Carta de Marselha sobre a auto-mise-en-scène

traduzido por Augustin de Tugny; Oswaldo Teixeira; Ruben Caixeta

Se pararmos para pensar um pouco, caro Pierre, Caro Gilles,¹ nos primeiros filmes da história do cinema – penso no Repas de bébé, dos irmãos Lumière, uma das primeiras ocasiões, parece, em que se encontra o sujeito filmado (indiscutivelmente, esse bebê é sujeito) –, verificaremos que desde o nascimento do ato cinematográfico ocorre um duplo processo de individualização e, se assim, posso dizer, de subjetivação do sujeito filmado, de modo que aquele que é filmado se torna personagem de filme e, através dessa parte dele mesmo que possa e se posiciona, ele se presta ou se oferece ao olhar do outro.

Há em todo mundo um saber inconsciente sobre o olhar do outro, um saber que se manifesta por uma tomada de posição, uma postura. A cinematografia fornece a prova disso, porque suscita e solicita essa postura e, ao mesmo tempo, porque a registra, nela inscreve sua marca. O sujeito filmado, infalivelmente, identifica o olho negro e redondo da câmera como olhar do outro materializado. Por um saber inconsciente mas certeiro, o sujeito sabe que ser filmado significa se expor ao outro.

Portanto, a câmera é visível para quem ela filma. Ela se inscreve no quadro do meu campo visual como o sinal do olhar do outro para mim. O próprio bebê, que já produz imagem no espelho, entende algo a respeito. Em todo caso, houve um momento em que a história do olhar se cristalizou sob a forma de uma câmera presente dentro do campo do sujeito filmado. (A recorrência do tema da câmera invisível ou da câmera escondida reforça, ao contrário, a visibilidade da câmera como um dado imediato da consciência de ser filmado.)

É que um antropocentrismo persistente nos faz pensar o olhar como indo do olho às coisas e, por consequência preguiçosa, nos faz pensar a filmagem como indo da câmera em direção à coisa filmada, nos faz supor a mise-en-scène dirigida do cineasta ao personagem, e a “captação de imagens” indo do enquadramento em direção ao objeto. Trata-se, aqui, de uma ilusão, de um engodo que reconforta facilmente. Todo mundo, inclusive o cineasta, está sob o olhar dos outros, e as próprias coisas, quando nos retornam nosso olhar, o devolvem impregnado delas, modificado por elas.

Dentro daquilo que se chama de representação – que inclui o cinema –, nesse modo de estabelecer relações que, sem dúvida, funda as sociedades humanas, o olhar nunca é apenas o olhar do homem para o mundo, ele é também (e às vezes, sobretudo) o olhar do mundo para o homem. Sendo assim, o cinema nada pode fazer além de nos mostrar o mundo como olhar. Olhar – quer dizer, mise-en-scène. O eu-espectador-vejo se torna o eu-vejo-que-sou-espectador. Há uma dimensão reflexiva no olhar. Olhar. Retorno sobre si mesmo, reflexão, repetição. Revisão. Duplo olhar.

Como o olho está no quadro, o olhar está no filme, olhar do cineasta e olhar do espectador. Colocar em cena é ser colocado em cena. É ser colocado na cena pela própria constituição de uma cena. Aquele(a) que eu filmo me olha. O que ele (ela) olha ao me olhar é o meu olhar (escuta) para ela (ela). Olhando o meu olhar, isto é, uma das formas perceptíveis de minha mise-en-scène, ele (ela) me devolve no seu olhar o eco do meu, retorna minha mise-en-scène tal como repercutiu nele(nela). O que faz com que o sujeito filmado conviva com essa mise-en-scène, a habite, dela se aproprie. Não existe mise-en-scène que não seja modificada pelo sujeito colocado em cena. Mas ainda não é isso o que os cineastas antropólogos chamaram de “auto-mise-en-scène”.²

É preciso ressaltar que o filme, o cinema, a representação não estão fora do mundo. Não estão diante do mundo, olhando-o de fora, são eles próprios pedaços do mundo, são aquilo que do mundo se torna olhar. Como não se aperceber disso, aliás, já que uma parte cada vez mais maior de nossa relação com o mundo se faz através da circulação cada vez mais intensa de objetos audiovisuais cada vez mais fracos? O audiovisual conduz o mundo. Pior, ele o substitui, o fabrica à sua medida. Daí, caro Gilles, caro Pierre, a importância de realizar bons filmes. É o mundo que a gente enfeia ou embeleza conforme aquilo que a gente faz.

