Cura Bantu¹

Tudo isso surge com uma promessa que um Preto Velho fez a mim, mas uma promessa também que fiz a ele quando ele comprou meu primeiro carrinho de bebê; meu avô. Então “O trauma é brasileiro” surge dessa promessa mútua que eu faço com Benedito Brasileiro, que é Bininho, que é Castiel e que é Augusto Brasileiro também. Veja, o meu avô Benedito conseguiu fazer com seu filho o que seu pai fez com ele; fez isso com o nome. Então, sobre meu bisavô que é o pai de meu avô Benedito: um senhor branco de escravos deu a ele o nome de Brasileiro e inaugurou em minha história familiar um novo trauma. Isso no início do século XX.

E esse mesmo bisavô que criou para si um outro significado pro nome Brasileiro, também criou para si um outro nome: Augusto. E meu avô, Benedito Brasileiro, deu o nome do seu primeiro filho, de Augusto Brasileiro. E meu pai, Augusto Brasileiro, também tem se chamado de Gustavo, e assim como eu criou para si um nome de guerra. Então a Família Brasileiro é uma família de guerra, assim como a Fonte Grande é uma experiência de aquilombamento.

Quando o quilombo passa a ser compreendido como uma experiência de crueldade? Por quem? Por quem, na contemporaneidade e, porque, a Fonte Grande e a Piedade tem sido entendidos como territórios não de aquilombamentos e de Cura e sim de perigo e de violência? Por quem e para quem?

É a partir disso que eu subo a Fonte Grande e assumo essa promessa e crio essa promessa com o meu avô Bininho. Mas não só com meu avô Bino, também com minha avó Julite, com minha avó Éda, com minha mãe Ingrid que desapareceu há 10 anos, com Renato Santos e com todas as vidas que compõem esse território e com todas as vidas que compõem essa fotografia.

Foto: Acervo da Família Brasileiro

É uma promessa que assumo com os cachorros que estão nesta fotografia e com o banco e com a terra e com a vista. Eu assumi uma promessa com essa vista, de sobreviver e, a partir desse desejo de sobreviver, eu subo a Fonte Grande todos os dias. A promessa que eu fiz para a Fonte Grande e pra todas as vidas é de subir a Fonte Grande toda semana enquanto eu quiser continuar viva. E essa subida não é apenas de subindo o morro, mas a subida é quando eu encontro Renato Santos aqui atrás e converso com ele sobre a Fonte Grande. É uma subida afetiva, cognitiva, emocional, espiritual e energética, de um modo que quero que seja inexplicável ainda para alguns.

Como falar de cura? Que trauma é esse? Porque essa exposição anuncia-se num trauma mas a experiência dela é de cura. Eu, assim como Renato, assim amigos meus, artistas negros e racializados também como indígenas contemporâneos, estamos dando gargalhadas do ideal da branquitude em cima de nossas experiências estéticas. Aqui não há tentativa nenhuma de criar um espetáculo em cima de nossas experiências de adoecimento. Não quero que as pessoas que me violentam cheguem aqui e sintam-se confortáveis em me ver sofrendo.

Mas esse não querer é um desejo meu e não delas; delas e de alguns de vocês que estão comigo agora compondo esse território. Conosco. É o desejo que não tenho controle e também não quero ter controle sobre o desejo do outro. O único desejo que eu posso talvez ter controle e direcionar, é o meu. E qual desejo eu quero desejar? É o desejo da sobrevivência e da Cura. E quero continuar viva e para eu continuar viva, Renato precisa continuar vivo, Nape Rocha precisa continuar vivo, Felipe precisa continuar viva, minhas amigas precisam continuar vivas. É um desejo de vida.

