AVA YVY VERA – A TERRA DO POVO DO RAIO

sobre filme de Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan gomes, Edina ximenez, Dulcídio gomes, Sarah Brites, Joilson Brites (2016)

Venta. Em um campo devastado pela monocultura da soja uma única árvore resiste. Tajy. A câmera se move lentamente pelo descampado e uma voz em off descreve a paisagem ao mesmo tempo em que revela a memória de um tempo em que ali abun- davam a guavira, o cupinzeiro, os remédios, e o vento forte não varria a mataria. À descrição do espaço se sobrepõe a narrativa da violência: o ataque de pistoleiros, a expropriação e a espoliação da terra, o exílio de um povo em seu próprio território. Estamos no Guaiviry, acampamento de retomada Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, onde os barões do agronegócio, apoiados pelo Estado brasileiro e a bancada ruralista, perpetuam um genocídio que remonta ao período colonial, numa guerra de forças desiguais que segue invisível para a grande maioria da população. A imagem do pé de Tajy em meio à soja torna-se, assim, a um só tempo, a imagem da resistência e do abandono dos indígenas que habitam a região.

Em Ava Yvy Vera, a memória se faz presente na paisagem, nos corpos e na palavra. A dramaturgia de um movimento de retomada é a própria retomada, a narrativa de um assassinato  (a morte do cacique Nísio Gomes, fuzilado a queima-roupa por capangas da fazenda Nova Aurora), a compreensão do que foi e a vida que segue. A encenação do kotyhu, a experiência mesma da dança e do canto coletivo, catalisados pela câmera. Uma dramaturgia contra o esquecimento e pela sobrevivência.  Um cinema que dá a ver os corpos e o invisível, a resistência e a morte, uma paisagem devastada e a luta secular de um povo pelo direito de pertencer a um território e ocupá-lo segundo seu modo de vida e seus preceitos religiosos.

A partir das vozes e imagens construídas pelos Kaiowá ao longo da oficina de vídeo que deu origem ao filme, dois mundos distintos aos poucos se revelam e se contrapõem. De um lado, a lei dos brancos, sua milícia armada, seu projeto desenvolvimentista, a exploração predatória da terra e o extermínio dos povos indígenas. De outro, a palavra Guarani, a fala dos trovões que é a fala dos deuses, um pertencimento que se funda na partilha do território onde se enterram seus mortos (por isso sagrado) e no cuidado com a terra, entendida como bem comum. O embate entre as noções de propriedade privada e de território, - o coração da terra, o tekoha Guarani.

Entre todos os deslocamentos que propõe, o filme nos confronta com nossas próprias formas de pensar e viver o mundo, nossas frágeis certezas (tão ferozes quanto aniquiladoras) e nos convida, afinal, para um tempo de partilha, de um território comum, de retomada. Um convite à escuta das belas palavras dos velhos guaranis em noite de tempestade, à escuta dos trovões e de ñhanderú. A resistência que nasce ao redor da fogueira depois de um dia de brincadeira, onde a vida pode ser mais uma vez reinventada.

Currículo

Ana Carvalho

Artista, documentarista e técnica em agroecologia. Trabalha junto a povos indígenas e comunidades tradicionais no desenvolvimento de projetos culturais de criação compartilhada nos campos das artes visuais, cinema e patrimônio imaterial. Desenvolve pesquisa em saúde popular e roçados ameríndios. Vive em Paudalho, Zona da Mata Norte/PE.

Como citar este artigo

CARVALHO, Ana. Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio. In: forumdoc.bh.20anos: 20º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema.  Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016. p. 287-288 (Impresso); . 289-290  (On-line).