Desculpem-me por essa divagação. Volto à auto-mise-en-scène. Mas antes, ao olhar como retorno para si mesmo, caminho da consciência. Trata-se de reelaborar a pulsão escópica como consciência do olhar. Os geômetras da Renascença não sabiam bem (incerteza essencial) se eram os raios luminosos que saíam do olho para clarear as coisas, ou se era das coisas que vinham os raios que atingiam nosso olho. Na dúvida, o feixe de traços retilíneos que materializam esses raios podia de fato ser lido segundo qualquer uma das duas direções. Do sujeito em direção ao objeto. Do objeto em direção ao sujeito. No segundo caso acontece não apenas um retorno do trajeto, uma inversão da perspectiva, mas também uma revolução da relação do espectador e da cena. Uma mudança de estatuto, uma inversão de sentido entre sujeito e objeto. Quando meu olhar volta para mim, eu me torno objeto. Essa volta do olhar para si mesmo me coloca em cena. 

Mas observo, de passagem, o quanto é cômodo (e frequente) ficar cego a respeito desse retorno. O olhar é cego para aquilo que, dele mesmo, volta a ele como sua consciência, como sua forma. O desejo do espectador é de ser enganado, cegado sobre seu próprio estatuto, sobre o funcionamento daquilo que o faz gozar. Quando ocupo o lugar do espectador, abre-se em mim uma mancha cega, um buraco negro, um vácuo sobre o qual eu nada quero saber, pos ele é a condição mesma da minha crença no filme. É porque eu não me vejo olhar (olhado) que posso aderir à coisa representada. Sem essa recusa inicial e fundadora, não há crença possível. Eu sei muito bem que estou na sala de cinema e que sou espectador... mas mesmo assim esqueço disso para acreditar na representação, para nela injetar sua carga de realidade, sua intensidade de experiência vivida. Minha profissão de fé, meu desejo de acreditar não seriam, no entanto, tão potentes se não se agarrassem a essa negação inicial. É porque recalco (provisoriamente, durante o tempo da representação) a consciência do lugar que ocupo, meu olhar como consciência, que posso desfrutar da confusão mantida entre o mundo e a obra, entre a coisa e sua imagem.

A negação cinematográfica é dialética. Um não funciona sem o outro, cada um tem necessidade do outro para se recolocar em movimento. A crença tem necessidade da consciência que a ameaça, tem necessidade dessa ameaça para se reforçar. Estamos dentro de uma psicologia da cumplicidade dos contrários.

Todo esse longo desvio (mais um) para retornar à pergunta que vocês me fazem. Como abordar essa estranha noção de auto-mise-en-scène? Perguntemo-nos como o cineasta poderia não enfrentar a questão do outro. Não apenas como questão do outro a filmar. Mas como questão do outro que está, no momento em que eu o filmo, (me) reenviando também o seu olhar. Aquele que eu filmo me vê. Quem diz que ele não pensa o seu olhar para mim, assim como penso meu olhar para ele? A consciência é necessariamente algo que se passa entre as consciências. O inconsciente, entre os inconscientes. O corpo, entre os corpos. Aquele que eu filmo me chega não somente com sua consciência de ser filmado, sua concepção do olhar, ele chega com seu inconsciente em direção à máquina cinematográfica, ela própria carregada do impensado, ele chega com seu corpo diante dos corpos daqueles que filmam.

