo-sensível”.
Mário Carneiro – Para o documentário, as câmeras novas que aprimoraram grandemente a sensibilidade do filme fazem baratas as gravações noturnas. Em Banda de Ipanema de Paulo César Saraceni filmamos cafés cheios de pessoas à noite e tudo em luz natural. O digital permite a passagem para a película sem problemas. Basicamente, a diferença entre filmar utilizando filmes e gravar com câmera de vídeo é que o filme permite utilizar toda a sua gama de filmes entre 50 e 500 asas. As câmeras digitais podem chegar a sensibilidades maiores à noite, lugares em que se comportam com grande acuidade. Colocar sempre as pequenas câmeras em tripés importantes, tripés de câmera do cinema profissional porque isso torna a câmera “respeitável” pelo próprio cameraman. Isso cria um respeito pela câmera enorme. É preciso perder essa mania de pegar a câmera e ficar rodando com ela de um lado para o outro, fazendo “cinema nervoso”, como chamam os japoneses.
Walter Carvalho – Eu gosto sempre de dar os exemplos. Quando nós fomos fazer o Entreatos, o João chegou a me perguntar o que eu achava, se a gente deveria fazer com película. Eu falei: “Ô João, eu acho que do jeito que tá se configurando esse filme de acompanhar um candidato numa campanha de presidente da república, exige que a gente lance mão de um suporte que seja mais leve, mais compacto, mais ágil, que não precise de troca de chassi, que possa ter a possibilidade de filmar com mais de uma hora de duração e que dê mobilidade à realização desse filme. Acredito que, fazendo com filme, poderíamos até ter uma qualidade imagética, digamos assim, mais apurada, mas provavelmente tão sofrida quanto, porque eu não teria nenhum controle da luz”. Então eu acho que o uso do suporte videográfico, o uso do suporte eletrônico ou o uso do suporte fílmico, depende só e exclusivamente da proposta de trabalho que você tem em relação ao tema e do próprio tema. Quem dirige, quem dita, quem mostra, quem pede, quem solicita que tipo de suporte deverá ser empregado naquele filme é o próprio assunto e os próprios meios através dos quais você vai abordar aquele assunto. Não vejo outra explicação a não ser por aí. Evidentemente que às vezes eu recebo telefonemas de alguns companheiros que querem fazer um filme e que me dizem no meio da conversa que optaram fazer naquela bitola, digamos, eletrônica, porque ele tentou fazer e não tem dinheiro, mas ele quer fazer de qualquer maneira, em vídeo por exemplo, porque depois ele dá um jeito, volta pra película e tal, não sei o quê. Eu fico um pouco desinteressado por esse tipo de projeto. Por que? Porque se o camarada me conceitua um assunto, um tema de uma forma que tem as características de um filme feito com um determinado suporte, e não o faz porque ele não tem acesso àquele suporte e passa a fazer com outro, ou o suporte tá errado ou o conceito tá errado, entende? Então eu acho que você ao descobrir o assunto, ao conhecer o assunto e ao eleger um conceito de como filmar esse assunto, nasce daí a bitola, o suporte que deverá ser empregado para utilizar naquele filme.
O que eu quero dizer com isso é que os chamados suportes eletrônicos de uma maneira geral, seja ele digital, seja ele analógico, e o suporte fílmico, as duas maneiras são absolutamente eficientes na sua maneira de ser, digamos assim, na sua forma de ser do formato. Eu não elejo nem um nem outro como o melhor. Os dois são eficientes. Agora, eles são mais eficientes ainda, eles se completam quando a adequação do tema é proporcional ao formato escolhido. Então eu não tenho preferências nem por um nem por outro. Eu tenho são exigências de um e de outro. Se eu optei por um tipo de formato que atende ao meu tema que eu vou filmar, eu vou exigir desse formato o máximo de elaboração dele, o máximo que aquela tecnologia vai me oferecer pra que eu possa aprofundar cada vez mais o tema que eu vou filmar.
