Mundialmente falando, a representação dos povos indígenas no meio cinematográfico foi apenas aquela feita por cineastas não indígenas, especialmente os norte-americanos da indústria cinematográfica de Hollywood, visivelmente inseridos no sistema para dar continuidade ao processo de colonização por parte dos Estado Nacionais e suas elites. No Brasil, o panorama não foi tão diferente, apesar de que, aqui, foi dada uma ênfase ao mito do “bom selvagem”. Esse mesmo mito já se constitui em si um grave problema, impondo viés ideológico que leva as pessoas a nos enxergar apenas como “povos da floresta”, que vivem e devem continuar isolados, e que deixam de ser vistos como indígenas após “se sujarem” e serem “branqueados”, em processo de exclusão social e étnica, transformados em pardos.
O cinema indígena aqui no Brasil surgiu principalmente com caráter político. Nesse sentido, a luta pela terra ganha uma nova perspectiva com o cinema indígena, e por cinema indígena me refiro ao cinema produzido pelos indígenas, e não o que simplesmente fala sobre nós. Os cineastas indígenas recontam suas próprias histórias, fazendo ligação histórica entre o passado e o presente, mostrando para as demais sociedades que nós somos os verdadeiros donos desta terra e que, historicamente, temos sido tratados como estrangeiros em nosso próprio território. O cinema indígena visibiliza a luta a sangue que os povos indígenas vivem neste país.
Importante falar que o cinema indígena também retrata nosso cotidiano, nossas vidas e nosso modo de ver o mundo, o que é chamado de cosmovisão. Nisso, retratamos nossos costumes, nossas histórias, nossa relação com o mundo espiritual, dentre outras questões que nos são relevantes. O cinema nunca antes havia cumprido sua função social com os povos indígenas como vêm cumprindo hoje.
Meu trabalho com audiovisual surgiu com a vontade que eu tinha de apresentar um produto de conclusão de curso que pudesse ser acessível para o maior número de pessoas de minha comunidade. Foi quando fiz meu primeiro documentário, Retomar Para Existir (2015). O documentário foi a forma de falar sobre nossa luta e estratégias para recuperar o território. Essa luta foi muito importante, não foi simplesmente uma disputa pela terra, foi uma disputa pelo direito de existir. No meu segundo trabalho, que também foi um documentário, dei continuidade à temática do território, trazendo as mulheres para o centro dessa discussão. Senti vontade de mostrar que as mulheres é que são as guardiãs das sementes – somos nós que temos uma relação mais íntima com a terra, somos nós que nutrimos nossos filhos, mas também somos nutridas pela terra. É uma relação que nos aproxima dos elementos que compõem nosso planeta. Esse contato com a terra nos faz entender a importância de cuidarmos dessa diversidade que temos o privilégio de conhecer e conviver. Esses dois primeiros filmes fecharam um ciclo de assuntos que eu gostaria de visibilizar.
Na sequência, entrei em uma fase de trabalho mais intenso para recuperar o território. Comecei juntamente com meu esposo, Samuel Wanderley, a plantar árvores nativas e árvores frutíferas em sistema agroflorestal, os conhecidos SAFs. Nesse processo de recuperar áreas degradadas, para mim, sempre existiu algo maior: eu quero que os encantados voltem a ocupar essas terras. E eu recupero também porque acredito que só estaremos protegidos se protegermos a natureza. Nesse contexto, surgiu meu terceiro filme, Kaapora o chamado das matas (2020). Esse filme me levou para um outro lugar: propus às pessoas discutirem para refazer as coisas de um outro modo.
Nesse processo todo de construção de Olinda Tupinambá, enquanto cineasta, acredito que minha relação com a terra foi me aproximado de uma estética própria e de escolhas de assuntos que têm relação com a natureza. Acabei me aproximando muito do "artevismo", a partir do qual proponho que meu corpo é uma extensão do processo de colonização, meu corpo é um corpo político, mas eu tenho sido resiliente como muitos dos meus antepassados, e para caminharmos para um lugar melhor é preciso enxergar outros mundos, é preciso se colocar no lugar do outro. Precisamos parar de achar que somos o centro deste universo, e entender que não somos nada sem o equilíbrio deste planeta. Precisamos entender que é o nosso modo de vida que está desestabilizando o planeta. Não são as “mudanças climáticas”, como algo descontextualizado, mas sim as interferências da humanidade nos processos naturais do planeta. Enfim, eu gosto de imaginar que podemos ser pessoas melhores. Que possamos entrar no rio e entender que estamos rodeados de diversidade e vida, e que cada uma delas tem uma forte ligação com este planeta e com nós mesmos.
Falando especialmente de Ibirapema (2022), é um filme sobre o qual não gosto de dizer muito, prefiro que as pessoas tenham a liberdade de interpretação dessa obra cinematográfica. Mas posso dizer o seguinte, trata de identidade, de resgate do que não se pode perder, de arte e, obviamente, da antropofagia em todos os seus sentidos. Ibirapema foi um dos meus filmes de mais complicada produção, que exigiu mais tempo para ficar pronto, que mais me exigiu diálogo e negociações para compor a obra, e que mais me exigiu enquanto artista, ainda mais do que diretora de cinema. Ibirapema dialoga com a arte brasileira, e também com filmes importantes para o cinema mundial. A obra, como todas as outras obras verdadeiramente artísticas, ganhou vida própria e conduziu sua criadora.
Currículo
Olinda Tupinambá
Indígena do povo Tupinambá e Pataxó Hãhãhãe, é jornalista, curadora, performer, cineasta e ativista ambiental.