Da montagem como lugar de encontro

Nossa história em comum com Cristina Amaral começa, provavelmente, no ano de 2008, quando junto a Andrea Tonacci vieram para exibir Serras da Desordem – este filme que nunca cessa de nos lançar à vertigem de suas infinitas perguntas. A partir daí, Tonacci e Cris tornaram-se amigos e colaboradores do festival, seja voltando sempre que possível para trazer filmes realizados e montados por eles, seja para integrar mostras específicas: como o acontecimento que consistiu na mostra Olhar: um ato de resistência, no forumdoc.bh.2015, dedicada aos cinemas indígenas das Américas, com idealização e curadoria de Tonacci, em sua última vinda a Belo Horizonte. A participação ativa de Cristina nos diálogos e encontros entre cineastas e público foi uma parte importante dessa história, assim como sua presença na abertura do forumdoc.bh.2018 junto a Raquel Gerber e Makota Valdina, para o debate a partir de Abá (1992) e Orí (2009). 

  Nos últimos anos, Cristina tem estado conosco constantemente por meio dos filmes nos quais tem trabalhado, como em Filme de Verão (2019), Curtas Jornadas Noite Adentro (2021) e Mato Seco em Chamas (2022), entre outros, que fazem parte daquele cinema brasileiro que mais admiramos: um cinema arriscado, político, que não se exime de tocar o real, ser perfurado por ele, pensá-lo, reinventá-lo.

  Cris Amaral parece viver intensamente a provocação que um dia Paulo Emílio Salles Gomes dirigiu aos seus alunos: “O cinema não existe!”¹. Se a montagem é um momento crucial do processo cinematográfico, é principalmente porque não há cânone ou regras pré-determinadas que orientem a forma final que um filme deve atingir. Diante de um material bruto, matéria viva que documenta um processo de filmagem, é preciso “lavar os olhos” – como ela diz na entrevista aqui publicada – para sempre recomeçar o cinema do seu início, do total desconhecimento.

  Para montar um filme, é preciso suportar o tempo e o silêncio, num corpo a corpo com a matéria das imagens. A sala de montagem é esse lugar solitário onde tantas vezes se percorre o material filmado, onde se convive radicalmente com personagens que um dia chegarão aos olhos do público: Aurélia Schwarzenega, Rivaldo Torres, Teodoro Xavier, Ana Moyses, Carapiru, Léa, Chitara, Vassourinha e tantos outros que foram vividos de modo paciente e incansável por ela. Afinal, a montagem é também uma questão de manter a alteridade viva.

A montagem não é uma instância de confirmação de nenhuma realidade anterior ao cinema. Em todas as etapas da produção de um filme, o pensamento está envolvido, e podemos – seja documentário ou não – interrogar a realidade, extrair dela mais do que as opressões que nos impossibilitam, mais do que os poderes que nos desvitalizam. A montagem é pensamento e resistência, na medida em que ela interroga a realidade e a transforma. 

Reconhecendo que a maneira de Cristina Amaral habitar a montagem é norteada pelo pensamento e por esta resistência, transformando os cânones, esta pequena mostra propõe um mergulho na produção brasileira do início dos anos 1980 até 2013. Com este recorte histórico preciso, teremos a possibilidade de compreender melhor algumas das alianças através das quais o seu trabalho se construiu, bem como ouvi-la sobre sua forma de lidar com as imagens, reunindo, distinguindo, tramando e sublinhando formas. 

Neste salto rumo ao passado, começamos com Ana (1982), de Regina Chamlian, um curta que surge de parcerias significativas do seu tempo de formação na ECA/USP – parcerias que se estendem a Regina, mas também a Joel Yamaji, que assina como corroteirista. Este filme, em que Cris participa também como fotógrafa, é uma pequena peça oculta e preciosa que aborda o trabalho da artista Ana Moyses em seu ateliê. O curta lança mão da entrevista e de recursos do documentário de observação, mas também faz uma utilização original da música, um agente transformador da montagem, como Cris nos conta na entrevista. 

