A vida entre nascentes de rio e desvios do concreto

Fôlego Vivo (Associação dos Índios Cariris do Poço Dantas-Umari, 2021) e Panorama (Alexandre Leco Wahrhaftig, 2021)

“A gente não existe, mas estamos aqui”. A fantasmagoria presente no depoimento de um dos personagens de Panorama (Alexandre Wahrhaftig, 2022), ainda que parta de um diagnóstico pessoal sobre um sentir-se invisível nos espaços da cidade, não deixa de revelar também as acuadas disposições (disposição tanto de estar disposto como também dos arranjos formais) do próprio filme. Dentro de uma fenda cercada por torres de metros quadrados milionários, um shopping center de jardins suspensos e as pistas velozes da marginal Pinheiros em São Paulo, resiste a comunidade do Jardim Panorama. É nesse território onde o documentário dispõe sua câmera produzindo algo que é precioso no intento de trabalhar com uma dimensão referencial da imagem (eles existem, eles estão ali!), mas é, simultaneamente, muito moderado na produção de uma resposta ao estado das coisas (eles existem, mas eles estão ali habitando apenas nos limites daquelas imagens, não transbordam para fora delas).

É preciso colocar em contexto que o empreendimento fílmico de Wahrhaftig é particularmente atento ao sufocamento do viver e do habitar grandes centros urbanos como a cidade de São Paulo e isso se manifesta com uma adesão formal de seus filmes ao próprio entorno cromaticamente cinza, frio e impessoal que o objeto filmado impunha. Seus curtas E (de “estacionamento”), coassinado com Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos em 2013, e O Castelo, que fez também com Helena, Miguel e Guilherme Giufrida em 2015, são exemplos bem notórios desse exercício. São trabalhos que estão em sintonia com uma filmografia dos anos 2010 marcadamente absorvida por questões do direito ao território – urbano ou não – como uma dimensão central na luta anticapitalista. Nesses curtas, havia uma atenção particular ora aos enquadramentos estáticos que reproduziam a sensação de imobilidade desses ambientes – estacionamentos ou shoppings, são todos iguais –, ora aos movimentos notoriamente maquínicos (câmeras dentro de carros, elevadores) desses espaços.

Em Panorama, Wahrhaftig sai do circuito da imagem-máquina e chega, de fato, nos corpos dos sujeitos que sofrem frontalmente com os maldisfarçados sistemas de apartheid urbano. Entre modos observacionais e entrevistas mais expositivas, ele segue algumas pessoas que habitam aquele enclave na Zona Sul de São Paulo, bem perto dos muros erguidos pelos condomínios do filme O Castelo. Com isso, constrói aos poucos uma tessitura de memória e, portanto, de legitimidade daquele território. Antes dos “boca-rica” chegarem, as pessoas sempre existiram e estiveram ali. As fotos e vídeos de arquivo estão lá, a conversa entre vizinhas está lá, os poetas-músicos das rimas de resistência estão lá. Assim como está lá, no signo sonoro mais presente em todo o filme, o barulho do “mosquito de ferro”, helicópteros zunindo a sensação de constante estado de controle e vigilância.

No entanto, o teto do voo parece sempre baixo demais. Como o longa espiritualmente se localiza distante tanto dos filmes de intervenção social quanto dos documentários reflexivos que questionam o estatuto da enunciação, da própria máquina cinematográfica e até onde ela consegue chegar, tem-se sempre a sensação de que há uma distância segura entre a equipe do filme e os moradores do Jardim Panorama. O artifício usado ainda no começo do longa de pedir para uma moradora desenhar num papel a planta da casa que ela gostaria de construir, algo que poderia se transformar em uma fabulação para além das limitações impostas diariamente àquelas pessoas, é subaproveitado como ferramenta de imaginação, e mesmo de memória, para se transformar somente em um recurso gráfico usado como fundo de tela nos créditos finais.

Reproduzo a pergunta feita pela pesquisadora e curadora Amaranta César quando se pensa sobre cinema militante: “o que pode o cinema, no tempo presente da ação das imagens, diante do desejo de ação das imagens?” (CESAR, 2017, p. 16). Panorama, nesse sentido, não nos move para o desejo de ação das imagens, opera sempre dentro do limite da exposição dos problemas sem se implicar com eles. 

