Diferente de você/Como você: mulheres pós-coloniais e as questões interligadas da identidade e da diferença

traduzido por Augusto de Castro

Levantar a questão da identidade é reabrir a discussão da relação sobre o ser, o outro e suas representações das relações de poder. Identidade é entendida no contexto de uma certa ideologia de dominação e por muito tempo tem sido uma noção que se baseia no conceito de um núcleo autêntico essencial que permanece escondido para a consciência do ser e que requer a eliminação daquilo o que é considerado estranho ou não verdadeiro, quer dizer, o não-Eu, o outro. Para um tal conceito, o outro é quase inevitavelmente oposto ao “eu” ou submetido à sua dominação. Está sempre condenado a permanecer como sombra, enquanto intenta tornar-se seu equivalente. Identidade, assim compreendida, pressupõe que uma clara linha divisória pode se interpor entre o “Eu” e o “não-Eu”, ele e ela; entre profundidade e superfície ou identidade vertical e horizontal; entre nós aqui e os outros, lá. Quanto mais distante desta essência, menos a mulher tende a ser encarada como capaz de preencher seu papel como “Eu” verdadeiro, a real Negra, Indiana ou Asiática, a real mulher. A busca por uma identidade é, portanto, geralmente uma busca pelo ser perdido, puro, autêntico, verdadeiro, real, genuíno, original, por vezes situada num processo de eliminação de tudo o que é considerado outro, supérfluo, falso, corrompido ou ocidentalizado.

Se identidade refere-se ao conceito de igualdade total do ser, o estilo de um “Eu” contínuo que permeia todas as mudanças a que se submete, então a diferença se mantém na fronteira que distingue uma identidade da outra. Isto quer dizer que, por essência, X deve ser X, Y deve ser Y, e X não pode ser Y. Aqueles que saem por aí gritando que X não são X e que X podem ser Y geralmente terminam em um hospital, num centro de reabilitação, num campo de concentração ou numa reserva. Todos os desvios do pensamento dominante – isto é, da crença em uma essência permanente da mulher e em sua identidade invariável, embora frágil, cuja perda é considerada um perigo especificamente humano – pode facilmente encaixar-se em categorias de insanidade mental ou subdesenvolvimento mental.

Provavelmente é difícil para uma mente normal e investigadora reconhecer que buscar é perder, pois buscar pressupõe uma separação entre quem busca e o que é buscado, o “Eu” contínuo e as mudanças que vivencia. Poderia a identidade, de fato, ser vista de outra maneira que não como um subproduto do manuseio da vida pelos homens, mas um subproduto que, de fato, se refira não mais a um padrão consistente de igualdade e sim a um inconsequente processo de alteridade? Como se deve perder, manter ou ganhar uma identidade feminina quando é impossível para mim assumir uma posição fora desta identidade que eu presumidamente alcancei ou sinto? Diferença em tal contexto é o que enfraquece a ideia mesmo de identidade, distinguindo infinitamente as camadas da totalidade que formam o “Eu”.

A hegemonia trabalha nivelando diferenças, padronizando contextos e expectativas nos mínimos detalhes de nossas vidas cotidianas. Desmascarar este nivelamento de diferenças é, portanto, resistir àquela noção de diferença que, definida nos termos do Mestre, frequentemente recorre à simplicidade das essências.

Divisão e conquista têm sido seu credo por séculos, sua fórmula de sucesso. Mas um terreno diferente da consciência tem sido explorado já há algum tempo, um terreno em que divisões claras e oposições dualísticas tais como ciência versus subjetividade, masculino versus feminino podem servir como pontos de partida para uma proposta analítica, mas não são mais satisfatórias, senão totalmente impalpáveis, para uma reflexão crítica.

