Venta. Em um campo devastado pela monocultura da soja uma única árvore resiste. Tajy. A câmera se move lentamente pelo descampado e uma voz em off descreve a paisagem ao mesmo tempo em que revela a memória de um tempo em que ali abun- davam a guavira, o cupinzeiro, os remédios, e o vento forte não varria a mataria. À descrição do espaço se sobrepõe a narrativa da violência: o ataque de pistoleiros, a expropriação e a espoliação da terra, o exílio de um povo em seu próprio território. Estamos no Guaiviry, acampamento de retomada Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, onde os barões do agronegócio, apoiados pelo Estado brasileiro e a bancada ruralista, perpetuam um genocídio que remonta ao período colonial, numa guerra de forças desiguais que segue invisível para a grande maioria da população. A imagem do pé de Tajy em meio à soja torna-se, assim, a um só tempo, a imagem da resistência e do abandono dos indígenas que habitam a região.
Em Ava Yvy Vera, a memória se faz presente na paisagem, nos corpos e na palavra. A dramaturgia de um movimento de retomada é a própria retomada, a narrativa de um assassinato (a morte do cacique Nísio Gomes, fuzilado a queima-roupa por capangas da fazenda Nova Aurora), a compreensão do que foi e a vida que segue. A encenação do kotyhu, a experiência mesma da dança e do canto coletivo, catalisados pela câmera. Uma dramaturgia contra o esquecimento e pela sobrevivência. Um cinema que dá a ver os corpos e o invisível, a resistência e a morte, uma paisagem devastada e a luta secular de um povo pelo direito de pertencer a um território e ocupá-lo segundo seu modo de vida e seus preceitos religiosos.
A partir das vozes e imagens construídas pelos Kaiowá ao longo da oficina de vídeo que deu origem ao filme, dois mundos distintos aos poucos se revelam e se contrapõem. De um lado, a lei dos brancos, sua milícia armada, seu projeto desenvolvimentista, a exploração predatória da terra e o extermínio dos povos indígenas. De outro, a palavra Guarani, a fala dos trovões que é a fala dos deuses, um pertencimento que se funda na partilha do território onde se enterram seus mortos (por isso sagrado) e no cuidado com a terra, entendida como bem comum. O embate entre as noções de propriedade privada e de território, - o coração da terra, o tekoha Guarani.
Entre todos os deslocamentos que propõe, o filme nos confronta com nossas próprias formas de pensar e viver o mundo, nossas frágeis certezas (tão ferozes quanto aniquiladoras) e nos convida, afinal, para um tempo de partilha, de um território comum, de retomada. Um convite à escuta das belas palavras dos velhos guaranis em noite de tempestade, à escuta dos trovões e de ñhanderú. A resistência que nasce ao redor da fogueira depois de um dia de brincadeira, onde a vida pode ser mais uma vez reinventada.
Currículo
Ana Carvalho
Artista, documentarista e técnica em agroecologia. Trabalha junto a povos indígenas e comunidades tradicionais no desenvolvimento de projetos culturais de criação compartilhada nos campos das artes visuais, cinema e patrimônio imaterial. Desenvolve pesquisa em saúde popular e roçados ameríndios. Vive em Paudalho, Zona da Mata Norte/PE.
Como citar este artigo
CARVALHO, Ana. Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio. In: forumdoc.bh.20anos: 20º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016. p. 287-288 (Impresso); . 289-290 (On-line).