Aquele (aquela) que eu filmo vem também ao encontro do filme com seu habitus, esse tecido estreito, essa trama de gestos aprendidos, de reflexos adquiridos, de posturas assimiladas, a ponto de terem se tornado inconscientes; e que fazem com que, segundo os campos onde a pessoa filmada intervenha (família, escola, trabalho etc.), ela se veja engajada e tomada nas mise-en-scènes (Bourdieu diria nos jogos) requisitadas por esses campos – e mesmo compreendidas, incorporadas por cada uma dos sujeitos agentes desses campos.

Todos aqueles que eu filmo já são atores e interpretados em outras mise-en-scènes, que precedem e, às vezes, contrariam aquela do filme. As “realidades” não são apenas narrativas particulares aos grupos que as fabricam e as legitimam – a “realidade social”, a “realidade patronal” etc. Essas narrativas são também mise-en-scènes, verdadeiros rituais, em que os corpos e suas hierarquias, suas posturas, seus intervalos são frequentemente definidos. O cineasta filma representações já em andamento, mise-en-scènes incorporadas e reencenadas pelos agentes dessas representações.

Assim, a auto-mise-en-scène seria a combinação de dois movimentos. Um vem do habitus e passa pelo corpo (o inconsciente) do agente como representante de um ou de vários campos sociais. O outro tem a ver com o fato de que o sujeito filmado, o sujeito em vista do filme (a “profilmia” de Souriau), se destina ao filme, conscientemente e inconscientemente, se impregna dele, se ajusta à operação de cinematografia, nela coloca em jogo sua própria mise-en-scène, no sentido da colocação do corpo sob o olhar, do jogo do corpo no espaço e no tempo definidos pelo olhar do outro (a cena).

Essa auto-mise-en-scène está sempre presente. Ela é mais ou menos manifesta. Em geral, o gesto do cineasta acaba, conscientemente ou não, por impedi-la, mascará-la, apagá-la, anulá-la. Outras vezes, mais raras, o gesto da mise-en-scène acaba por se apagar para dar lugar à auto-mise-en-scène do personagem. Trata-se de uma retirada estética. De uma dança a dois. A mise-en-scène mais decidida (aquela que supostamente vem do cineasta) cede lugar ao outro, favorece seu desenvolvimento, dá-lhe tempo e campo para se definir, se manifestar. Filmar torna-se, assim, uma conjugação, uma relação na qual se trata de entrelaçar ao outro – até na forma.

Digo-lhes isso, caros amigos, com a ideia de que a mise-en-scène documentária – por seu caráter lúdico, coreográfico, seu jogo com o outro, pelo risco do real que ela corre ao se abrir para as sócio-mise-en-scènes e as auto-mise-en-scènes – seria, talvez, aquilo pelo qual o cinema, ainda, se entrelaça com o mundo.

// Texto originalmente publicado na Brochure Ministère de la Culture/Education Nationale, “La mise en scène documentaire”, 1994.

Currículo

Jean-Louis Comolli

Escritor e diretor de cinema francês. Foi editor-chefe da Cahiers du cinéma de 1966 a 1978, publicou, entre outros, Ver e Poder - A Inocência Perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário (UFMG, 2006).

Como citar este artigo

COMOLLI, Jean-Louis. Carta de Marselha sobre a auto-mise-en-scène. In: forumdoc.bh.2001: 5º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo . Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2000. p. 109-116.

Notas

1. Pierre Baudry e Gilles Delavaud. Publicado em La mise en scène documentaire, Ministério da Cultura e da Educação Nacional, 1994.

2. Essa noção foi forjada por Claudine de France. Veja a definição dada: “Noção essencial em cinematografia documentária, que define as diversas maneiras pelas quais o processo observado se apresenta por si mesmo ao cineasta no espaço e no tempo. Trata-se de uma mise-en-scène própria, autônoma, em virtude da qual as pessoas filmadas mostram de maneira mais ou menos ostensiva, ou dissimulam a outrem, seus atos e as coisas que as envolvem, ao longo das atividades corporais, materiais e rituais. A auto-mise-en-scène é inerente a qualquer processo observado.” (Cinéma et anthropologie. Paris: Maison des Sciences de L’homme, 1982).