O que / lança pedras / de raio /
contra a casa / do curioso /
e congela / o olhar do / mentiroso.
Leopardo, / marido de Oiá. /
Leopardo, / filho de Iemanjá. /
Xangô cozinha / o inhame / com o vento /
que sai / de suas ventas
1. Era 2011. À época, a Associação Filmes de Quintal, promotora do forumdoc.bh, realizava a pesquisa Mapeando o Axé, um inventário das comunidades tradicionais de terreiro em algumas regiões metropolitanas brasileiras¹. Sugeri ao coletivo que realizássemos uma mostra que contemplasse as representações das religiões de matrizes africanas/afro-religiões no cinema brasileiro. Essa ideia foi gestada e interrompida inúmeras vezes ao longo desses mais de sete anos, tanto pelas contingências da difícil sobrevivência de um festival que acontece em um centro periférico, afastado das tendências dominantes do mercado cinematográfico brasileiro, como pelos percalços da conservação cinematográfica em nosso país, em uma crise contínua que aflige todos os acervos, e mais especialmente a Cinemateca Brasileira.
2. A realização de mostras sobre o repertório cinematográfico brasileiro implica desde sempre no cruzamento e curto-circuito entre séries históricas diversas. Um passado desde sempre rasurado, votado ao esquecimento, atravessado pela nossa contínua paixão pela emergência do novo, que tudo destina do nascedouro diretamente à ruína. É como se o processo curatorial no Brasil fosse necessariamente imantado por categorias caras não às artes, mas a marketing cultural: a “atualização” e o “resgate”. Ainda assim, a recuperação paulatina de grandes filmes ignorados do passado, em mostras diversas pelos últimos 20 anos, aponta continuamente para obsolescência de nossa historiografia cinematográfica hegemônica², e engendrou filiações insuspeitas, em um processo de invenção a posteriori de precursores³. Mas a obsolescência é também ativa, força motriz do esquecimento a produzir continuamente, das listas de melhores filmes dos grandes jornais aos livros da ABRACCINE, a ignorância e a indiferença.
3. A mostra Ebó Ejé inclui 23 filmes (um dos quais work-in-progress) de épocas e metragens variadas. Concentra seu foco sobretudo no cinema brasileiro moderno, com apenas um trabalho mais antigo (as dificuldades de acesso à produção de cinejornais e missões folclóricas dos anos 30-50 minou nossos esforços de uma abrangência temporal maior) e ainda, em número menor, trabalhos realizados no período recente. O processo curatorial se desenrolou a partir de uma pesquisa mais abrangente, que contemplava, de modo bastante privilegiado, a produção ficcional brasileira, o que não se reflete na programação final. Há duas questões aí a serem consideradas: o desejo de concentrar o foco na representação do espaço dos terreiros, presente em quase todos os filmes que serão exibidos⁴, e ainda o desejo de que a mostra pudesse dialogar com várias das formas da experiência religiosa afro-brasileira, a dizer, Umbanda (Bahia de todos os exus, Ritos Populares: Umbanda no Brasil), Quimbanda (Exu Mangueira), Candomblé Ketu (Yaô, Orixá Ninú Ilê), Jeje (Merê, Nunes Ferreira – A Casa das Minas) e Bantu (Ylê Xoroquê, Dos tambores do Tombenci aos tambores do Dilazenze); Reinado (A Rainha Nzinga Chegou). Há ainda, é claro, inúmeras outras formas afro-religiosas brasileiras que não foram contempladas pela mostra (Jurema, Batuque, Bate-Folha, Catimbó e um vastíssimo etc.⁵), pois o desejo de abrangência não se confunde com uma pretensão impossível de totalização. De todo modo, essa mesma pretensão pluralística nos conduziu a uma ênfase no cinema documental, uma vez que a produção ficcional brasileira teve como referência maior, em suas articulações com as religiões de matrizes africanas, a umbanda. Em outra direção, é como se o cinema documentário fosse, simultaneamente, participante e testemunha direta do processo de dessincretização destas religiões, em que um “retorno deliberado à tradição significa o reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram perdidos e deturpados na adversidade da diáspora"⁶. Incluímos três filmes de caráter mais estritamente ficcional em nossa programação (Barravento, Jubiabá, Rapsódia para um homem negro), testemunhas vivas que são do poder das cosmologias em questão em constituírem-se como figurações abrangentes das relações raciais – bem como das relações de poder e opressão no Brasil.