Frequentemente me perguntam sobre aquilo o que alguns espectadores identificam como falta de conflitos em meus filmes. Conflitos psicológicos são geralmente equacionados com substância e profundidade. Conflitos no contexto ocidental geralmente servem para definir identidades. Minha sugestão para esta “falta” é: deixe a diferença substituir o conflito. A diferença como é entendida em muitos contextos feministas e não-ocidentais, e a diferença como uma base para meu trabalho fílmico, não é oposta à igualdade, não é sinônima de separação. Diferença, em outras palavras, não incita necessariamente o separatismo. Existem diferenças assim como similaridades no próprio conceito de diferença. Alguém poderia ir além e dizer que diferença não é o que produz conflitos. É o que está além e lado-a-lado ao conflito. Isto é, onde a confusão frequentemente emerge e onde o desafio pode ser lançado. Muitos de nós ainda nos apegamos à diferença não como uma ferramenta da criatividade para questionar as múltiplas formas de repressão e dominação, mas como uma ferramenta de segregação, de exercício de poder à base de essências raciais e sexuais. A diferença do tipo apartheid.

Deixem-me pontuar alguns exemplos de práticas de tal noção de diferença. Existem várias, mas selecionarei três e talvez possamos discuti-las. Primeiramente, gostaria de dar o exemplo do véu como realidade e metáfora. Se o ato de revelar possui um potencial libertador, assim também o possui o ato de encobrir. Tudo depende do contexto em que tal ato é conduzido, ou mais precisamente, em como e onde as mulheres veem a dominação. A diferença não deve ser definida nem pelo sexo dominante nem pela cultura dominante. De modo que, quando as mulheres decidem erguer o véu, pode-se afirmar que elas o fazem desafiando o direito opressivo dos homens sobre seus corpos. Mas quando decidem manter ou colocar o véu antes retirado, elas podem fazê-lo de modo a reapropriarem seu espaço e a reivindicarem uma nova diferença, desafiando uma padronização centralizada, hegemônica e sem gênero.

Em segundo lugar, o uso do silêncio. Dentro do contexto da fala das mulheres, o silêncio tem muitas faces. Assim como o véu das mulheres acima mencionado, o silêncio somente pode ser subversivo quando se liberta do contexto masculinamente definindo de ausência, escassez e medo enquanto territórios femininos. Por um lado, corremos o perigo de inscrevermos a feminilidade como ausência, falta e vazio ao rejeitar a importância do ato de enunciação. Por outro lado, reconhecemos a necessidade de colocarmos as mulheres ao lado da negatividade e de trabalharmos em tom suave, por exemplo, em nossas tentativas de enfraquecer os sistemas de valores patriarcais. O silêncio é tão comumente colocado em oposição ao discurso. O silêncio como uma vontade de não dizer ou uma vontade de desdizer, como uma linguagem própria, tem sido parcamente explorado.

Em terceiro lugar, a questão da subjetividade. O domínio da subjetividade entendido como horizonte sentimental, pessoal e individual oposto a um horizonte ilimitado, societário, universal e objetivo é por vezes atribuído a ambos as mulheres, o outro dos homens, e aos nativos, o Outro do Ocidente. Às vezes parte-se do pressuposto, por exemplo, que o inimigo das mulheres é o intelecto, que suas apreensões da vida podem apenas girar em torno de uma panela, de uma fralda de bebê ou das questões do coração. De modo similar, por séculos e séculos fomos ensinados que a mentalidade primitiva pertence à ordem emocional e afetiva, e que é incapaz de elaborar conceitos. O homem primitivo sente e participa. Ele não pensa realmente, ou raciocina. Não possui conhecimento, “nenhuma ideia clara ou mesmo qualquer ideia sobre a matéria e a alma”, como Lévy-Bruhl afirmou. Hoje, esta racionalidade persistente assumiu múltiplas faces, e seus resíduos ainda permanecem facilmente reconhecíveis a despeito da refinada retórica daqueles que a perpetuam.

