Os Tikmũ’ũn¹ sempre andaram por aqui, nestas terras que vocês, brancos, chamam hoje de Vale do Mucuri e que nós chamamos kõnãg mõg yok, “onde corta o rio”. Éramos muitos antigamente e vivíamos acompanhando as águas. Fazíamos uma aldeia, caçávamos, pescávamos e dançávamos com os yãmĩyxop (espíritos) e depois de um tempo os mais velhos se reuniam e decidiam se mudar. Antigamente não havia brancos aqui. Quando os primeiros brancos chegaram, eram muito bravos. Mataram muitos Tikmũ’ũn e trouxeram doenças também. Os “padres de roupa vermelha”² (ãmãnex xax ãta) traziam panos para os Tikmũ’ũn, que espalhavam sarampo e varíola. Quando um adoecia, todos se separavam, com medo, e fugiam pro mato. Foi assim mesmo que aconteceu aqui perto, em Itambacuri (MG). Os Tikmũ’ũn partiram, subiram até o Vale do Jequitinhonha, onde hoje fica Araçuaí (MG). Outros vieram do sul da Bahia e fugiram pra Minas Gerais, assim como fizeram os Yĩmkoxeka³ que foram subindo do Espírito Santo até chegarem em Teófilo Otoni (MG). E quando se encontravam, os Tikmũ’ũn e os Yĩmkoxeka brigavam.
Mas havia o espírito de uma criança, yãmiy nãg, que sempre nos avisava quando alguma ameaça como os brancos ou os botocudo se aproximava. À noite, ele vinha e batia nas madeiras da casa do seu pai tok tok tok tok e avisava: “Pai! Pai! Vocês devem partir! Leve os Tikmũ’ũn pra longe daqui! Escondam-se! Os brancos estão vindo te matar!”. E então os Tikmũ’ũn fugiam outra vez. Por fim, chegamos onde hoje ficam as aldeias de Água Boa (Santa Helena de Minas, MG) e Pradinho (Bertópolis, MG) e nos escondemos debaixo de uma pedra bem alta, que chamamos mikax kaka, “debaixo da pedra”. Mas os brancos então já estavam por toda parte e nos perseguiam, querendo nos matar. Quando os brancos se aproximavam ou os Tikmũ’ũn ouviam passar um avião, corriam para dentro de uma gruta em Água Boa, onde viviam vários morcegos, e esperavam os brancos passarem. Os brancos iam embora, pensando que tinham acabado com todos, mas eles estavam lá, escondidos. Com o tempo, não teve mais jeito e eles tiveram que se envolver com os brancos. Os brancos traziam cachaça, tecidos, facas, foices e distribuíam entre eles. Naquele tempo, os Tikmũ’ũn não sabiam das coisas. Os brancos traziam uma faca e eles trocavam por terra, traziam um boi, e eles trocavam por terra, traziam cachaça, e eles trocavam... Os brancos tiravam foto dos homens e das mulheres e mostravam pra eles dizendo: “Aqui está a alma (koxuk) de vocês! Se vocês não forem embora daqui, vamos destruir vocês todos!”. E os Tikmũ’ũn, com medo de perderem seus yãmĩyxop (espíritos), fugiam. Assim os fazendeiros foram tomando as nossas terras e derrubando toda a mata. Nós mesmos, quando crescemos em Água Boa, vimos com nossos próprios olhos a mata grande. Mas com o tempo os fazendeiros derrubaram tudo e a floresta virou capim. Nós, Tikmũ’ũn, tivemos que escolher: ou perdíamos a terra ou perdíamos a língua. Preferimos perder a terra do que perder a língua. Se tivéssemos escolhido perder a língua, já não existiríamos mais. Teríamos todos desaparecido, como muitos outros povos que viviam aqui.
Hoje, a terra onde vivemos é pequenininha. Os brancos tomaram tudo. A terra, as águas, o céu, o sol e o vento hoje estão doentes. Por quê estão doentes? Porque a mata acabou, os rios secaram e as nossas águas adoeceram. O corpo da terra está quente. Plantamos sementes e mudas, mas elas não crescem mais como antes. A terra está quente por dentro e por isso as sementes se queimam antes de brotar. Mesmo se molharmos, não crescem tão rápido como crescem com a água da chuva. A mata hoje está fraca. Não há mais árvores altas e fortes como as que viviam aqui antigamente. A chuva e os ventos estão com raiva e não querem mais cair ou soprarem por aqui. Por isso a terra está tão quente. Quando a água dos lagos evapora, se transforma em nuvens vermelhas, que também estão doentes e esquentam a terra. Chove forte, mas a chuva que cai hoje em dia adoece as nossas crianças. Antigamente, nossas crianças não adoeciam como hoje, porque havia muita mata e muita sombra. Mas hoje, quando chove ou venta, elas começam a tossir, a gripar e a queixar dor de garganta, dor de cabeça... Antigamente, não tinham nada disso. Mas os brancos chegaram e derrubaram toda a mata, poluíram os rios, construíram usinas hidrelétricas e acabaram com os peixes. Nossos avós viviam até os cem anos. Mas nós não chegaremos nesta idade, porque hoje temos doenças que não conhecíamos e já não comemos mais como antigamente.
