Emputecendo o cinema de mulheres

Quando, em Amores de rua (Eunice Gutman, 1994), uma jovem e sorridente Gabriela Leite afirma que, contra a normatividade hipócrita da sociedade monogâmica, a prostituta encarna uma inevitável transgressão, ela reconhece que leis (morais, sexuais, hetero-capitalistas) rígidas, sérias e túrgidas produzem suas próprias violações. O obsceno, o abjeto, é aquilo que, segundo Barbara Creed (2007), deve ser eliminado da cena pública por assombrar fronteiras, regramentos e posições socialmente instituídas, mas cuja existência é essencial para a cristalização de falsas normalidades. O abjeto opera como um repúdio fundacional, que designa zonas inabitáveis das nossas sociabilidades, ocupadas por “aqueles que não alcançam o estatuto de sujeito, mas cujo viver sob o signo do inabitável é necessário para circunscrever o domínio do sujeito” (BUTLER, 2019, p. 18). 

As putas, mais do que outras mulheridades, habitam o terreno das identificações pavorosas, do qual as vidas que “importam” devem, sob a bravata de sofrerem severas punições, se esquivar. O feminino domesticado e desejável, que exerce pacificamente (ou não) as atividades de reprodução social estratégicas à manutenção de um determinado sistema econômico – como parir (o proletariado), cuidar (dos outros) e foder (com o marido, exclusivamente) –, precisa de categorias opositoras para se edificar. A prostituição instaura limites: não se deve cruzar o limiar das aberrações. 

Consciente e confortável de ocupar o difícil, mas potencialmente transformador, lugar das monstruosidades queer, a matriarca do movimento organizado das trabalhadoras sexuais do Brasil, assim como as outras personagens de Amores de rua e, também, de Mulheres da boca (Cida Aidar e Inês Castilho, 1981) e Beijo na boca (Jacira Melo, 1987), nos instigam a apostar na capacidade libertária dessa travessia proibida, a alargar nossos sentidos de coletividade e a expandir um horizonte feminista de pensamento e ação, inclusive nos meandros do próprio cinema.  

A prostituição nunca foi uma questão menor em nossa cultura audiovisual. A fantasia prostibular alimentou não apenas a produção ficcional, como estimulou desejos criativos no campo do documentário. Nele, erigiu-se narrativas sobretudo vitimizadoras sobre as prostitutas – uma forte tradição desse território fílmico, como nos lembra Brian Winston (2011) –, comumente apresentadas como um tipo social aplainado, sem agência e consciência, incapaz de se rebelar diante de adversidades. Entrevistas de pendor confessional, retóricas de resgate, voyeurismos e abordagens de cunho sociológico costumam atrofiar compreensões sobre o trabalho sexual, profundamente estigmatizado, ainda, em outras instâncias midiáticas. Opondo-se, conscientemente ou não, a essas formações discursivas, elaboradas desde o primeiro cinema e amplamente adensadas ao longo dos séculos 20 e 21 – e não apenas em nosso país –, realizadoras pioneiras do que se convencionou chamar de um “cinema de mulheres” (VEIGA, 2019) se imiscuíram nos certames ásperos do meretrício propondo, com as putas, alianças insólitas (GALINDO, 2021). 

Nos anos 1970 e 1980, um arranjo específico de condições históricas e materiais motivou tais coalizões. Para além das influências de um já sedimentado cinema nacional engajado e do barateamento dos equipamentos de filmagem, fato que instigou, como se sabe, diversas transformações estéticas e de linguagem no cinema mundial, algumas mulheres tiveram acesso aos feminismos que se desenvolviam na América Latina e no Norte Global. Com as expatriações durante a ditadura militar (1964-1985), muitas militantes buscaram asilo em países como Cuba, Chile, Estados Unidos e França, onde cultivaram inspirações para a criação dos primeiros agrupamentos autonomeados feministas em nosso país. A prostituição, no caso, foi um dos tópicos a aportar em nossas terras, onde, nesse mesmo momento, já testemunhávamos o despertar de um putativismo aguerrido e combativo. Se as relações históricas entre os feminismos e as trabalhadoras sexuais nunca foram brandas, por aqui, pelo menos nesse contexto singular e contra repressões mais amplas e imediatas, mulheres muito diferentes precisaram se unir. 

