Encontros entre feminismos e o audiovisual no Brasil em redemocratização 

“Experimentações feministas - cinema, vídeo e democracia no Brasil (1970-1994)” é uma mostra que resulta de muitos encontros. A começar pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da UFMG, onde pudemos somar nossos desejos de pesquisar o protagonismo das mulheres nas lutas políticas e nas imagens do documentário brasileiro de diferentes tempos. Foram intensas e prazerosas conversas e trocas nos grupos de pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas e Poéticas da Experiência, que nos abriram horizontes de pensamento e nos fizeram ampliar o olhar para a complexidade do audiovisual feminista ou, talvez, do cinema de mulheres brasileiro. 

Interessadas particularmente no período da redemocratização no Brasil, em nossas buscas fomos surpreendidas por uma produção ampla e engajada em vídeo¹, assinada por realizadoras ou grupos de realizadoras que, na efervescente conjuntura daquele momento histórico, abordaram pautas até hoje fundamentais para os feminismos no Brasil. Enfrentamento à violência doméstica, sexualidade, direito a creches, reforma agrária, participação política, igualdade no mercado de trabalho, fim das discriminações raciais, direito à livre identidade e à orientação sexual e reforma urbana são alguns dos temas que ganharam força no cenário contraditório dos anos 1980, no qual conviviam os resquícios autoritários da ditadura militar e o surgimento de diversos movimentos sociais que fomentaram novos protagonistas e lideranças políticas. 

Dentre esses, destacamos os movimentos de mulheres, que se consolidavam no país com certa inspiração no feminismo internacional e experimentavam formatos organizativos próprios, concretizados no bojo peculiar da luta pela redemocratização. Em meio às lutas, mulheres experimentavam também o cinema e o vídeo, suas linguagens, seus formatos e possibilidades estéticas, fazendo do audiovisual um mecanismo de elaboração coletiva, diante da luta pelo direito de falar e de se posicionar publicamente. Afinal, era necessário divulgar pautas feministas, romper barreiras na comunicação e disputar o imaginário popular, marcado pelo racismo, pelo machismo e pelo conservadorismo religioso. O vídeo se constituiu, assim, como uma prática social dos movimentos feministas, tendo oportunizado o protagonismo feminino, a valorização das histórias de vida de mulheres marginalizadas e a visibilidade de diferentes sujeitos sociais.

Em nossa pesquisa de mestrado², levantamos um material extenso, entre vídeos e filmes em película que elaboram temas candentes dos feminismos e analisam a conjuntura dos anos 1980, construindo um retrato fragmentado, a partir de miradas femininas (e feministas), do Brasil naquele momento histórico, com suas contradições e brechas para transformações. Percebemos que a tecnologia do vídeo possibilitou uma ampliação significativa do documentário realizado por mulheres. Entre os motivos para tanto, está o barateamento e a maior acessibilidade do equipamento, a gravação de som acoplada, em sincronia com as imagens, as alianças com os movimentos sociais. Para nós, a história do Cinema Moderno brasileiro de autoria feminina, na esteira da conceituação de Karla Holanda (2017), não deve omitir essa imensa e diversificada produção em vídeo, muitas vezes negligenciada. 

É fato que a mediação provocada pelo vídeo, que coloca em relação as realizadoras, as filmadas e as espectadoras, rompeu silêncios em um país que poucos anos antes vivia sob a censura imposta pela ditadura militar, e que historicamente emudeceu as mulheres e outros grupos alijados de direitos políticos, de direito à fala e à imagem. Nas imagens dos videodocumentários, mulheres diversas passaram a protagonizar suas próprias histórias de vida, ainda que tenha prevalecido o exercício de alianças insólitas (María Galindo, 2021), já que realizadoras e filmadas não compartilhavam as mesmas origens e situações sociais. Durante os anos 1980, a luta pela democracia e pela nova Constituição Federal, que seria promulgada em 1988, proporcionou uma unidade histórica entre a esquerda brasileira, incluindo os movimentos de mulheres. Entre dissensos e consensos, conquistamos direitos estruturais, o que nos colocou, mulheres, em situação de igualdade formal com os homens, abrindo mais caminhos para as lutas. Sabemos, no entanto, que nossos direitos são como areia movediça, instáveis, e que exigem de nós uma vigília constante para que sejam implementados.

Na dialética entre passado e presente, no deslocamento de repensar os feminismos brasileiros, suas contradições, seus encontros e desencontros, realizamos uma curadoria ampla, com filmes engajados nos movimentos de mulheres, nos movimentos negros e nas lutas pela democracia nos anos 1980. O direito à terra e a luta pela reforma agrária, na origem do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é apresentado na sessão Venceremos, com o longa Terra para Rose (1987), importante documentário de Tetê Moraes, que acompanha, a partir da perspectiva das mulheres, o primeiro grande acampamento do movimento sem-terra no Rio Grande do Sul. Na sessão Reivindicações, reunimos curtas que tratam do direito ao próprio corpo, da luta pela legalização e descriminalização do aborto, do combate à violência doméstica, da crítica ao padrão de beleza, do direito a creches e a direitos trabalhistas. Trabalhos fundamentais de Angela Freitas, Jacira Melo, Rita Moreira, Maria Luiza d´Aboim e Olga Futemma.  

