O Ártico e a Amazônia são duas imensas regiões que englobam o que hoje chamamos de diferentes Nações, com fronteiras criadas por efeitos de colonizações iniciadas e mantidas em tempos diversos. Quando falamos da Amazônia, referimo-nos a um território que se expande por nove países (Brasil, Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia), abrigando centenas de diferentes povos indígenas falantes de uma grande diversidade linguística.
O chamado Ártico Circumpular também engloba, além do norte do Canadá, parte dos Estados Unidos, Noruega, Finlândia, Islândia, Dinamarca, Groenlândia e Rússia. Desde a chegada destes forasteiros, histórias e imagens destes lugares foram se construindo e circulando a partir de olhares impregnados de desconhecimento, fantasia, preconceitos e ferramentas ideológicas que constituíam e legitimavam as formas de dominação colonial. A construção histórica da ideia de “descoberta” do chamado “Novo Mundo” passava pela ideia de ter-se chegado a uma Terra Nullis, a lugares que não pertenciam a ninguém, onde não havia ninguém, uma ideia atrelada tanto à desumanização dos habitantes locais quanto à incompreensão das naturezas e paisagens e possíveis formas de sobrevivência nelas, ou com elas. Para um europeu, como imaginar ser possível viver em terras tão geladas como as do Polo Norte? Onde só se enxergava neve, branco, gelo. Uma terra desprovida de vegetação, com noites infindáveis e animais assustadores. Um cenário inverso, porém igualmente temido, era pintado sobre a Amazônia, a selva densa, insuportavelmente quente, úmida. Tão densa e cheia de vida, mas também cheia de perigos, morte e decomposição. Ambas as regiões aparecem nos relatos de viajantes, depois na literatura, em pinturas e diversas referências artísticas como símbolos do desconhecido e da natureza em seu estado prístino, alternando romantismo e preconceito, num fetichismo perverso que afastava o conhecimento aprofundado e o reconhecimento de seus habitantes verdadeiros.
A princípio, as duas regiões parecem opostas em todas suas características. Mas, para além dos contrastes óbvios, têm muitos aspectos em comum: ambas têm histórias sociais, culturais, econômicas e estéticas entrelaçadas entre os povos originários que habitam suas terras desde há muitos séculos e os invasores que ali se instalaram. Essas histórias envolvem processos de adaptação, exploração, colonização, resistência, proteção e reinvenção.
Diferente das percepções europeias, para os habitantes indígenas do Ártico e da Amazônia, seu entorno está longe de ser entendido como um espaço de “natureza pura”. Trata-se de paisagens, ou melhor, de mundos habitados por seres vivos, animados, dotados de consciência e subjetividade, entidades espirituais em constante comunicação e interação com os humanos, desafiando assim compreensões da natureza como um objeto ou recurso a ser explorado. Universos em constante construção e transformação que dependem de um delicado equilíbrio e cuidadosa relação para que seja possível a manutenção da vida.
A adaptação bem-sucedida e as estratégias de sobrevivência destes povos indígenas têm sido discutidas hoje quando se fala da crise ambiental causada pelas mudanças climáticas e seus efeitos catastróficos globais. A história ecológica dessas paisagens e de seus povos se torna especialmente relevante e as duas regiões ganham destaque internacional enquanto focos de discussão dos novos discursos sobre aquecimento global e o Antropoceno. O Ártico, com suas calotas polares e gigantescos icebergs derretendo, ursos polares vagando atrás de comida; a Amazônia, o “pulmão do mundo”, ardendo em chamas, são imagens que vimos circular nos últimos anos com grande preocupação.
Além disso, cresce também a valorização de ambos os territórios enquanto riquezas naturais, tanto do ponto de vista da biodiversidade quanto da exploração pesada de recursos em grande escala, causando grandes impactos e disputas econômicas. Esse entrecruzamento de discursos e pressões leva a grandes mudanças no meio ambiente e nos modos de vida locais, especialmente (mas não somente) das populações indígenas, o que novamente traz o Ártico e a Amazônia para uma situação semelhante e extremamente relevante nas discussões sociais, políticas e ecológicas globais.
Os efeitos desastrosos do modo de vida ocidental capitalista são sentidos ainda mais imediatamente justamente por aqueles que lutam há tempos para resistir a ele. Assim, vemos despontar no cenário global vozes indígenas como a do xamã yanomami Davi Kopenawa, que alerta para os impactos de práticas exploratórias como a mineração na Amazônia a partir de uma perspectiva eminentemente indígena que permite antever consequências drásticas que afetarão não somente seu povo, mas toda a humanidade, e perceber a importância do trabalho cosmopolítico entretido cotidianamente pelos povos da floresta. Assim também advoga a ativista Sheila Watt-Cloutier, ao defender emblematicamente o “direito de ter frio”, título de seu livro, em que conta os horrores da colonização no Ártico, do genocídio cultural e traça caminhos para resistência e soluções para sustentabilidade ambiental.
Ao ouvir as histórias do norte e do sul, não é apenas sobre processos coloniais e suas terríveis consequências que encontramos paralelos. Os povos que habitam estas regiões se relacionam com essas paisagens e constroem esses ambientes desde tempos imemoriais, possuem suas próprias formas de se expressar esteticamente sobre e com elas. Suas cosmologias diversas e conhecimentos tradicionais, seus modos de vida são acompanhados de formas expressivas que moldam e adornam seus corpos, objetos e paisagens, constituindo formas específicas de produção artística, sempre em transformação.