E daí vem o “O trauma é brasileiro”. Nessa exposição eu apresento minha terceira experiência instalativa Quarto de Cura, que é um quarto onde… não é uma apresentação de resultados das experiências estéticas que tive na Fonte Grande mas é uma proposição de um outro marco nessa experiência de imersão que eu assumi com a Fonte Grande no leito de morte do meu avô Bininho, na última vez que o vi nesta vida terrena e quando eu disse pra ele: você não estará aqui nesta exposição com o seu corpo terreno, mas você estará aqui no meu nariz, na minha tonalidade de pele e no meu desejo de comer peixe e também no Brasileiro. Eu não sabia muito bem como seria o nome dessa exposição, mas assumimos ali, na última vez que eu senti o seu sopro de vida, daquela forma, que no nome da exposição teria Brasileiro.

E a partir daí eu começo a assumir essa pesquisa e nomeá-la.

Veja, “Cura Bantu;’ esse é o nome com que resolvi nomear esse encontro.

Bem, semana passada completei 23 anos de existência terrena e carnal. E hoje acontece um eclipse solar na lua nova. Será que a lua e sol se cansam enquanto dançam? E o que acontece nessa dança, que me faz querer continuar o giro do anti-horário? E como giro ou danço, se estou cansada? Enquanto estou cansada, ainda me movimento, pois o descanso é uma dança, é uma respiração. É a dança que o vento faz dentro de mim durante minha meditação.

Eu medito desde os primeiros anos que assumi a guerra. Nunca precisei me assumir bixa ou travesti, pois o meu corpo é autônomo a essas linguagens faladas, criadas por essa ocidentalidade. Antes da linguagem, há a língua. Veja, antes da linguagem há a língua. Mas não é só o ver, é também o sentir. Sinta essa língua, o órgão, o corpo. Antes da linguagem verbalizada, acontece a linguagem gestual. Antes do convite ser aceito, meu corpo já dança com a lua e com o sol.

E o convite, qual é esse convite? Eu convido você a entrar nesse território de liberdade perecível que é o Quarto de Cura. Aqui eu proponho alguns convites, e não são a todos e podem ser para alguns; que juntos fazem o todo. E esse é o todo que venho criando, é esse todo que venho desejando. Um todo criado por alguns.

Esse quilombo que tenho construído é diferente daquele que existe na Fonte Grande e que existia e que já existiu. É uma pergunta e uma constatação: é diferente?! Já deixou de existir esse quilombo na Fonte Grande e na Piedade?! E como é? É uma pergunta e uma constatação. É uma verdade ou uma origem que não descubro e sim crio enquanto visito e crio aquilombamento na Fonte Grande. Não há uma tentativa de descobrir uma origem em um passado que teoricamente está estático.

Há uma experiência de construção dessa origem. E que origem é essa que tenho construído? É de fato essa origem Bantu que Renato tanto me ensina todos os dias que eu ligo pra ele – e às vezes ele não me atende. É uma ordem que se cria enquanto danço lá em cima e enquanto quero dançar na boca da mata.

Essa foto foi tirada na boca da mata. Essa casa foi construída pelos meu bisavós. Esse quintal hoje e essa casa, pertencem a uma família indígena evangélica que tem vergonha de ser indígena. E continua sendo indígena e continua sendo quilombo. Dançar nessa boca enquanto percebo e enquanto lembro no gesto que sou filha da lua crescente. Dançar na boca da mata e lembrar que sou filha da boca crescente.

Nasci semana passada e quando Renato me convidou para montar o Quarto de Cura em sua casa na Fonte Grande. A gente passou 30 dias em sua casa ao modos das benzedeiras e das psicólogas antirracistas, que não são quaisquer psicólogas. Eu me propus, eu e Renato Santos, a ficarmos lá por 30 dias. Montei o Quarto de Cura lá, antes daqui. Ficamos de dezembro de 2018 até janeiro de 2019, produzindo descarrego desses traumas coloniais e descarrego dos carregos dessa colonialidade que cria uma experiência de mortificação e violência para pessoa negras. Negras capixabas, mas não só, também as pessoa negras que vivem a experiência da diáspora nesse planeta.