O mais próximo que o filme consegue chegar de um afeto mobilizante acontece nos momentos em que os poetas e rappers que ali moram fazem vibrar na voz suas crônicas sociais: “Antes da marginal, deixa nossa terra natal e vem pra capital/ são brasileiros e brasileiras em busca de progresso/construíram o Morumbi, mas não conseguiram o ingresso”. Se fosse ditado por esse ritmo e por essa base melódica, se estivesse de fato à disposição do “risco do real” (Comolli, 2001), o filme com mais facilidade sairia de uma zona de proteção demarcada por enquadramentos calculados e por uma montagem sóbria, que fazem todo sentido quando aquilo que se filma são estacionamentos e torres de prédios, mas se desconectam do mundo quando do outro lado da câmera se ergue a dimensão humana.

Inundações

Igualmente trabalhando em um território modificado e cada vez mais cercado por grandes obras pensadas à revelia das existências humanas que ali vivem, Fôlego vivo (Associação dos Índios Cariris do Poço Dantas-Umari, 2021) se implica um pouco mais na imagem. Tenta, de alguma forma, transformar o real a partir de encenações que a diretora elabora para um grupo indígena do povo kariri, comunidade da Chapada do Araripe, na zona rural do Crato, Ceará, que foi diretamente afetada pelas obras de transposição do rio São Francisco. Portanto, há um jogo entre o fato e a resposta performática a esse fato (o trabalho da diretora com artes cênicas voltada para os povos originários explica bastante suas decisões sobre as imagens). 

A visualização do fato se dá pelas imagens de uma obra que, naquele momento, em 2021, se encontrava abandonada. Canais vazios, lodo se acumulando, tubulações largadas no espaço. Dentro dessas tubulações ou diante desses canais, a realizadora propõe uma mise en scène: reunir parentes kariri que, juntos e cercados por esses cenários, criem movimentos de inspirar e soltar o ar dos pulmões. A encenação se articula, naturalmente, com o nome do filme, que, por sua vez, se explica já numa cartela de abertura do filme: os Tapuias Bravos, hoje conhecidos como os kariri, eram também chamados de Fôlegos Vivos dada a sua valente resistência à primeira grande inundação, a chegada dos colonizadores. 

A nova inundação a qual o filme faz referência é de ordem semelhante. Desta vez, a ameaça são os herdeiros dos colonizadores. Gente branca que, atenta às possíveis alterações do território com a chegada das águas do São Francisco (e antes ainda, com a construção de um açude), começa a invadir área indígena. A constante colonização desse território se manifesta quando a mesma performance do inspirar e expirar se repete em vários pontos da cidade do Crato, onde empresas usam do nome “cariri” como uma demarcação de pertencimento a um território que a elas não pertence.

O filme se torna, assim, uma tentativa de jogar com o universo simbólico dos kariri a partir de um exercício cênico entrecortado por depoimentos ora de duas mulheres mais antigas nesse território, ora de uma parte do grupo que aceita produzir as performances propostas pelo filme. Ao mesmo tempo que há um gesto externo que, em vários momentos, amarra o curta (trata-se, afinal, de uma repetida performance pensada não pelos kariri, mas pela diretora), servindo tantas vezes apenas como sequências de transição em uma montagem instável, há também uma predisposição para uma escuta sincera particularmente das duas mulheres acima citadas, pessoas cujos relatos produzem o sentido da existência (e do respiro) do filme.

Quando no final escutamos um dos personagens narrar que “um dia, os descendentes dos povos originários, guiados pelos espíritos de seus ancestrais, voltarão para vingarem-se do homem branco, destampando todas as nascentes e inundando todo o vale”, a imagem corta para uma terceira mulher, também mais velha. Mas ela nada fala, só respira. Talvez seja essa a imagem que, ainda que muito breve diante de nossos olhos, tenta destampar nascentes.

Currículo

Carol Almeida

é pesquisadora, professora e curadora de cinema. Doutora no programa de pós-graduação em Comunicação na UFPE, com pesquisa centrada no cinema contemporâneo brasileiro. Faz parte da equipe curatorial do Festival Olhar de Cinema/Curitiba. Atualmente, dá aulas de Produção Audiovisual e Linguagens e culturas visuais na Universidade Federal de Alagoas, como professora substituta.

Referências

CESAR, Amaranta. Cinema como ato de engajamento: documentário, militância e contextos de urgência. C-Legenda Revista do Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual, n. 35, p. 11-23, 2017.
COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: Catálogo do Forumdoc.bh.2001. Belo Horizonte, 2001.