Bimi, Shü Ikaya

sobre filme de Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube

Ao começarem o filme Bimi, Shü Ikaya (2018) com o plano aproximado da casca da Samaúma – uma das árvores sagradas mais respeitadas pelos povos amazônicos pela sua dimensão monumental (que pode chegar a 90 metros de altura) e seus amplos poderes medicinais – os realizadores Huni Kuin parecem colocar o filme, desde já, em ligação e compromisso com camadas temporais mais amplas do que as alcançadas por nós não-indígenas.

A narrativa prossegue com a imagem dos pés de uma mulher que caminha no chão da floresta, entre as milhares de plantas estudadas por uma tradição verdadeiramente enciclopédica no que diz respeito ao seu poder medicinal. Cercada pelos mais jovens, Bimi seleciona folhas, manuseia e corta. O filme seguirá atento às mãos da pajé, que buscam a força da floresta para entregar aos corpos que ela pode curar. Estas mãos ganham uma importância fundamental no filme, pois muitas vezes são elas que conectam os planos entre si. A fala também é um agente mobilizador deste poder curativo: nesta primeira sequência, Bimi se dirige à Samaúma e diz que trouxe aquelas crianças até ela para que fossem curadas. “Eu dei seu nome para eles, eles são seus irmãos. Eles vieram te visitar para se curar de todo o mal com seu poder”.

Por mais que tentemos, é difícil que um plano de cinema feito por nawa (não-indígenas) atinja a forma como um realizador indígena – e particularmente os Huni Kuin – é capaz de mostrar uma planta ou árvore como quem filma um parente – um parente mais velho, é claro. Junto ao poder medicinal está o poder da sabedoria e da ancestralidade: se as plantas são as grandes mestras, e os mais velhos são os intermediários desta ciência. Bimi, pajé tardiamente revelada (até porque às mulheres não era dado entrar em contato com estes conhecimentos) mas hoje respeitada inclusive pelos homens, ocupa este lugar com a consciência de ser uma criança aos pés da Samaúma.

Bimi pinga suco de Bawe nos olhos das meninas, para elas “terem boa memória no aprendizado dos kene, os desenhos da nossa cultura” ¹. Ela não foi criada para o xamanismo, mas para o artesanato, como todas as meninas a quem não era permitido beber a medicina sagrada do nixi pae, combinação da Ayahuasca com a folha do Mariri que ensina o saber sobre as plantas e a medicina. Embora seu pai a tenha proibido de tomar o cipó, dizendo que a mulher que usa a planta fica com fraqueza, quando Bimi teve acesso a ele pela primeira vez (já tendo um neto) começou logo a cantar e curar. Os outros pajés souberam de seu trabalho e se interessaram, chamando-a para beber o nixi pae com eles e aceitando-a como pajé.

O cinema indígena, desde que se expandiu para um grande número de aldeias e etnias, tomou muitas formas e respondeu a diversas finalidades destes povos. Entre as funções do cinema para os povos originários está a de preservar a tradição. O filme de Bimi, ao mostrá-la para eles próprios e para o mundo exterior, a legitima como pajé: “Eu não saio por aí falando que eu sou pajé, mas vocês resolveram fazer este filme! Isto é um reconhecimento e eu agradeço. Eu digo que estou apenas começando, e quem vai se formar são vocês”. Bimi se refere a uma construção do saber medicinal que se transmite e consolida através das gerações, diante da enormidade de conhecimento que há guardado pela floresta. A mulher xamã também refere-se à dificuldade na transmissão dos saberes Huni Kuin. De fato, na primeira metade do século XX, os Huni Kuin (e muitos outros povos amazônicos) foram escravizados para trabalhar nos seringais, desaldeados e muitos foram mortos por epidemia ou violência, rompendo a corrente de transmissão da sabedoria tradicional. Bimi, Shu Ikaya é um filme da tradição, que busca registrar a sabedoria dos mais velhos, e cuja personagem principal relança este conhecimento do passado como algo em permanente movimento, que deve ser sempre completado pelos mais novos que o recebem.