Possíveis contaminações desses mais ou menos confortáveis encontros atravessam as obras de figuras como Helena Solberg (Simplesmente Jenny, 1977), Sandra Werneck (Ritos de passagem, 1979; Damas da noite, 1987) e Célia Resende (Mangue, 1979), assim como de Cida Aidar e Inês Castilho (Mulheres da boca, 1981), Jacira Melo (Beijo na boca, 1987; Meninas, 1989) e Eunice Gutman (Amores de rua, 1994). Seus filmes, em cotejo, nos permitem reflexionar sobre o estreitamento das vinculações entre cineastas e putas, antes de sua lamentável derrocada, impulsionada por vários fatores, nos anos seguintes. 

Em Mulheres da boca, parte-se de um gesto predominantemente observativo, de tonalidades jornalísticas, para delinear contendas no então polo do baixo-meretrício da capital paulista, a Boca do Lixo. Castilho e Aidar escolhem entrevistar um cafetão, Quinzinho, o Rei da Boca, e uma cafetina – que não é nomeada – em vez de dialogar diretamente com as garotas de programa: um risco ético e formal no qual apostam para alegorizar silenciamentos e opressões aos quais as prostitutas, a seu ver, estão sujeitas. Para efetuar denúncias, então, acabam recitando e reiterando vitimizações.

As personagens, entretanto, não são inteiramente apoucadas. Não se pode ignorar os acenos e aproximações que parecem querer, desde a alteridade, traçar semelhanças. A sequência inicial de Mulheres da boca, por exemplo, confirma achegamentos: a câmera se detém, por alguns instantes, nos rostos que compõem o mar de anônimas que passam cotidianamente pelo local. Há olhares de curiosidade, desprezo, raiva e deboche, que já instigam tensionamentos críticos sobre o que significa entrar com um aparato de filmagem nesses espaços: não se penetra em um puteiro impunemente. Ainda, o passeio por essa paisagem social suscita oportunas indistinções, já que não há como apartar as putas das não putas; talvez, apenas o acaso nos diferencie, como assopra a trilha de Yoko Ono, que se sobrepõe às imagens: “It happened at a time of my life when I least expected”. Apesar de cederem a salvacionismos, as realizadoras conseguem esboçar interessantes acolhimentos. 

Jacira Melo, em Beijo na boca, parte de uma estrutura visual confluente, perscrutando fluxos confusos e ordinários de trabalhadores e trabalhadoras no coração da cidade – e infere-se, aqui, que as prostitutas são percebidas menos como símbolo de uma decadência urbana, como é frequente nas práticas documentais, e mais como parte dessa densa massa proletária que luta e labuta todos os dias. Ainda que possamos identificar enquadramentos iconográficos dominantes – como aquele que percorre e escrutina o corpo das mulheres de cima a baixo – e inferir que algumas perguntas formuladas pela diretora (sempre eclipsadas pela montagem) retomem questionamentos comuns às dinâmicas confessionais presentes em documentários mais hegemônicos – como indagações sobre preferências sexuais, expectativas (presumivelmente frustradas) em torno do amor romântico, uso de drogas, criminalidade e sobre (a ausência de) sonhos ou ânimos prospectivos –, as meretrizes falam por si e conseguem verbalizar autonomias. A Boca do Lixo é perigosa, mas “ao mesmo tempo é 100% joia”, garante uma das interlocutoras. 

Esses depoimentos, ademais, são colhidos à luz do dia, em bares e ruas que, mesmo ressoando imaginários prostibulares, rasuram expectativas em torno de cenários soturnos, sombrios, que dramatizam experiências suscitadas pelo trabalho sexual. Espelhando as ambiências, as personagens, solares, tratam seu ofício com naturalidade, reconhecendo contradições e enaltecendo algumas inesperadas vantagens. Na prostituição, encontram o sustento familiar e a independência financeira e, vez ou outra e com sorte, até uma boa transa. Se dizem, os outros, que essas mulheres são loucas por pensarem assim, tal qual aventa a balada de Rita Lee e Arnaldo Baptista, que amarra o fio argumentativo da obra, Beijo na Boca parece demonstrar que não há nada de insano em suas táticas, por vezes duras, por outras, prazerosas, de subsistência.  

