Cinema contra o espetáculo

traduzido por Ruben Caixeta

Triunfo do espetáculo, hegemonia do visível, "tele-realidade": ao ser contra a celebração pública da lua de mel entre exibicionismo e voyeurismo, o cinema documentário – que pretende também tratar “da realidade” – resiste e se opõe, mantendo a hipótese de um espectador ativo (e não “interativo”). O lugar do espectador do cinema (documentário e ficção) não poderia de forma alguma ser o lugar de “mestre”. Enquanto os mestres jogam com o desejo das massas de manipular publicamente os corpos e as almas, o cinema abre-se à dúvida sobre toda maestria.

De um lado, o espetáculo nos circunda, nos preenche. Ele está em todo lugar, da publicidade à informação, da mercadoria à política. Telas em todo lugar, todo o tempo. Mas, de outro lado, o espetáculo se contrai, fraqueja, se repete, se usa, mobiliza cada vez menos desejo e risco, seu próprio sucesso o banaliza, o corrói, o estraga. Mais espetáculo, mais indiferença. É preciso relançar a máquina de desejar. 

Um pouco de pressão sobre a reserva libidinal-social, e ela volta a funcionar! Como? Remetendo a pulsão – o corpo orgânico – à ordem das representações. Que se dane a representação intelectual! Uma “regra do jogo” é o suficiente para nos fazer gozar. O espectador se queima de “viver”, maior a representação: não se trata mais de “projetar”, de “se” projetar; não, é preciso passar do imaginário ao “real” e assegurar que os corpos em representação sejam “verdadeiros corpos”, tomados numa performance não simulada. No auge do triunfo do simulacro, espera-se um espetáculo que não mais simule. As ficções cinematográficas multiplicam os “efeitos de real”. O espetáculo não é mais suficiente. As realidades tornaram-se a tal ponto ficcionais que as ficções não podem mais dispensar uma boa dose de “realidade”. A televisão, que é a própria tautologia, não é mais suficiente. Para ela também, é preciso “mais realidade”. O modelo da vigilância se impõe em todo lugar: “vigiar e punir” são, mais do que nunca, palavras de ordem obsessivas de uma sociedade (mundial) fascinada pela ilusão da transparência total (tudo ver, tudo mostrar, nada esconder) e, ao mesmo tempo, pelo dupla cumplicidade desta  transparência: o vampiro da segurança (fechar, codificar, aprisionar, afastar, constranger, isolar).

Então, o espetáculo se apropria daquilo que é essencial para o documentário: filmar pessoas reais, filmar na duração (programa mínimo das séries de “tele-realidade”). O espetáculo melhor situado no mercado atual, o mais vendido aos publicitários, é – extrema ironia – aquele que mais toma emprestado do documentário, precisamente daquilo que o documentário extraiu sua maior força e sua originalidade, isto é, não poder fazer algo diferente do que trair ou desmontar toda dimensão espetacular. Diferentemente do jornalismo, o documentário é fabricado a posteriori, mas, diferente do espetáculo, lhe é interdito “reconstituir” aquilo que não foi filmado. Desta forma, ele coloca em jogo esta “pedra preciosa do real”, que parece cada vez mais necessária ao motor libidinal tal qual nossas sociedades reivindicam.

Ao  espectador   de  uma  representação  encenada por atores, é requisitado crer que esses diferentes pedaços – corpo, texto, relato – se juntem na unidade da cena. Ao espectador  do documentário, e doravante àquele da  tele-realidade, é assegurado pela “regra do jogo” (social, cultural, publicitária) que aqueles que estão lá estão realmente lá, são eles mesmos e não representados de forma alguma por atores profissionais – o que significa que eles são dotados de uma espécie de inocência ou de ingenuidade, como se eles fossem “virgens” de toda dimensão espetacular, como se, consequentemente, o espetáculo não estivesse ainda em todo lugar, do berço ao túmulo. Ilusão da não ilusão. Dito de outra forma, aquilo que é colocado à disposição do espectador, aquilo que acende ou relança seu desejo de ver, são corpos filmados “garantidos” como “verdadeiros” por aqueles que têm o poder de mostrar. Afirmar uma “verdade” do corpo filmado está, assim, ligado mais à responsabilidade e ao poder de mostrar que a uma impressão ou a um julgamento do espectador. Saber que nós vemos e que isso é um poder, nos é dado pela tele-realidade como um prêmio ao gozo via o domínio exercido sobre o corpo do outro. Seria preciso redizer que, na prática cinematográfica do documentário, esse poder-saber quanto ao ver é precisamente objeto de um questionamento das posturas e das crenças, o que abre uma crise na posição do espectador?

A prática  do cinema  documentário – antes de tudo porque ela é “tomada em direto”, com os corpos reais daqueles que se dispõem ao jogo do filme – obriga a pensar a relação desses corpos uma vez filmados com aqueles que são os espectadores desses corpos. Esta questão deve ser colocada com toda crueza. Como não grudar no “desejo de saber” do espectador a indignidade de lhe mostrar a indignidade dos corpos e das pessoas, qualquer que seja o “acordo” estabelecido? Não se filma e nem se olha impunemente. O desafio da prática documentária é trazer esse poder de mostrar nas mãos e sobre o território de homens concretos. Quem filma? Quem fala? Como isso circula, as imagens, os sons, os corpos, o poder de fazer jogar? De você a mim. Trazer o poder de mostrar na própria relação que funda a possibilidade de filmar.

// Seminários Ateliers Varan 2001-2002

Currículo

Jean-Louis Comolli

Escritor e diretor de cinema, francês de origem argelina. Foi editor-chefe da Cahiers du cinéma de 1966 a 1978, publicou, entre outros, Ver e Poder - A Inocência Perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário (UFMG, 2006).

Como citar este artigo

COMOLLI, Jean-Louis. Cinema contra o espetáculo. In: forumdoc.bh.2001: 5º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2000. p. 127-130.