4. Em um olhar superficialmente linear, a mostra Ebó Ejé retrataria a história de uma interiorização do fazer e das formas e procedimentos cinematográficos. Transportar-se-ia de uma perspectiva exterior à vida dos terreiros a um olhar interior, superar-se-ia uma das partilhas fundantes do próprio cinema documentário, na qual o sujeito filmado cede seu corpo ao cineasta ocidental que atribui sentido e expressão linguística às práticas “nativas"⁷. Mas o cinema brasileiro é feito de ciclos interrompidos e fraturados, trajetórias que não se completam, esperanças malogradas. É dispensável dizer que muito do que foi feito nos últimos anos corre risco agora e que, sob uma perspectiva mais abstrata, o caráter empenhado⁸ do cinema brasileiro, vocacionado à busca da aproximação e construção de figuras do popular, engendra infinitas miragens projetivas da autenticidade do povo, e nos enreda continuamente nas fronteiras borradas do “falar sobre” e o “falar para”⁹. Questão que se atualizou em “falar com” (desejo etnográfico) e no questionamento de “quem fala”?, reivindicado pelos que partilham dos mesmos universos de potência cosmo-ontológica, mas igualmente de discriminação racial.
5. A maior parte do conjunto apresentado é composta de filmes em grande medida esquecidos, uma vez que é contínua e ativa a produção do esquecimento intrínseca à própria lógica do sistema cinematográfico brasileiro. Esquecimento esse que não pode ser dissociado do curto-circuito que faz sobrepor o desejo pelo popular à obsessão eternamente adiada por um cinema de feições industriais. Esse traço estrutural do cinema brasileiro, a busca pelo “popular”, implicou em uma tomada do negro, do indígena, do pobre, como metonímias do “popular” – ou ainda, do nacional-popular, uma vez que as ideias de nação e povo são correlatas. Os filmes apresentados são, ainda, sintomas de outro esquecimento estrutural: o da exclusão de homens e mulheres negros e negras dos espaços de direção no cinema brasileiro. Desse modo, a mostra Ebó Ejé apresenta, ainda que discretamente, um acontecimento inaudito: a aparição recente de filmes dirigidos por homens e mulheres negros e negras, alguns dos quais pertencentes a espaços de axé (Rapsódia para um homem negro, Merê, Dos tambores do Tombenci aos tambores do Dilazenze)¹⁰. Essa emergência, relevante politicamente e esteticamente por si, é um acontecimento cujas consequências ainda nos escapam, e para o qual podemos tentar estabelecer uma premissa metodológica: tentar evitar um padrão da espectatorialidade das classes médias que vê nesses trabalhos um sentido unificado, que os vê como instrumentos de produção da autenticidade, e que buscará julgá-los por essa régua, que é exterior aos filmes¹¹.
6. Mostra sintoma e testemunho, entre o dentro e o fora, entre a permissão e o veto (importa lembrar que alguns filmes relevantes ficaram de fora da mostra devido às dificuldades das relações dos mesmos com os espaços sagrados, objetos de interpretações e críticas ativas de suas lideranças e demais pensadores próximos). Síntese aberta a paradoxos: algo do traço que subsiste em meio a nossa história coberta de ruínas ainda se insinua em meio aos filmes da Mostra Ebó Ejé.
Currículo
Ewerton Belico
É curador, professor, roteirista e diretor. É um dos curadores do forumdoc.bh e foi curador do Festival Internacional de Curtas-Metragem de Belo Horizonte e do Fronteira – Festival Internacional de cinema documentário e experimental de Goiânia. Curador da Mostra CineTropicália, realizado no SESC/Palladium, em Belo Horizonte. Foi professor da Escola Livre de Cinema. Foi co-roteirista de Subybaya, dirigido por Leo Pyrata, e co-roteirista e co-diretor do longa Baixo Centro, lançado na XXI Mostra de Cinema de Tiradentes, no qual foi vencedor do prêmio de melhor longa-metragem concedido pelo júri da crítica.
Como citar este artigo
BELICO, Ewerton. Ebó Ejé: percursos de uma curadoria. In:forumdoc.bh.2018: 22º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2018. p. 17-21 (Impresso); p. 19-23 (On-line).
Notas
[1] Sobre o projeto, ver <http://www.mapeandoaxe.org.br>.