As expressões artísticas contemporâneas vindas do Ártico e da Amazônia tem revelado a enorme criatividade com a qual artistas indígenas reelaboram referências tradicionais e mídias modernas, transformam ferramentas coloniais e armas de resistência para afirmação de suas identidades e transitam entre mundos culturais e zonas de contato impregnadas de violência sabendo encontrar nelas também dinamismo e fecundidade.
Especialmente desde a segunda metade do século XX, encontros entre europeus ou não-indígenas e nativos deixaram de ser apenas marcados pela predação colecionista que encheu museus etnográficos distantes por séculos e passou a gerar produções colaborativas cada vez mais conscientemente controladas por seus autores indígenas. No caso do Canadá, vale ressaltar o surgimento das cooperativas instaladas em Cape Dorset, região de Nunavut, que instauraram uma ampla tradição de gravura e desenho, lançando nomes famosos, como Kenojuak Ashevak ou Shuvenai Ashoona, que chegaram a atingir grande reconhecimento e altos preços no mercado de arte. De forma mais experimental, não muito tempo depois, tem-se notícia dos primeiros desenhos em papel sendo feitos a partir de colaborações entre antropólogos e artistas em diálogo com indígenas amazônicos no Brasil, técnica que não era utilizada anteriormente, e que nos anos mais recentes ganharam espaço em grandes exposições de arte, a exemplo dos trabalhos de Feliciano Lana ou Joseca Yanomami.
Assim como sempre foram diversas as expressões criativas ditas “tradicionais”, também são as chamadas “contemporâneas”, atestando o dinamismo cultural e a natureza transformacional das culturas indígenas amazônicas, Inuit e Sami (predominantes no Ártico). Potências poéticas, expressividades que estão intimamente conectadas com os modos de ser destes lugares, com a vida e a paisagem, com os seres que habitam estes mundos e as experiências vividas de ancestralidade e também de conflito, transformação e resistência. Essas criações expressam regimes imagéticos particulares e formas de ver o mundo, transmitir e resgatar memória que se materializam em objetos, pinturas, instalações, filmes, performances, música de todos os gêneros e uma infinidade de linguagens que rompem barreiras e cânones ocidentais e conectam arte e vida, desafiando o público a ver, pensar e experimentar de outros modos.
Em 2017, passei a integrar o projeto Arctic/Amazon, coordenado pelo professor e curador Gerald McMaster no Wapatah: Center for indigenous visual Knowledge da OCAD University em Toronto, Canadá, com objetivo de reunir artistas e pensadores destas duas regiões para discutir essas questões e produzir uma exposição artística. Em 2019, organizamos um Simpósio com seis indígenas do sul e seis do norte, do qual emergiram as questões centrais que guiaram a concepção do projeto como um todo, que inclui também uma publicação (no prelo, a ser lançada em janeiro 2023), um ciclo online de troca de saberes, e culminou na exposição Arctic/Amazon: networks of global indigeneity, uma parceria com a galeria The Power Plant, em Toronto, Canadá, com curadoria geral de Gerald McMaster (Crre/Canadá) e co-curadoria de Nina Vincent (Brasil).
A exposição conta com obras de doze artistas de três continentes articulando questões como mudanças climáticas, indigeneidade global e zonas de contato no Ártico e na Amazônia em tempos de crise. Apresenta trabalhos inéditos e já existentes, incluindo pintura, desenhos, escultura, instalações, vídeo e performance. Pretende-se lançar luz sobre discussões geopolíticas e de sustentabilidade que atualmente informam praticas artísticas nestas duas regiões tão diferentes, porém interconectadas.
Nestes diálogos, explora-se as relações práticas e imaginativas entre as pessoas que continuam a construir ambas paisagens. Revelam-se, assim, as conceitualizações indígenas e ocidentais sobre o chamado “mundo natural” no contexto histórico e em suas expressões na cultura visual, bem como as formas como essas ideias se chocam ou se misturam em situações de encontro.
Durante os encontros promovidos pelo projeto Arctic/Amazon, ficou evidente a importância desses diálogos entre pessoas de regiões aparentemente tão distantes, que têm a diferença linguística como barreira complicadora, mas que contêm em si possibilidades enormes de desdobramentos, identificações e fortalecimentos. Muito do que antes parecia distância e diferença se transformou em aproximação e semelhança. Sem diluição da diversidade, que se tornou a grande mestra. Mas, o mais importante, solidificando uma base de diálogo que não centraliza o elemento colonial, mas sim a relação entre povos indígenas em uma conexão global.
Os encontros de diferentes mundos podem ser ocasiões de exposição de traumas, momentos de cura mútua, de construção de resistência. Encontrar semelhanças não significa buscar uma universalidade, mas sim imaginar futuros diversos em que muitos mundos sejam possíveis. A criação artística e o mundo da arte não são imunes às complexas relações de poder e dinâmicas políticas que desafiam as relações interculturais, mas vêm se mostrando terreno fértil a ser ocupado pelas vozes, corpos e imagens indígenas em suas lutas que transformam e subvertem ao mesmo tempo os próprios terrenos que ocupam.
Currículo
Nina Vincent Iannes
é antropóloga no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) da Paraíba. Autora de Paris, Maori - O museu e seus outros. Curadoria nativa no Quai Branly (2015). Cientista Social pela UFRJ, mestre e doutora em Antropologia no PPGSA-UFRJ com a tese “ARTE, TERRA INDÍGENA. Caminhos e relações da arte indígena contemporânea entre mundos” (2021). Co-curadora da exposição Arctic/Amazon: networks of global indigeneity (2022). Atua também como pesquisadora, professora e curadora independente nas áreas de Antropologia, Antropologia da Arte e dos objetos, Arte indígena, visualidade, materialidade, museus, curadoria, exposições, arte e ecologia, patrimônio imaterial, cultura popular.