4 – No documentário, a responsabilidade do fotógrafo pela mise-en-scène é significativa. O caráter da filmagem dá uma autonomia maior ao cinegrafista, muitas vezes responsável por transformar em "cena" o acontecimento ou a situação filmados (sem ter como consultar o diretor). Como você vê o papel do fotógrafo no processo criativo dos filmes documentais?
Aloysio Raulino – Na verdade se não houver uma colaboração no documentário, realmente, ou ele esfria ou ele realmente perde um pouco a agudeza, digamos assim. Perde um pouco o olho das coisas. Eu tenho a impressão que esse colaborador, esse que faz a imagem no documentário, ele também não pode seimpor e querer também autonomia, dar as costas, começar a fazer algo que seja à revelia de uma ideia maior, de uma ideia total do filme. Isso também é uma coisa que a gente tem que levar sempre em consideração, quando você falar em um projeto de um diretor, aí é ou não é... Há uma ideia, há um percurso narrativo que ele se propõe a ter com você, então esse equilíbrio é importante. Isso que dá a cara artística, a cara narrativa ao documentário, o tempero necessário. Quer dizer, o que traz de interessante nisso é esse equilíbrio dessa colaboração entre o fotógrafo e o realizador.
Mário Carneiro – Quando fiz Arraial do Cabo com Paulo César Saraceni, assinamos juntos a autoria do documentário. Tudo depende então da evolução do trabalho. Como acho que o fotógrafo deve de preferência ser também montador, e no filme isso mostra o meu lado de autor bem evidente. Mas normalmente o diretor é importante para definir, na ação que está ocorrendo, qual a imagem significativa para ser filmada daquele momento. Sem o som direto, pode se falar em voz alta e com o som direto por gestos e guiando o cinegrafista com sua câmera.
Walter Carvalho – Eu vou dar um exemplo porque ocorreu comigo, porque é uma intervenção minha no momento da filmagem e que passou a ter um valor, pelo menos para mim, enquanto narrativa. Não pela imagem, mas pela atitude, que é o seguinte: o plano final do filme é um plano em que eu saio com a câmara pelo corredor, acompanhando o Lula, que naquele momento sai da suíte do hotel, com todo o seu staff, com todos os seus correligionários e familiares. Ele sai da suíte do hotel e vai até o elevador. Eu vou com ele, paro na frente do elevador, e ele entra no elevador com Dona Marisa, e vão entrando os políticos, os correligionários, e eu fico parado na porta. A intenção era chegar embaixo com ele, com o Lula, porque lá em baixo havia 200 mil fotógrafos de imprensa, de televisão etc., recebendo o Lula que ia ser visto pela imprensa pela primeira vez como presidente na história da vida dele. Até então ele não tinha aparecido como presidente, ele tinha sido eleito e se reconheceu presidente naquela suíte do hotel, no vigésimo tal andar de um prédio, em São Paulo. Aquela imagem dele ia aparecer para a imprensa pela primeira vez. Ia acontecer naquele momento. E eu, meu coração disparado, porque eu queria registrar isso, e quando a porta se abriu, que foi entrando gente dentro do elevador, o elevador ficou entupido, não cabia mais ninguém, o último a entrar foi o segurança, um cara que dá dois de mim. Então o elevador ficou entupido. Enquanto isso, a menina da produção do meu lado, no elevador do lado, fala pra mim... isso tá no filme, você escuta ela falar: “Waltinho... o outro elevador tá aqui”. Que era para eu descer pelo outro elevador, juntos, e me encontrar com ele lá em baixo, e ver esse encontro dele com a imprensa. O que eu fiz? Uma intuição, um ímpeto, na hora, me fez colocar o pé, estirei o pé na hora que a porta foi fechar. Eu estirei o pé, a porta bateu no meu pé e voltou a abrir. Quando ela abriu, eu entrei dentro do elevador. E fui com o plano enquadrando o Lula até embaixo, no elevador, aonde, me lembro bem, ele aconselha o Suplicy a não ir pra onde ele estava indo, que era lá na Avenida Paulista, encarar a multidão, porque o Suplicy tinha feito uma cirurgia, então precisava ir pra casa descansar. E aí ele vai dizendo isso e cantarola: “Lu-la-lá...”. Então, nessa parte não tem corte, e ele vai direto até o Lula chegar, encontrar a imprensa e todo o hall do hotel ficar desocupado, livre... Esse é o exemplo de uma imagem captada ao sabor do acaso, ao sabor do ímpeto e da atitude que o fotógrafo tem que tomar para retratar uma determinada realidade, e nunca pensar que se aquele elevador ia ficar escuro, se ia ficar claro, se ia ficar verde, se ia ficar roxo, se ia ficar vermelho. Isso não teria a menor importância, e jamais passaria pela minha cabeça pensar dessa forma, porque eu estou pensando naquele momento, exatamente, como devo fazer para reter essa imagem dentro da câmera.