Ainda assim, os Tikmũ’ũn sabem curar esta terra. Nós podemos trazer de volta a mata, as frutas e os bichos. Quando chegamos aqui, em Aldeia Verde (Ladainha-MG), a mata era pequena. Os fazendeiros que viviam aqui tinham queimado tudo para fazer carvão e por toda parte só víamos braquiária. Depois que chegamos, a mata voltou a crescer, mas mesmo assim a terra é muito pequena. Os brancos têm poucos filhos hoje em dia, mas nós não. Nós temos muitos filhos e um dia a nossa terra não caberá mais tanta gente. Ou vamos todos virar brancos e morar em casas compridas de cimento como nas cidades? Nós morando em baixo, nossos filhos no andar de cima, nossos netos e os filhos dos nossos netos em cima deles? E como os yãmĩyxop (espíritos) vão fazer para buscar comida nestas casas? Vamos ter que descer de elevador para levar comida para eles? Ou amarrar um cipó bem comprido para que eles subam, como macacos, buscando comida? Não vai dar!
Por isso pedimos para o governo aumentar as nossas terras. Mas nós, os Tikmũ’ũn, somos muito desprezados. Os governos não reconhecem que somos indígenas vivendo em Minas Gerais e que temos ainda a nossa cultura viva. Todos os presidentes que assumem não reconhecem a existência do nosso povo e da nossa cultura forte, que aqui também nós temos as nossas madeiras vivas, que são gente, e que precisamos criar os seus filhos para continuar existindo os remédios da mata e a água que faz as nossas crianças crescerem fortes como as árvores. Hoje os pajés tikmũ’ũn estão muito cansados e tristes. Por quê vocês acham que eles estão se matando? Estão se matando para não terem que continuar assistindo a tudo de ruim que acontece por aqui. Os yãmĩyxop já não têm mais onde caçar, banhar ou o que comer. As matas e os rios acabaram. Daí a preocupação que não sai da cabeça deles. Por isso, muitas vezes, os pajés preferem se matar. Eles pensam assim: “Eu vou me matar! Eu vou viver com os yãmĩyxop e de lá vou cuidar dos Tikmũ’ũn!”. E assim eles fazem. Morrem, mas continuam aqui, entre nós, caminhando pela mata com os yãmĩyxop. Aqui, os yãmĩyxop já não podem caminhar como faziam antigamente. Os cantos já não surgem mais. Os fazendeiros nos cercaram. Por onde a gente anda, vemos cercas e placas dizendo “proibido caçar”, “proibido pescar”, “proibido atravessar”. Os fazendeiros são todos onças. Não podemos continuar vivendo assim!
Currículo
Isael Maxakali
Cineasta indígena. Vencedor do PIPA Online 2020, realizou, entre outros, Nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa! (2020, com Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero), Quando os yãmiy vêm dançar conosco (2011, com Renata Otto Diniz e Sueli Maxakali), Konãgxeka: o dilúvio maxakali (2016, com Charles Bicalho), e Yãmiyhex: as mulheres-espírito (2019, com Sueli Maxakali), premiado na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Sueli Maxakali
Cineasta indígena, realizou, entre outros, Nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa! (2020, com Isael Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero), Quando os yãmiy vêm dançar conosco (2011, com Renata Otto Diniz e Sueli Maxakali) e Yãmiyhex: as mulheres-espírito (2019, com Isael Maxakali), premiado na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Como citar este artigo
Maxakali, Isael; Maxakali, Sueli. Desta terra, para esta terra. Tradução e edição de Roberto Romero. In: forumdoc.bh.2017: 21º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2017. p. 100-102 [Impresso]; p. 102-104 [Online].
Notas
1. Mais conhecidos como Maxakali, os Tikmũ’ũn são cerca de 2.000 pessoas vivendo em três terras indígenas no Vale do Mucuri, nordeste de Minas Gerais.
2. Provável referência aos padres capuchinhos, responsáveis pela implantação das missões em toda a região do Vale do Mucuri entre os séculos XIX e XX.
3. yĩmkoxeka ou “orelhas grandes” é como os Tikmũ’ũn se referem aos seus vizinhos tradicionais, os povos borun, como os Krenak que vivem hoje nas margens do Rio Doce.