Vale mais uma vez mencionar aqui a questão entre estrangeiro e nativo nas práticas etnográficas. A visão do nativo. O mundo mágico que suporta dentro de si mesmo um selo de aprovação. O que pode ser mais autenticamente outro do que uma alteridade pelo outro, ela mesma? Ainda assim, toda fatia do bolo doada pelo Mestre vem acompanhada por uma lâmina de dois gumes. Os africanistas dizem prontamente “você pode tirar um negro de um arbusto, mas não pode tirar o arbusto do negro”. O lugar do nativo é sempre bem delimitado. A realização fílmica “correta”, por exemplo, implica geralmente que africanos mostrem a África, os asiáticos a Ásia, e os euro americanos, o mundo. Alteridade tem suas leis e interdições. Uma vez que você não pode tirar o arbusto do negro, é o arbusto que lhe é de fato devolvido, e como as coisas geralmente caminham, é também deste mesmo arbusto que o negro deve fazer seu território exclusivo. E ele deve fazê-lo com a total consciência de que uma terra infértil dificilmente é um presente. Pois, no tocante às desigualdades de poder, mudanças geralmente requerem que as regras sejam reapropriadas de modo que o Mestre seja derrotado em seu próprio jogo. O doador vaidoso gosta de doar quando há o entendimento de que ele está em posição de retomar quando bem quiser e quando quer que o presenteado ouse trespassar os limites por ele estabelecidos. Este último, no entanto, não vê nisso nenhum presente. Vocês imaginam algo como um presente que é tomado? Então este último somente vê débitos, que uma vez devolvidos, devem permanecer como propriedade sua – embora a propriedade da terra seja um conceito estranho a ele, o qual se recusa a assimilar.

Através da resposta do público e expectativas sobre seus trabalhos, cineastas não-brancos são por vezes informados e relembrados em quais fronteiras territoriais devem permanecer. Uma nativa pode falar com autoridade sobre sua própria cultura, e é referida como a fonte da autoridade naquele assunto – não necessariamente como uma cineasta, mas como uma nativa, meramente. Este endosso automático e arbitrário de uma nativa como fonte de conhecimento legitimado sobre suas heranças culturais e seu meio-ambiente somente exerce seu poder quando se trata de uma questão de validação de poder. É um malabarismo paradoxal da mentalidade colonial. O que um estrangeiro espera de um nativo é de fato a projeção de um sujeito onisciente que este habitualmente reputa ser ele mesmo e os seus pares. Nesta relação eu/outro não reconhecida, contudo, o “outro” tende sempre a permanecer como a sombra do “eu”. Porquanto, não realmente, nem exatamente onisciente. Que um branco faça um filme sobre os Goba de Zambezi, por exemplo, ou sobre os Tasaday das florestas tropicais das Filipinas, dificilmente parece surpreender a qualquer um, mas que um membro do terceiro mundo filme outros povos do terceiro mundo, nunca deixa de parecer questionável para muitos. A questão relativa à escolha da temática se levanta imediatamente, às vezes por curiosidade, e outras, por hostilidade. O casamento não é mais possível para o par exterior/interior, ou seja, objetivo versus subjetivo, e sim algo entre o interior/interior – objetivo no que já se presume enquanto objetivo. Portanto, sem conflito real.

A interdependência não pode ser reduzida a uma mera questão de escravização mútua. Ela também consiste em se criar um terreno que não pertence a ninguém, nem mesmo ao criador. A alteridade se transforma em empoderamento, diferença crítica, quando não se é dada, mas recriada. Além disso, onde deveria cessar a linha divisória entre estrangeiro e nativo? Como deveria ser definida? Pela cor da pele, pela língua, pela geografia, pela nação ou pelas afinidades políticas? E aqueles com identidades hifenizadas e realidades híbridas? É pertinente notar, por exemplo, uma matéria jornalística publicada na revista Time intitulada “O Jogo Louco das Cadeiras Musicais”. Neste curto relato a atenção é voltada para o fato de que na África do Sul as pessoas são classificadas por raça e lugar dentro de nove categorias raciais que determinam onde elas podem viver e trabalhar, embora possam ter sua classificação alterada se provarem que foram colocadas no grupo errado. Logo, em um anúncio de reclassificação racial pelos Ministros de Assuntos Internos, sabe-se que nove brancos tornaram-se mestiços, 506 mestiços tornaram-se brancos, dois brancos tornaram-se Malaios, 14 Malaios tornaram-se brancos, 40 mestiços tornaram-se negros, 666 Negros tornaram-se mestiços, e a lista continua. Contudo, diz o ministro, nenhum negro se inscreveu para tornar-se branco. E nenhum branco tornou-se negro.