5 – Nesse sentido, a fotografia corresponde a uma espécie de "co-autoria". Como se dá, em sua experiência, a relação com a direção do documentário? O que é essencial saber sobre o projeto do diretor, em sua concepção?
Adrian Cooper– O fotógrafo quase sempre é o principal responsável pelas imagens que compõem um documentário, podendo ser considerado, nesse caso, praticamente o co-autor do filme. Frequentemente o diretor assume a função de “coordenador” ou “produtor” (na televisão inglesa, o diretor é, de fato, intitulado produtor). As imagens que o fotógrafo produz, com sua própria “visão” (tempo, duração, ângulo, aproximação ou distância, movimento e, sobretudo, seleção do que é importante), são, essencialmente, o conteúdo do filme.
Assim, cabe ao fotógrafo compreender e traduzir a visão do diretor, e para isso é necessário que ele (ou ela) seja consciente da “linguagem” do filme que está fazendo. Ele precisa entender a “gramática” do cinema – a construção de um filme – para poder oferecer ao diretor e ao editor os parágrafos, as frases e as palavras individuais que irão criar o “texto” do filme final.
Edgar Moura – “Muitos fotógrafos, se forem interrogados sobre o quadro, darão uma mesma resposta: ‘O quadro me afasta dos acontecimentos. Me protege’. É fácil entender isso. Olhe as imagens dos fotojornalistas. Veja todas as guerras e revoluções que eles presenciaram. Como conseguiram conviver com tanta fome e violência sem desistirem? É fácil. Experimente olhar as coisas por dentro de uma câmera. Não é preciso ser fotojornalista para entender o porquê. Qualquer pai, ao gravar o parto do primeiro filho, vai estranhar a distância a que a câmera o colocou dos acontecimentos. Tudo se afasta. O quadro nos liberta das emoções. Talvez as preocupações técnicas sejam o primeiro fator a separar o fotógrafo da realidade, pois, mesmo enfiado no Saara, no meio da fome e da guerra, a preocupação do fotógrafo não é com aquela criança específica que está morrendo de fome. Fotógrafos sempre dirão que trabalham pela humanidade, que fazem fotografia ‘humanista’ e que estão sempre a denunciar isto e aquilo. Sabem, porém, que é preciso fazer um enquadramento tão perfeito, uma luz tão dura, uma composição tão interessante que leve o editor da revista a escolher as suas fotos, no meio de milhares de outras fotos de outras milhares de crianças morrendo de fome. Aí, preocupam-se com o quadro e se afastam da realidade. Alguns nunca conseguirão se distanciar através do quadro. Nunca serão fotógrafos. Ao invés de fotografar um ferido, prestarão socorro a ele ou o matarão. Serão, então, médicos sem fronteiras ou soldados sem piedade. Ou diretores”.
6 – Como fotógrafo, como você acha que deve se dar o trabalho de equipe num documentário?
Adrian Cooper – Para os outros membros da equipe, é extremamente importante ficar atento no que está ocorrendo com a câmera. Muitas vezes uma bela sequência é arruinada porque entram em quadro membros da equipe que estavam desatentos. Isso acontece muito. Em todos os momentos, deve haver uma atitude de alerta, de atenção no que está sendo filmado, para onde a câmera está voltada, e se está rodando ou não.
A mesma coisa vale para o som.