E nasci enquanto morria, porque eu morri quando lembrava de minha existência; que são de quinhentos anos e mil anos. Quando pergunto quantos anos eu tenho ou quando me questiono sobre minha existência, eu afirmo: eu não tenho vinte e dois anos. Eu não tenho vinte e três anos e eu não tenho e não terei vinte e quatro anos. Assim como já tive dezoito, e quinze e também já tive e tenho ainda hoje quinhentos e mil anos. A minha existência é composta por mil anos anos e mil vidas. E não só mil vidas, mas é composta por um conjunto de vidas que eu não consigo nem nomear.

Esse conjunto de vidas que muitos deles estão justamente nas Kalungas que Renato tanto diz e me ensina. Então, quantos anos de fato eu tenho? Quero ter a idade de uma semente e ser novamente plantada pela minha avó Julite e pela minha avó Éda.

Mas se ainda não sou, serei aquela que irá plantar um jardim para não precisar de ir na farmácia. É assim que surge a Vila Rubim? De um desejo de não querer ir na farmácia? Pois é assim que me curo, indo na Vila Rubim.

Coreografias aprendidas enquanto desaprendo a colonialidade. É quando crio meus eclipses solares e lunares. E hoje realmente está acontecendo um eclipse solar na lua nova, em uma lua de câncer. Sim, os crio sempre que choro ou descaso, mas não tenho chorado ou descansado muito nos últimos meses. Faz alguns meses que não chove em meus sonhos e também faz alguns meses que meus músculos desejam o descanso.

A Cura é assim isso e é assim que faço a cura. Compreendendo-a para continuar viva. A Cura é uma questão de Tempo, e os meses podem ser dias ou meia hora. O amor de Marinheiros é um amor de meia hora. Quanto Tempo dura meia hora? Estou descobrindo quanto Tempo dura meia hora enquanto me proponho a todas as semanas e a todos os dias subir e descer a Fonte Grande e criar ali uma outra situação temporal e geográfica.

E qual Tempo que se inaugura na Fonte Grande quanto eu subo e quando decido subir? Quando eu faço o Quintal Bantu lá, junto com Renato, Rafael Segatto, Natan Dias, junto com Kika Carvalho, junto com Felipe Lacerda, junto com tantos outros artistas que juntos construímos uma situação aí de liberdade e de cura e de crueldade.

Esse Tempo estou descobrindo e estou descobrindo enquanto estou virando sereia. Assim como já fui e sou uma planta. Sou um corpo-flor. Sou planta, terra e mar. E se todo conhecimento tem uma origem, qual origem consigo criar com o meu corpo cansado?

É sempre quando eu consigo mergulhar nas kalungas sem me afogar.

E como aprendi a nadar? Como estou aprendendo a nadar nessa kalunga, nesse mar, nesse atlântico?

Eu aprendo a nadar quando tive a coragem de mergulhar e aprender.

Obrigada.

Currículo

Castiel Vitorino Brasileiro

Artista, graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisa e inventa relações em que corpos não-humanos se desprendem das amarras da colonialidade. Compreende a macumbaria como um jeito de corpo necessário para que a fuga aconteça. Dribla, incorpora e mergulha na diáspora Bantu, e assume a vida como um lugar perecível de liberdade. Idealizadora do projeto de imersão em processos criativos decoloniais Devorações. Mora em Vitória/Espirito Santo – Brasil. Contato: castielvitorinob@gmail.com, https://castielvitorinobrasileiro.com/sobre.

Como citar este artigo

VITORINO, Castiel. Cura Bantu. In:forumdoc.bh.2019: 23º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2019. p. 148-151 (Impresso); p. 150-153 (On-line).

Notas

[1] Transcrição da participação de Castiel Vitorino na roda de conversa Cura Bantu, junto de Renato Santos. Essa conversa pública aconteceu em 02 de Julho de 2019, e fez parte das atividades da primeira exposição individual da artista, “O trauma é brasileiro”, na Galeria Homero Massena, Vitória/ES.