[2] Dentre as várias iniciativas importantes no campo da programação, citaria: “Julio Bressane: Cinema inocente”, curada por Felipe Bragança, com a assessoria de Hernani Heffner, Carlos Roberto Souza e Bruno Safadi; as iniciativas lideradas por Paulo Sacramento, com a mostra “Cinema de Invenção” e o lançamento do box de DVDs da obra de Aloysio Raulino, em parceria com Otávio Savietto e Gustavo Raulino; a mostra “Cinema Marginal”, curada por Eugênio Puppo e Vera Haddad, com a assessoria de Juliano Tosi, Remier Lion e Jean-Claude Bernardet; a mostra “Ozualdo Candeias – 80 anos”, curada por Eugênio Puppo, com a assessoria de Arthur Autran e Jean-Claude Bernardet; a retrospectiva “Walter Hugo Khouri – meio século de cinema”, curada por Sérgio Martinelli, com a assessoria de Renato Pucci; a mostra “Cinédia 75 anos”, curada por Hernani Heffner; a mostra “Helena Solberg”, curada por Carla Italiano e Leonardo Amaral; a mostras “Documentário: Invenção de Formas/Pensamento crítico”, curada por Naara Fontinele durante do 19º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte; ou ainda a mostra “Cinema Negro: Capítulos de uma história fragmentada”, curada por Heitor Augusto durante o 20º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (conhecemos o belo Merê graças a essa mostra. Sou muito grato a Heitor por isso), além de iniciativas diversas feitas por mostras e festivais como a Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, o CineOP, a Mostra do Filme Livre, o Curta-Circuito e o forumdoc.bh. Os catálogos destas mostras e festivais são um importante documento de uma reconstrução possível da historiografia do cinema brasileiro.
[3] Refiro-me aqui a “Kafka e seus precursores”, de J.-L. Borges. In: Outras Inquisições. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
[4] Há exceções importantes aí, com filmes ficcionais que buscaram reconstruir o espaço e a sociabilidade dos terreiros. Citaria, de modo privilegiado, Prova de Fogo, de Marco Altberg.
[5] Há filmes significativos que buscaram registrar essas manifestações religiosas e que não estão em nossa curadoria. Uma lacuna importante a ser registrada, a meu ver, diz respeito especialmente às religiões Afro-indígenas. Citaria aqui, sobretudo, Malunguinho, de Felipe Peres Calheiros, e Toré, de João Torres.
[6] PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência, uma bibliografia, Revista Brasileira de Informação Bibliográfica nas Ciências Sociais, São Paulo, n. 63, 2007. p. 13.
[7] Penso aqui especialmente nas reflexões de Jean-Claude Bernardet em Cineastas e Imagens do Povo. Em suma, por que não programamos “Viramundo”, de Geraldo Sarno? É evidente que nossa curadoria seleciona um campo, que diz respeito mais especial- mente ao cinema que participa de uma virada antropológica que se situa sobretudo a partir dos anos 70. Com isso é possível por em questão alguns dos predicados internos dessa mesma virada.
[8] Faço aqui alusão ao conceito de “literatura empenhada”, formulado por Antônio Candido. Ver: CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira (momentos decisivos). Belo Horizonte: Itatiaia, 1995. p. 26.
[9] “Penso aqui nas reflexões do caráter projetivo da representação no cinema brasileiro que perpassam” Brasil em tempo de cinema, de Jean-Claude Bernardet.
[10] Esse último filme foi realizado diretamente pela comunidade do terreiro Matamba Tombenci Neto. É possível afirmar claramente que na Mostra Ebó Ejé que há uma sub-representação do audiovisual produzido nos terreiros, registros que não necessariamente são “cinema” – e nem precisam ser. Qualquer busca rápida pelas redes sociais ou pelo Youtube nos mostra vídeos em sua maioria curtos que foram realizados em contexto de terreiros, quase sempre em uma dinâmica próxima ao videoclipe. Nesse sentido, nossa mostra revela um traço etnocêntrico, ao continuar pensando o audiovisual como sinônimo do que costumeiramente chamamos – referimo-nos aqui a uma modalidade de experiência situada, em termos classistas e raciais – de “filme”, ou “cinema”, não abrangendo outras experiências de registro ou criação audiovisual.
[11] Penso aqui, novamente, nas reflexões de J-C Bernardet, em Brasil em tempo de cinema.