Finalmente, nunca é demais repetir que o quesito da empatia é fundamental. A empatia vai além da simpatia, nasce do respeito e do reconhecimento. Quando existe empatia, o fotógrafo participa da realidade e o sujeito participa do filme. Essa qualidade não se aprende na escola, ela vem do coração. Embora invisível, inevitavelmente acaba surgindo na tela. Existe uma verdade quando se faz cinema, e principalmente cinema documentário: tudo que acontece fora da tela, atrás da câmera, entre os membros da equipe, sempre acaba aparecendo na tela. É importante lembrar; a câmera revela em duas direções: o que está na frente da lente e também o que está por trás.
Aloysio Raulino – Bom, eu já mencionei essa colaboração, essa simbiose, essa identificação muito grande, entre o diretor e o fotógrafo, não é? Na prática mesmo, na práxis da execução do filme entre diretor e fotógrafo, mas acho também que tem outras interações que são importantíssimas, por exemplo, com o som. É muito importante, porque, o técnico de som e o fotógrafo estão munidos de visões, de tempos concretos de fazer as coisas, noção do espaço e questão até de tempo de preparação que cada um precisa. E se esse tempo estiver mais ou menos identificado e mais ou menos bem sincronizado, no lato senso, porque se não houver uma mentalidade, assim de maneiras... desse modus operandi das unidades, o som e a imagem, realmente aí a coisa desanda bastante, não é? Isso é um ponto chave. Quer dizer, o que seria de um documentário com o som deficiente? Em tese, o documentário, além da força expressiva das imagens, é a expressão das palavras, muitas vezes como fio condutor de tudo. Então, quer dizer, se falha esse encontro, fica precário, fica desequilibrado, eu acho que isso aí transforma o documentário numa coisa muito precária, não só técnica como expressivamente. E em segundo lugar, eu vejo que existe, por exemplo, a questão da produção. Quando há o elemento de produção dentro do filme, tem que haver uma compreensão também mútua de que não se pode fazer exigências descabidas à produção, exigências de recursos, de situações ideais etc. Também isso ajuda muito, com muita agilidade, a produção em documentário, ela [a produção] é necessariamente um ato criativo. É um ato criativo porque ela é justamente uma parte da realização e da compreensão do andamento dos acontecimentos, que é importantíssimo. Nesse momento, eu fico com grande certeza do que eu vi no trabalho do Gustavo Steinerg no filme O prisioneiro da grade de ferro. Ele foi realmente um mentor ali, da possibilidade humana e técnica do filme, então, fica muito evidente, e inclusive em palavras estrangeiras tem a figura do produtor do documentário, que se chama “Produtor criativo”. Então já está embutida essa ideia de que a criação passa necessariamente pela produção, e outra coisa importantíssima, e a posteriori, mas também é a mesma equipe de realização do documentário, é você ter uma noção que isso vai ser editado... de que quem edita não vai, também, menosprezar um material que é um pouco mais precário tecnicamente do que outro, não vai querer maquiar nem limitar, entre aspas, as situações que às vezes são de uma enorme riqueza, embora mais precárias tecnicamente. Se juntar tudo isso eu acho que você tem um bom documentário.
Edgar Moura – “(...) os melhores documentários são aqueles onde a equipe não tenta se esconder do assunto e, sim, se integrar a ele. Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, foi filmado assim. ‘... antes de começar a filmar, fixamos regras baseadas no fato de que um filme é um filme, e não tentaríamos disfarçar isso. O técnico de som deveria estar tão próximo do entrevistado quanto necessário, sem jamais se preocupar em estar dentro ou fora de quadro. Ao contrário, às vezes seria indispensável que ele aparecesse. Para o diretor essa tendência seria exacerbada, ainda mais porque precisava conversar com os personagens como se conversa na vida real, ou seja, muito próximo deles’.
Existem outros métodos e outros filmes. O importante é ter um, o método, para poder fazer o outro, o filme.”
Mário Carneiro – O ideal é o trabalho conjunto na feitura do roteiro e na escolha das locações, havendo troca e diálogos, cada um procurando fazer do filme uma obra coletiva. Sem estar preocupado com a autoria que o cinema de autor se propõe. É frequente no documentário, por ausência de roteiro fechado, a grande quantidade de coautores, ou seja, todos desenvolvem mais ou menos uma cena a ser filmada nas suas cabeças. Isso torna a figura do diretor de produção importante.
