Carta para Alan do Rap

Alan (Diego Lisboa e Daniel Lisboa, 2022)

    Alan, satisfação imensa te conhecer, mano. Assisti ao seu filme e fiquei anestesiada por um tempo. Pensando. Você invadia os palcos, mano! Você planejava as invasões. Isso é muito foda porque ao mesmo tempo que você mandava a letra da favela pra questionar o sistema, você já dava um curto-circuito no próprio sistema, saca? Abria uma fissura, gerava um ruído, um chiado… Só assim mano. Eles são grandes demais e querem manter as coisas como elas estão, daí pra pior. De cara você já manda a letra: 

Sabe que a vida, ela é feita de altos e baixos, a vida é feita de lágrimas e sorrisos, de ganhos e perdas. Se um jovem da periferia e jovens de rua, se não houver uma oportunidade, se não houver um incentivo, ele vai ser sempre um descaso social. 

    Eu queria muito ter visto uma invasão ao vivo. É foda um show de rap, de reggae, as ideia que os cara manda, essa realidade é muito dura mesmo, mano. Tem que denunciar, tem que contra-atacar. E a arte tá aí pra mandar a letra, na resistência sempre. A arma é a caneta como tu mostra no filme. Mas uma invasão em um show, isso mano… é um acontecimento. Uma coisa que acontece e muda algum sentido na ordem “lógica”, saca? Que espalha. Que vai pra televisão, que desloca no tempo e gera outros encontros lá na frente. Uma coisa que muda algo no destino de cada um que tava ali vibrando com a invasão, que muda o seu destino, só Deus sabe tudo que você provocou, mano. Tu fez sua parte, cara. Tentou demais... O filme tá mostrando isso e é claro que o filme não consegue mostrar tudo que você fez pela favela, pela sua família, pelos jovens pretos favelados, por você, saca? 

    Você é um guerreiro, mano. Mas quantos guerreiros nós já perdemos nessa porr* de guerra? Sinto muito, mano. Eu assisti ao filme duas vezes. Na primeira vez que assisti, fui até às imagens que mostram você com uma pistola e um revólver na mão, do lado tinha os menino de rosto coberto. O seu rosto aparece no centro da tela e você fala assim com pulso firme:

É pro Brasil se chocar ao ver isso? Um jovem mostrando o rosto com duas máquinas? Não? É pro Brasil se chocar quando um político desgraçado de gravata desvia bilhões e bilhões que é pras criança poder ir pra escola, pro jovem ter um emprego. Isso aqui é a polícia que dá, chega aqui e vende. A gente compra. Isso aqui foi comprado na mão da polícia, porra. Eles vende e depois vem querer matar. É eles que bota a droga. E depois o que faz? Vem matar os mano da favela. 

    Você manda a letra, dá um tiro pro alto e devolve as armas pros menino. Você fala que tá largando o mundo do crime, talvez uma forma de mudar o destino. Este que você bem diz que muda os traços das pessoas. É uma trajetória né, mano? É o caminho possível diante de uma sociedade governada pelas elites. Aí eu precisei parar de assistir ao filme e não vi o final naquela hora, mas fiquei pensando como você cresce com o filme, mesmo quando tá preso, nos altos e baixos da vida que você bem relata e rima. 

    Desde quando você cantava com a banda Opus da Paz, lá atrás, já tinha a música “Favela”, não é mesmo? Depois a gente vê a invasão no show do Racionais, aquela cena que mostra o Edi Rock te dando a mão pra subir no palco. Que cena linda, mano. Fiquei pensando como o seu caminho se fez ao lado dos seus, dos pretos. Também nas duas invasões nos shows do Alpha Blondy. O gringo é firmeza. A repórter branca não entende nada, mas o mano captou a sua mensagem e abriu espaço, mandou a letra na televisão. 