Na mesma sessão, também teremos a oportunidade de assistir a Fronteira: Carajás (1992), filme da socióloga e cineasta Edna Castro, que trabalha sobre as problemáticas sociais e ambientais do Sul do Pará e da Pré-Amazônia maranhense, atingidos desde os anos 1960 por uma intensa política desenvolvimentista, pelo extrativismo desenfreado e por ondas migratórias desreguladas devido ao programa Grande Carajás. Para além de sua relevância sociológica, a montagem de Cristina Amaral consegue tensionar a descrição sociológica com uma experiência bastante singular do tempo das imagens, mostrando o poder impiedoso das máquinas e a multidão de trabalhadores convocados pela tragédia do avanço predatório sobre a floresta. 

Este primeiro conjunto de curtas ainda conta com dois trabalhos de Raquel Gerber, uma parceria fundamental para compreender a trajetória da montadora. O primeiro deles é Abá (1992), que surge do desejo da realizadora de utilizar material que não entrou em Orí (1989), outro filme imprescindível na filmografia sobre o candomblé – e que também contou com Cristina como montadora. Às voltas com aquilo que restou de Orí, Raquel e Cris construíram um curta que, pela “energia religiosa fortíssima” que carrega, é considerado pela montadora como um filme-oração. André Brasil, no catálogo do forumdoc de 2018, parece ecoar esta percepção: “Mais do que a sucessão dos eventos ou a integralidade da performance, os planos fazem tocar as mãos, os corpos (e o sagrado), em uma montagem por contato; montagem tátil, em que o que se toca é tangível e intangível”².

Também é de uma busca ligada à espiritualidade que surge Ongamira - O tempo não existe (2013), o outro filme da mesma realizadora. O filme se inicia com uma entrevista com Juan Carlos Asís, o secretário de Krishnamurti nas Américas, mas, em sua deriva visual, acaba por se envolver com a paisagem do Vale de Ongamira, na Argentina, entrelaçando a presença ancestral dos povos originários com uma busca pela reaproximação do humano à natureza. 

O segundo conjunto de curtas reúne trabalhos realizados em película nos últimos anos do século XX, às voltas com uma pluralidade de temas e formas. Em Eu sei que você sabe (1995), o primeiro curta de Lina Chamie, é construída uma aguda crítica social, tendo como alvo o pensamento das elites, empregando uma linguagem inventiva que extrapola as amarras naturalistas. Já A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha (1998), um dos poucos filmes de Carlos Adriano não montados por ele, apresenta um livre retrato inspirado na herança musical desse sambista dos anos 1930, falecido ainda jovem. Contando ainda com Carlos Reichenbach na direção de fotografia, o curta ressalta o caráter atemporal e extraordinário das composições de Vassourinha, que marcaram um pedaço da história do país.

Os últimos curtas desse conjunto inauguram uma frente importante da mostra, em seu desejo de convocar as principais relações afetivas que atravessaram a trajetória de Cristina: sua aliança de ofício e vida junto a Andrea Tonacci. Como no curta Biblioteca Nacional (1997), um trabalho comissionado com roteiro de Luiz Rosemberg Filho e direção de Tonacci, que tem como mote esse espaço histórico já consolidado no imaginário carioca, abordando também a importância cultural dos livros e do próprio ato de ler, de modo a ampliar em muito o que se entende por filme institucional. Alguns anos antes, Cristina montou também Óculos para ver pensamentos (1994), um vídeo feito por Tonacci para o evento Arte/Cidade, em São Paulo, que promoveu o encontro entre um repentista e um rapper, contando com a presença do próprio diretor na cena filmada.