Walter Carvalho – Eu acho que eu respondi essa pergunta, que ela está embutida na resposta quando eu falo do Ônibus 174, e quando eu falo dessa atitude em relação ao filme Entreatos, no documentário. Poderia acrescentar alguma coisa no sentido em que numa equipe de documentário a afinidade, o compromisso e a cumplicidade que o diretor tem que ter com o câmera é recíproca e tem que ser absolutamente integral, porque tudo acontece diante dos seus olhos, dele e teu, e toda a atitude desta câmera é uma atitude de inteligência, você nunca sabe o que pode acontecer com aquela imagem, você nunca sabe se... Você veja, o cara que filmou aqueles bombeiros em Nova York, quando aconteceu o 11 de setembro, o cara estava acompanhando o trabalho dos bombeiros na rua, e no entanto ele teve o reflexo de girar quando ele ouviu um barulho, então ele olha e registra o avião que estava batendo no prédio. No caso eu não sei agora te falar com certeza se ele era o diretor também. Agora, mas sendo diretor ou não, a atitude de ele olhar com aquela câmera é típica de uma atitude de quem está muito inteirado, de quem está muito aonde a câmera é sua extensão. Ele é a extensão da câmera e a câmera é a extensão dele. Uma pessoa que tem um gesto desse não está preocupada com a estética “Ah não, peraí!... volta o avião que é melhor enquadrar daqui”. Isso não existe. “Volta o avião que daqui fica mais bonito”. Seria uma insanidade. Agora, quando você está numa situação de controle, trabalhando ao lado do câmera, ao lado do fotógrafo, de certa forma ele tem quase que se imaginar olhando através da câmera. Até porque o câmera está apenas com um olho, o outro está fechado. O diretor está vendo com os dois olhos, mas às vezes o diretor está tão absorvido pelo seu objeto do plano, diante dele numa entrevista, por exemplo, que não percebe determinadas coisas que estão acontecendo em torno. O fotógrafo, a princípio, filma apenas com um olho, porque o outro fica fechado. Mas você abre também... eu pelo menos, tomo muito conta quando eu estou por exemplo andando com a câmera, o meu olho direito está dentro do visor da câmera, mas meu olho esquerdo está abrindo e fechando sempre, porque eu tenho que ver para aonde eu estou caminhando, eu tenho que olhar se eu vou bater em alguma coisa, se eu vou esbarrar. Então, essa harmonia entre os diretores e os câmeras, ela deve existir. E tem que haver entre eles uma absoluta confiança naquele momento, sendo que o diretor deve cochichar de vez em quando no ouvido do câmera, às vezes você não está percebendo alguma coisa e ele está, então... E no caso do técnico de som é a mesma coisa. As características de um técnico de som que trabalha com documentário, que evita que o Boom, que o microfone fique em quadro. Eu pelo menos quando estou fazendo documentário eu evito, mas se o microfone entrar em quadro e o que estiver acontecendo ali seja importante pro documentário eu não me preocupo com isso. Então na verdade é um trabalho de muita concentração, de muita disciplina, e muita solidariedade. Uma equipe que faz documentário tem que estar ligada nessa ideologia: concentração, disciplina e solidariedade. Sem isso você não realiza um documentário, porque com esses três elementos entre a equipe, acontecendo entre a equipe, tudo é possível, porque a realidade, ela é muito maior do que a sua capacidade de controle sobre ela. A realidade é sempre maior do que você. Se você acha que ela se esgotou, ela dá uma reviravolta e te surpreende. Ela, a realidade, por mais que você se prepare de todas as formas, através do conhecimento do que você vai filmar, através dos equipamentos que você vai utilizar, é sempre surpreendente; e quando você chega para captar [a realidade], ela dá a volta por cima, é maior do que você imaginava, e você não tinha previsto aquilo. O que é imprevisto no documentário é tão importante quanto o previsto, porque você nunca sabe o que o imprevisto pode trazer. E se o cineasta não estiver concentrado, não estiver disciplinado, e a equipe não estiver solidária entre si, a casualidade, o acaso pode passar por ele e ele não perceber. Assim ele pode não conseguir realizar uma coisa transcendente, maior do que ele esperava, porque ele não percebeu. A única maneira de você evitar que o imprevisto, o acaso, passe por você e se vá, é estar concentrado, disciplinado e solidário enquanto equipe.