Em uma cena de corte ficcional, alude-se à truculência da polícia: com um criativo manejo da montagem, uma das garotas simula uma perseguição que encontra ecos bastante concretos nas cercanias da zona. O filme se atenta, dessa maneira, para uma das principais pautas levantadas pelas putas militantes, que começaram a se articular no início dos anos 1980, justamente, para resistir a esse tipo de assédio. Essa e outras demandas ganhariam ressonância maior, porém, em Amores de rua, que não deixa dúvidas sobre suas afinidades políticas.  

É verdade que, no prólogo, o filme de Eunice Gutman acaba recorrendo a visualidades desgastadas: observa-se, de longe e voyeuristicamente, mulheres se debruçando em janelas de carros, à noite, em busca de clientes – coreografia que se repete em algumas transições, que virgulam testemunhos. Mas, a despeito dos clichês visuais, somos interpeladas por enunciações incomuns: à combatividade de Gabriela Leite somam-se as de lideranças como Eurídice Coelho, presidenta da Associação de Prostitutas do Rio de Janeiro, e de Doroth de Castro, companheira de Leite no coletivo Davida. Essas mulheres discorrem sobre a impossibilidade da plena expressão da sexualidade e sobre os aprisionamentos perpetrados pela moral burguesa. A aids também aparece como tema e, aqui, as prostitutas posicionam-se como as agentes de prevenção e conscientização que sempre foram, a despeito da ideologia higienista que as classificou historicamente como vetores de insalubridades. 

O estigma, inimigo maior, não é esquecido por elas, que advogam, como suas colegas de Beijo na Boca, o status de profissional. Eurídice é quem enterra ideários fatalistas: “eu sou parte do desenvolvimento deste município, deste estado e até do país. Eu gerei filho pra servir à pátria”, crava, demonstrando consciência aguçada frente às engrenagens do heterocapitalismo. Por fim, Amores de rua exalta ousadias sumarizadas em uma curiosa passagem metonímica: avista-se uma prostituta pequena e franzina em rixa física com um homem na zona. Apesar do pouco tamanho, sobra-lhe bravura: sem arriar, sai vitoriosa do conflito. 

Obviamente, não podemos menosprezar os infortúnios que intercedem mulheres que desempenham trabalhos precarizados e que neles são estruturalmente alocadas por causa de diferentes eixos de ação do poder – raciais, classistas, geracionais, territoriais. Contudo, é preciso que o cinema recorra a sua inclinação fabulativa para que as trabalhadoras sexuais possam enxergar-se substantivamente em suas representações. É preciso figurar as putas para além do jogo etno-pornográfico de ocultação e revelação que incita curiosidades sobre supostos tabus. É preciso falar com as putas para além do sexo, sem, no entanto, rechaçá-lo: as mulheres-monstro, nos diz María Galindo (2021), podem sacudir desejos e nos ajudar a compreendê-lo como “uma fonte de energia revigorante e provocativa” (LORDE, 2019, p. 68), como uma força vital da qual dependem, como propõe Audre Lorde (2019), os nossos atos contra autoritarismos. Os vídeos pioneiros de Cida Aidar, Inês Castilho, Jacira Melo e Eunice Gutman são arquivos de um saber emputecido e libertário, dos quais os feminismos e os cinemas de hoje poderiam, para o bem de todas as mulheres, gozar. 

Currículo

Juliana Gusman

é pesquisadora, professora, jornalista e crítica de cinema. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP. É membro dos grupos de pesquisa MidiAto (ECA-USP), Poéticas Femininas, Políticas Feministas (UFMG) Mídia e Narrativa (PUC Minas). Atua como professora assistente nos cursos de Comunicação Social da PUC Minas.

Referências

BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. São Paulo: n-1, 2019. 

CREED, Barbara. The monstruous feminine: film, feminism, psychoanalysis. Nova York: Routledge, 2007.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

GALINDO, María. Cara de Puta. Eco-pós, Rio de Janeiro, v. 24, n.1, 2021. 

GRANT, Melissa Gira. Dando uma de puta: a luta de classes das profissionais do sexo. São Paulo: Autonomia Literária, 2021. 

LORDE. Audre. Usos do erótico: o erótico como poder. In: LORDE. Audre. Irmã Outsider. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

VEIGA, Ana Maria. Teoria e crítica feminista: do contracinema ao filme acontecimento. In: HOLANDA, Karla (org.). Mulheres de cinema. Rio de Janeiro: Numa, 2019.