No momento em que a nativa dá um passo além do “interior”, ela não é mais uma mera nativa. Ela necessariamente olha para dentro, a partir de fora. Nem exatamente a mesma, nem precisamente outra, ela se mantém no patamar indeterminado no qual constantemente se move, para dentro e para fora. Subvertendo a oposição interior/exterior, sua intervenção é necessariamente aquela de ambas quase-nativa e quase-estrangeira. Ela é, em outras palavras, esta “outra” ou “mesma” inapropriadas que se move sempre entre dois gestos, ao menos: o da afirmação “Eu sou como você” enquanto persiste na diferença dela mesma e na lembrança de que “Eu sou diferente” enquanto desconstrói todas as definições de alteridade alcançadas.

Isto não quer dizer que o histórico “Eu” possa ser obscurecido e ignorado e que a diferenciação não possa ser produzida, mas que este “Eu” não é unitário, que a cultura nunca foi monolítica e está sempre mais ou menos relacionada ao julgamento do sujeito. Diferenças não somente existem entre uma estrangeira e uma nativa – duas entidades. Elas também operam no interior da própria estrangeira ou da nativa ela mesma – uma entidade singular. Ela sabe que não pode falar delas sem falar de si mesma, da História sem falar de sua história, também sabe que não pode fazer um gesto sem ativar o movimento incessante da vida.

A subjetividade no trabalho neste contexto de um outro inapropriado dificilmente pode ser submetida ao velho paradigma subjetividade/objetividade. Uma acurada consciência do sujeito político não pode ser reduzida a uma questão de autocrítica em direção ao autodesenvolvimento, nem de autocomplacência em direção à autoconfiança. Tais diferenciações são úteis para uma compreensão da subjetividade enquanto, digamos, ciência do sujeito ou meramente relacionada ao sujeito, que tornam o medo da autoassimilação parecer absurdo. A consciência dos limites nos quais se trabalha não precisa apontar para nenhuma forma de indulgência quanto à parcialidade pessoal, nem para a conclusão estreita de que é impossível entender qualquer coisa sobre outros povos, uma vez que a diferença é de essência. Ao recusar a naturalização do “Eu”, a subjetividade desvela o mito do núcleo essencial, da espontaneidade e da profundidade da visão interna. Subjetividade, portanto, não consiste em meramente falar sobre si mesmo, seja esta fala indulgente ou crítica. Em suma, o que está em questão é a prática de uma subjetividade ainda não ciente de sua natureza constituinte, donde a sua dificuldade em exceder o par simplista entre subjetividade e objetividade; uma prática de subjetividade que não está consciente de seu contínuo papel na produção de significado, como se as coisas fizessem sentido em si mesmas, de modo que a função do intérprete consistiria somente em escolher dentre as diversas leituras existentes; que ignora a representação como representação, isto é, a interrealidade política, sexual e cultural do realizador de cinema como sujeito, a realidade do filme e a realidade do aparato cinematográfico. E que ignora, por fim, a presença deste inapropriado “outro” no interior de todo “Eu”.

// Texto originalmente publicado por Center for Cultural Studies – UCSC. Em: http://culturalstudies.ucsc.edu/PUBS/Inscriptions/vol_3-4/minh-ha.html

Currículo

Trinh T. Minh-ha

Cineasta, escritora, teórica literária, compositora e professora vietnamita radicada nos Estados Unidos.

Como citar este artigo

MINH-HA, Trinh T. Diferente de você/Como você: mulheres pós-coloniais e as questões interligadas da identidade e da diferença. Tradução de Augusto de Castro. In: forumdoc.bh.2012: 16º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2012. p. 199-204 [Impresso]; p. 201-206 [Online].