Os massivos movimentos de rua, que fizeram confluir a luta pelas Diretas Já e pela democracia a pautas feministas como o direito ao aborto, estão retratados na sessão Lutas. Nela destacamos Mulheres: uma outra história (1988), de Eunice Gutman, importante registro da luta por igualdade de gênero no trabalho da Constituinte, um filme que coloca em paralelo as experiências e reflexões de Benedita da Silva e Jacqueline Pitanguy, importantes lideranças políticas. A sessão também traz registros das organizações de mulheres negras, trabalhadoras rurais e trabalhadoras sexuais, nas imagens de Angela Freitas, Vik Birkbeck e do coletivo audiovisual do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Após a sessão, a mesa Experimentações feministas - cinema, vídeo e democracia no Brasil, com participação das realizadoras Eunice Gutman e Vik Birkbeck, e da pesquisadora Alessandra Brito, será uma boa ocasião para discutirmos as interseções entre audiovisual e feminismos no Brasil daquele momento. 

A sessão Figurações acompanha os exercícios de Vik Birkbeck de pensar e repensar o audiovisual a partir das histórias e dos testemunhos de grandes atrizes negras do cinema brasileiro, como Zezé Motta, Ruth de Souza e Léa Garcia, e da reflexão de cineastas e videastas mulheres de diversos países. A estética e montagens características de Vik nos oferecem um mergulho pela conjuntura complexa do período. A organização das prostitutas, suas histórias de vida e as lutas pelo reconhecimento de seu trabalho são temas da sessão Prostituição, que traz documentários pioneiros na representação dessas trabalhadoras, de suas reflexões e vivências. As diretoras Cida Aidar e Inês Castilho, Jacira Melo e Eunice Gutman se lançam às ruas e ao desafio de abordar experiências de alteridade, em um terreno complexo, marcado pelo preconceito e pela hipocrisia da sociedade moralista e conservadora. Para finalizar a mostra, recuamos aos anos 1970, com vídeos das pioneiras Rita Moreira e Norma Bahia Pontes, que nos presenteiam, na sessão Lesbianidades, com imagens do surgimento do movimento auto-organizado de lésbicas em Nova Iorque. Mulheres que amam mulheres, realizadoras e personagens nos informam sobre possibilidades alternativas de maternagem, bem como trazem necessários atravessamentos ao feminismo dominante, apontando que as vivências livres da sexualidade são revolucionárias.

Temos consciência de que a mostra “Experimentações feministas - cinema, vídeo e democracia no Brasil (1970-1994)” apresenta um recorte, ainda insuficiente, das relações entre o audiovisual e os feminismos no Brasil daquele período. Limites que se relacionam, em parte, aos desafios que vivemos no país no que tange à conservação de nossos arquivos históricos e à preservação da nossa memória audiovisual, o que parece ainda mais crítico quando se trata de realizadoras mulheres produzindo vídeo. Assumimos, assim, a exibição de algumas cópias em baixa resolução. Na maioria das vezes, elas são as únicas existentes. Medida talvez extrema que consideramos fundamental para retirar essa produção da invisibilidade. 

Agradecemos imensamente a todas as realizadoras, às pesquisadoras e críticas que escreveram ensaios e realizaram entrevistas para o catálogo, à Associação Cultural Videobrasil, ao Instituto Feminista para a Democracia (SOS Corpo), ao Acervo Digital de Cultura Negra Brasileira (Cultne), ao Instituto de Estudos da Religião (Iser), ao Cinelimite e à Vithèque. Agradecemos muitíssimo à Lívia Perez pelas cópias de She has a beard e Lesbianism feminism, digitalizadas em definição HD a partir da fita original, preservada por Rita Moreira. A limpeza e digitalização desses vídeos, com supervisão de Lívia Perez, foram possíveis graças ao financiamento do Dolores Huerta Research Center for the Americas, durante o projeto de M.F.A. realizado na Universidade da Califórnia, Santa Cruz, entre 2021 e 2023, sob orientação de Isaac Julien e Mark Nash.

E, por fim, nosso muito obrigada ao forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte, pela confiança e por abrir esse espaço tão generoso para nós. Que seja uma experiência incrível.

Notas

[1] Foi durante os anos 1980 que a tecnologia do vídeo se popularizou entre os movimentos sociais brasileiros, sobretudo a partir do lançamento do primeiro cancorder, pela Sony, em 1983, equipamento que captava e gravava, ao mesmo tempo, sons e imagens, e dispensava outro aparelho para a exibição das produções, por possuir um videocassete acoplado. 

[2] COSTA, Larissa. Experimentações videodocumentais feministas: aborto e prostituição na produção audiovisual de mulheres dos anos 1980 (PPGCOM/UFMG, 2023. Orientação: Cláudia Mesquita). 

Referências

GALINDO, María. Cara de Puta, Revista Eco-Pós, Dossiê Feminismos vitais, v. 24, n. 1, 2021. 

HOLANDA, Karla; TEDESCO, Marina Cavalcanti (orgs.). Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017.