7 – Eduardo Escorel, numa conferência recente, falou que uma das tendências com as quais se defrontam os documentaristas hoje é a "obsolescência": para quê filmar o "outro" se, com a popularização das câmeras digitais, os "objetos" dos filmes podem se tornar sujeitos de suas próprias representações? Como se põe esse desafio para os fotógrafos?
Adrian Cooper – Respeito muito o Eduardo (sou amigo e tenho trabalhado muitas vezes com ele). Acho que o conceito de obsolescência dele não se refere especificamente ao trabalho do documentarista e nem se refere exclusivamente à democratização dos meios de produção. A visão que cada realizador traz para seu filme, não importando o suporte ou a sofisticação da produção, é pessoal e exclusiva.
Ninguém faz ou vai fazer o filme do outro. Há tantas visões como pessoas neste mundo. Se essas visões valem, só o tempo (a crítica e o público) vai determinar. Acho, pessoalmente, maravilhosa a democratização dos meios – quem sabe que podemos ver e usufruir dessas múltiplas (e não profissionais) visões da realidade – quanto mais, melhor. Por causa dessa democratização, os arquivos do futuro vão ser mais ricos e abrangentes do que aqueles de hoje.
Acho que a questão da realização cinematográfica depende do talento e a intenção de cada realizador.
Convivemos durante mais de cem anos com a fotografia amadora – a fotografia do fim de semana, da família, das crianças, das viagens – e nem por isso a fotografia documentarista, jornalística, publicitária ou artística tenha sofrido uma diminuição de sua potência ou relevância.
Nesta época de globalização, o mundo se encolhe e ao mesmo momento, contraditoriamente, se expande. O que era exclusivo a uma elite se torna acessível a um maior número de pessoas. A capacidade de contar histórias, sejam verdadeiras ou ficcionais – fonte universal da rica cultura dos povos –, nunca foi, ou podia ser, uma exclusividade dos redentores de tecnologia. A revolução digital traz consigo a capacidade de universalizar essa nova maneira de registrar essas histórias. Só pode ser incorporada e aplaudida.
Aloysio Raulino –Bom, eu acho que nós temos que saudar esse acontecimento, na verdade. Os fotógrafos não detêm mais o fogo sagrado da imagem, e essa energia toda do cinema está realmente passando por alguma transformação. Mas eu acho que nós estamos dentro disso, quer dizer, todos fazem e nós fazemos também.
Eu tenho a impressão de que essas duas coisas caminham juntas, e não uma ou outra. Não quem já vinha fazendo ou quem passa a fazer a partir do acesso aos insumos, aos meios expressivos do equipamento. Eu citaria como um exemplo que eu participei, que eu vivi, O prisioneiro da grade de ferro, filme que como se sabe foi feito em conjunto com os prisioneiros – os residentes, vamos chamar assim, com eles próprios sendo os interessados no assunto. Minha impressão é a seguinte: todos têm lugar ao sol. O que seria obsolescência, no caso, citando aqui o Eduardo, seria você dar as costas para esse fato. Você se encastelar de volta numa coisa que não existe mais, que é a coisa outorgada de você ser o detentor do conhecimento, do equipamento, da mancha estrutural da expressão. Então, como isso não vai mais ser assim, eu não vejo obsolescência a não ser que você se retire dessa possibilidade de estar no meio das coisas também. Então, eu falei em “luz para todos”: todos com lugar ao sol e todos fazendo a sua expressão.
E estilo também é bom. Estilo é indivíduo, a maneira de ver é do indivíduo, é uma percepção do mundo, e todo mundo tem em maior ou menor grau. Eu tenho medo é dessa coisa ser achatada: “Popularização, liberou geral, todo mundo fazendo de qualquer jeito...”. Eu acho que não é assim, cada um vai achar sua individualidade dentro da expressão, dentro do documentário, dentro da fotografia.