    Mas você também deu a mão pro irmão branco e me parece que ele é um cara muito importante nessa caminhada aí. A relação entre você e o Diego, tem também o Hari, que você cita muito, me parece uma parada de irmandade mesmo. Os caras te acompanharam nesse longo tempo da curta vida e filmaram com uma proximidade que nos coloca do teu lado. Parecia que eu estava ali sentada na calçada também, escutando suas histórias. Você também filmou, ali tem o seu olhar. Os caras foram te visitar na cadeia, mano. Pediram pra tirar suas algemas. Bonito demais quando você abraça a equipe do filme. Naquele momento, a presença da câmera era mais que um futuro de imagem, era a possibilidade real da presença, do afeto e do amor. Era uma ação no mundo, uma intervenção no sistema prisional que serve à reprodução de uma lógica desumana de separação e extermínio. E essas imagens históricas? Teve um trabalho de pesquisa forte ali, mano. As conversas com o pessoal do Hip Hop, todo mundo te conhece e fala de você. É uma comunidade. Você se sentiu sozinho naquele tempo-espaço do presídio, mas o movimento que você gerou no mundo, e que gerou a produção de um filme, já estava abalando o sistema, pode saber. Tinha muita gente junto com você ali e ainda tem. 

    Mas, voltando aqui, porque já estou me perdendo. Da segunda vez que assisti ao filme, fui até os créditos finais. Porr*, mano! Te mataram, cara. Talvez o filme já tivesse sinalizado esse final, mas eu não queria acreditar. Que aperto no peito! Dessa vez não consegui pensar nada. Fiquei um tempo em silêncio. 

    Um dia depois, comecei a pensar nessa parada de escrever um texto sobre o filme Alan, de Diego e Daniel Lisboa, produzido em Salvador com imagens e sons gravados entre 1999 e 2012 e lançado em 2022. Depois desse filme, o que ainda é preciso dizer? Teria sido o filme um lugar que organiza e reverbera a posição política e social de Alan do Rap no mundo? Seria o cinema um espaço de enfrentamento das desigualdades e da violência institucional sofrida por Alan e milhares de jovens pretos brasileiros que cantam versos de um lugar próprio e comum? É o filme que posiciona Alan no mundo? Ou é a batida do rapper que move o dispositivo que produz o filme? Surgiram algumas questões quando me deparei com o desafio da escrita deste texto. Mas a todo tempo eu escutava a sua voz nas gravações de dentro da cadeia. Alô, tá ouvindo? Eu pensava nas suas fotos de família e revisava os trechos das cartas que você escreveu. Pensava nesse fio-filme que te conectava com o mundo aqui fora. Amiga liberdade, há 3 anos que estou longe, sei que sou culpado por esta separação… Daí que veio a vontade de te escrever uma carta, de ampliar ainda mais as palavras que você diz. Você não me conhece, mas por meio do filme eu te conheço e honro a sua história de vida. Sua música não sai da minha cabeça. É isso que você nos pede o tempo todo, não é mesmo? Tá ouvindo? Tá me entendendo? E acho que é isso que o filme faz. Para além de um gesto político no mundo que remonta traços de toda uma comunidade (uma coletividade), o filme te escuta e te entende. O filme te abraça e nos coloca diante da possibilidade de te abraçar. Como eu queria te abraçar com meus braços, real mano. E é isso que o cinema precisa fazer. Isso é urgente. Ninguém aguenta mais as pessoas falando não sei o quê, tirando não sei de onde, pra agradar não sei quem. A sua carteira de trabalho morreu em branco, mano. Você perdeu seu título de eleitor durante as chuvas na favela. É isso mano, até os nossos tão aí na correria, uns passando na frente do outro porque a máquina chega comendo a carne e triturando o pensamento. Mas o filme dos meninos é diferente. Tem uma parceria ali e você sabe disso bem mais do que eu. A gente não é nada sem nossos amigos e você teve bons amigos, mano. Ah! Que foda a mana que gravou sua música! Pra você ver que Alan do Rap segue vivo desse lado de cá, incomodando o sistema, fazendo revolução. É isso, mano, satisfação. Tamo aqui em 2022, na correria. Na luta para eleger o cara que tirou o país do mapa da fome mundial, mas que a sociedade insiste em chamar de “ex-presidiário”. Eles nunca foram presos, vivem pelas praças da liberdade, eles não sabem de nada.

Currículo

Paula Kimo

é uma mulher branca, mãe. Trabalha com cultura, pesquisa e curadoria no cinema. Percebe que estar no mundo só é possível diante de um olhar sensível e inquieto perante as distintas realidades. Respeita e fortalece as culturas da rua. Integra a Associação Filme de Rua, que realiza filmes com jovens e adultos com trajetória de rua na cidade de Belo Horizonte, entre outras construções.