Há um longo plano em que dois dos realizadores conversam sobre o filme. O cinema é visto como um instrumento para reconectar o povo Huni Kuin à sua espiritualidade, através da valorização do conhecimento tradicional. Falam das antigas cerimônias de nixi pae, quando os pajés bebiam quantidades enormes do chá para cantarem e fazer suas curas. Para eles, filmar Bimi é um gesto fundamental para registrar um pouco deste conhecimento. Eles combinam de inscrever o projeto em editais, para realizar um filme mais estruturado, com mais pessoas trabalhando. O cinema é comparado à caça pelos jovens cineastas, já que é preciso astúcia para saber onde procurar dinheiro e apoios para a realização. A ajuda dos brancos (entre eles Tiago Campos e Ernesto de Carvalho, no som, fotografia e montagem) é vista como um precioso auxílio, por saberem como se mover no mundo do cinema e dos editais.

O cinema é caça, mas também artesanato. O filme segue mostrando a pajé Bimi ensinando às crianças as atividades próprias ao mundo feminino. Elas colhem algodão, plantas e cozinham. O algodão é usado para redes e outros tecidos com padrões geométricos kene, dos Huni Kuin. Foi realizando estas atividades que Bimi aprendeu a cultura dos ancestrais, e talvez seja esta sabedoria de entrançamentos e geometrias que a tenha enraizado no conhecimento, tornando-a pajé de forma tão imediata, assim que bebeu o nixi pae.

Uma sequência forte do filme trata tanto da própria realização do projeto quanto da sobrevivência da cultura Huni Kuin. Um dos realizadores expõe a proposta trazida por alguns: fazer uma festa com música dos brancos, dançar e depois fazer o ritual do nixi pae. Bimi pede a palavra e mostra a sua liderança: o projeto tem o seu nome, aquela maloca também, e desta maneira não poderia permitir que o projeto fosse pretexto para iniciar festas de outro tipo que não aquelas da tradição, pois “é nas festas que começam os problemas”.

Diante do preparo do nixi pae, realizado inicialmente por homens, Bimi traz um grupo de mulheres, que se sentam próximas aos caldeirões no fogo para ouvir a xamã cantar uma melodia que atrai bons pensamentos. Para ela, o conhecimento não deve ser restrito a poucos, mas ser ensinado a quem quiser aprender.

Na parte final do filme, vemos a festa do nixi pae. Na sombra larga e protetora da Samaúma, Bimi e outros pajés distribuem a medicina e depois passam por cada um dos presentes oferecendo a sua cura e o seu sopro, massageiam e cantam para afastar os maus espíritos. A beleza desta sequência é rara: o visível é intenso mas ainda assim intui-se que o mais importante daquilo que está sendo filmado não pode ser visto. Radicaliza-se aqui o gesto cinematográfico de dar a ver o invisível. Testemunhamos algo sem o alcançar inteiramente, sabendo da força com que atua sobre a vida deste povo.

O filme tem ainda uma espécie de epílogo, em que Isaka e Siã, os mais jovens entre os três realizadores, são filmados conversando sobre o fazer cinema. Isaka diz que está muito satisfeito de ter feito o projeto sobre sua avó Bimi e se sente “um cineasta fazendo cinema”. Se por um lado o filme legitima a sua ancestral e os seus conhecimentos, através desta realização o jovem é incorporado aos fazeres da aldeia, quando se torna o veículo de uma tradição. Eles visualizam, com a ajuda dos jovens, a criação de uma produtora, com divisão do trabalho e aprofundamento na tarefa do registro. Siã concorda, mas relembra a interdependência entre o registro e a manutenção da tradição, sendo esta última o que dá força ao trabalho: “sem a cultura, não temos o que filmar”. Neste filme vemos um duplo movimento: ao mesmo tempo em que o cinema se incorpora à cultura, é legitimado como modo de ajudar na sua sobrevivência.

Os cantos soam, as buzinas Huni Kuin tocam, as câmeras filmam e a tradição continua. O trabalho da mulher pajé forma gerações, como a fruta que tem o mesmo nome que ela: Bimi, aquela que dá flor e depois germina novamente.

Currículo

Daniel Ribeiro Duarte

Pesquisador, curador e realizador de cinema. Integrante do Coletivo Filmes de Quintal. Doutor em Comunicação com especialidade em Cinema pela Universidade Nova de Lisboa, com tese sobre a obra de Pedro Costa.

Como citar este artigo

DUARTE, Daniel Ribeiro. Bimi, Shü Ikaya. In: forumdoc.bh.2018: 22º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2018. p. 163-165 (Impresso); p. 165-167 (On-line).

Notas

[1] In: Manual das crianças Huni Kuĩ Yumebu há uĩtã hariri ikaĩti. Disponível em:<http://www.tecendosaberes.com/wc/uploads/2015/08/PgsManual_HuniKui_bx.pdf>.