Mário Carneiro – Acho essa possibilidade de autoria uma ideia que percorre o Cinema Novo desde Ladrões de cinema de Fernando Cony Campos passando por Zé Rico e milionário de Nelson Pereira dos Santos, que deixava os cantores na prática de coautoria, até Prisioneiro da grade de ferro de Paulo Sacramento, filmado pelos presos que aprenderam com o diretor a filmar. Serão sempre diferentes os resultados obtidos por um amador de um depoimento obtido pelo diretor. Mas, como as tecnologias digitais que se tornam cada vez mais abrangentes, os autores podem sonhar com um autorretrato 24 horas.
Walter Carvalho – Eu acho que faz um certo sentido a provocação, é uma provocação saudável do Eduardo Escorel. Mas acho também que é preciso que haja uma consciência desse sujeito, desse “objeto” que vira sujeito. Eu acho que é necessário ter uma consciência do uso que vai ser feito daquilo. Num outro nível, você pode ter uma pessoa que inadvertidamente liga uma câmera e acontece, no espaço daquele mundo em que ele ligou a câmera, uma coisa que não tem o valor de um documento naquele momento, mas poderá ter anos depois. Alguém que tenha a imagem, por exemplo, de uma pessoa que se transformou num grande político, ou num grande artista, e que antes era uma pessoa comum, com uma vida comum. Se essa pessoa filmou ou foi filmada por alguém de alguma forma no momento em que fazia aniversário de 15 anos, e agora o cara tem 60, aquilo passa a ter uma importância documental extraordinária, porque aquele “objeto”, aquele sujeito passou a ter uma importância dentro do contexto que não estava prevista. Eu acho evidentemente que os meios eletrônicos que facilitam a captação da imagem transformaram o cameraman num papel secundário dentro de um trabalho. Não invalida, por outro lado, a sua atuação. E o que é curioso dessa observação do Eduardo Escorel também, é que você, ao ter o acesso fácil a determinadas câmeras que facilitam a captação da imagem, tanto do ponto de vista de mercado, quanto do ponto de vista de custos, tem uma grande possibilidade de ter a revelação de algum lugar, de alguma coisa, de algum acontecimento, vindo da mão de um amador. Agora, não se pode exigir dessa fonte uma qualidade, digamos, profissional. Você tem que entender que aquele material tem uma importância inclusive porque não tem qualidade. E é engraçado como na pesquisa das novas tecnologias para fabricar melhores câmeras para o trabalho profissional, quem ganhou foi o amador. Quer dizer, o amador tem em sua casa uma câmera com uma capacidade de resolução suficiente para colocar uma reportagem em qualquer televisão. Hoje, uma câmera mínima amadora, com qualidade inferior desejada no campo dos profissionais, tem qualidade broadcast. Então eu acho que... na verdade, eu não te respondi, eu pensei aqui em alguns parâmetros, em algumas questões que essa afirmação do Eduardo coloca em cheque. Na verdade, é mais uma coisa para pensar... é isso.
Currículo
Cláudia Mesquita
Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Pesquisadora do cinema brasileiro, com mestrado e doutorado na ECA/USP. Publicou, com Consuelo Lins, o livro Filmar o real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo (Editora Jorge Zahar, 2008), e organizou, com Maria Campaña Ramia, El otro cine de Eduardo Coutinho (Cinememoria, 2012), publicado no Equador. Em 2018-2019, desenvolveu, na UFC, a pesquisa de pós-doutorado "O presente como história - estéticas da elaboração no cinema brasileiro contemporâneo".
Daniel Ribeiro
Pesquisador, curador e realizador de cinema. Integra o coletivo Filmes de Quintal. Doutor em Cinema pela Universidade Nova de Lisboa.
Como citar este artigo
MESQUITA, Cláudia; RIBEIRO, Daniel. A fotografia no documentário: uma entrevista com cinco fotógrafos brasileiros. In: forumdoc.bh.2005: 9º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2005. p. 145-160.