Dentre os longas dirigidos por Tonacci e montados por Cristina, reconhecendo a magnitude e influência inconteste de Serras da Desordem (2006) para a cinematografia nacional, optamos por trazer um outro longa para a programação. Exibido no forumdoc.bh há pouco mais de uma década, o reencontro com Já Visto Jamais Visto (2013) hoje pode revelar outras camadas de entendimento – ou melhor, de sensação – sobre as imagens e as curvas da memória, demonstrando em seu avesso o exímio trabalho de montagem ali desenvolvido. Tanto no depoimento de Tonacci, republicado neste catálogo, quanto na nossa entrevista com Cristina, o processo desse longa aparece como um momento singular de desafio e aprendizagem para ambos, algo inclusive difícil de ser mensurado em palavras, e que oferece um outro tipo de encontro com aquilo que convencionamos chamar de cinema. 

Outra corrente subterrânea que marcou a elaboração de Cristina como montadora foi o encontro profissional com Carlos Reichenbach (ou Carlão, como era conhecido) no início da década de 1990. Velhos conhecidos há anos, foi com o convite para que ela montasse seu próximo longa, Alma Corsária (1993), o primeiro que Cristina montou sozinha, que nasceu essa parceria produtiva que só se encerraria com o falecimento do diretor, em 2012. Com um roteiro centrado em uma relação de amizade entre dois escritores, e dotado de uma estrutura arrojada de montagem, ao atravessar décadas de história do Brasil, Alma Corsária surgiu em um contexto de grande escassez de financiamento e difusão. Tornou-se, contudo, um marco do cinema nacional daquele contexto, como a própria Cristina sinaliza, tendo sido igualmente responsável por transformar a vida de todos os envolvidos.

Garotas do ABC (2003), outro filme de Carlos Reichenbach, é lançado no mesmo ano da chegada de um operário à presidência do país. Na entrevista deste catálogo, Cris nos relata que o filme foi pouco compreendido na época, e imaginamos que isso se deva ao entusiasmo democrático que então permeava o país. Entretanto, ao figurar um grupo de mulheres trabalhadoras de uma tecelagem em contraposição a um grupo de neonazistas de inspiração integralista (o ovo da serpente que não cessa de ser chocado), Carlão parece compreender, nas sombras daquele presente, a multiplicidade de forças políticas que se embatiam no “chão da fábrica”, e o quanto ainda seria necessário lutar contra as forças do patriarcado, do racismo e da xenofobia em nosso país. 

Algumas palavras parecem ecoar a partir do encontro, promovido por esta mostra, com o trabalho, a presença e o compromisso de Cristina Amaral diante do mundo e do cinema; termos como intuição, afeto, partilha e desejo que, mais do que ideias abstratas, são práticas que singularizam sua atuação em mais de quatro décadas vividas junto aos sons e às imagens. Cristina fala sobre a sorte de um dia ter compreendido aquilo que gosta de fazer, pois, dessa forma, o prazer e a energia nunca se esgotam, “pois é uma descoberta” constante, como ela assinala na entrevista. Talvez seja esse sentido perene de descoberta que fica como uma das muitas inspirações do seu legado, que ainda se estenderá por anos a fio, surpreendendo-nos a cada nova invenção. E, nesse caso, a sorte é toda nossa, de sermos contemporâneos seus.

Notas

  1. “Lembro-me que um dia, numa aula, [Paulo Emílio] fez a afirmação categórica de que o cinema não existia. (...) Sua intenção era mostrar que o cinema não existia, existiam apenas os filmes. Era uma maneira de nos conduzir para liquidar qualquer forma de dogmatismo em relação ao cinema, de preconceitos em relação aos filmes, enfim, de acabar com toda uma formação que pessoas como nós tínhamos adquirido (...). E Paulo Emílio nos jogou para uma abertura total, da mesma forma que nos tivesse atirado numa piscina, sem que soubéssemos nadar”. BERNARDET, Jean Claude. Revista Filme Cultura, n. 28, fev. 1978. p. 19.\
  2. BRASIL, André. “Tempo é o vento, vento é o tempo”: montagem cósmica em Abá. In: Catálogo forumdoc.bh.2018. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2018. p. 150.