“Enquanto existirem os xapiri eles irão segurar o céu”

Chegam caminhando ao longe no horizonte. Todos juntos: jovens, mulheres, pessoas idosas, crianças e homens – entre estes, alguns são xamãs. Seguem juntos, com seus passos firmes no chão da urihi a – terra-floresta: são os Yanomami da comunidade Watorikɨ (Serra dos Ventos), que compartilham a vida na floresta. O solo onde pisam é as costas do antigo céu que já existiu, mas que acabou por cair, esmagando a humanidade que antes vivia sob ele e transformando os antigos humanos em seres canibais que hoje vivem debaixo da terra, conhecidos como ãopataripë. É o que nos conta Davi Kopenawa, xamã e liderança Yanomami, a partir do conhecimento que lhe foi dado pelos xapiri pequenos seres luminosos que auxiliam os xamãs e são essenciais para o equilíbrio do mundo. O céu que existe hoje, um céu mais firme, é sustentado pelos xapiri, que o escoram para que não desabe sobre nossas cabeças, o que pode vir a acontecer caso os napë (não indígenas, inimigos), comedores de terra, não parem de destruir a terra-floresta, com sua avidez por transformar tudo em mercadorias e espalhar suas fumaças, como nos fala Davi Kopenawa no filme A Queda do Céu

Dirigido por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, o filme foi inspirado no livro homônimo, que, por sua vez, é uma coautoria entre Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert. A obra, lançada na França em 2010 e traduzida para o português em 2015, é considerada um dos principais livros para se compreender o Brasil contemporâneo. As mais de setecentas páginas são fruto de uma amizade de 30 anos, marcada pelo encontro intelectual entre eles. O livro A Queda do Céu é um mergulho profundo no pensamento cosmoxamânico de Davi e em suas críticas refinadas a nós, napë, a quem ele sabiamente chama de “povo da mercadoria”, em um movimento de contra-antropologia. É, sobretudo, uma obra que enfrenta não apenas o desafio de tradução de línguas, mas também de tradução de mundos, algo que ultrapassa o ato de versar palavras entre línguas, pois encara o desafio de aproximar o pensamento dos xapiri aos leitores não indígenas, no mais refinado exercício cosmopolítico. É uma “flecha para tocar o coração dos não indígenas” – como gosta de dizer Kopenawa. 

Os diretores, tocados profundamente pela “flecha-livro”, com muita sensibilidade, criatividade, entrega e coragem, se abriram ao desafio de criar, a partir de imagens e sons, a densidade e a beleza das palavras escritas nas “peles de papel”, ao criarem o filme inspirado no livro. Para isso, Eryk e Gabriela deram um mergulho profundo no pensamento de Kopenawa, nos estudos sobre os Yanomami, e passaram quase um mês na aldeia de Davi. Deixaram-se tocar não somente pelas palavras do xamã, mas também pela beleza e intensidade da vida dos Yanomami, sem, contudo, cair no exotismo objetificante daquele povo – lugar falacioso para qualquer filme sobre povos indígenas. A Queda do Céu é o cinema que aterra os pés na floresta sem nunca recorrer a imagens da Amazônia vista dos céus. O filme fala a partir de um encontro com os Yanomami em seus tempos próprios, sua textura e cores, com a polifonia da floresta, povoada por seres humanos e não humanos, como as montanhas, os pássaros, o vento, as cigarras, os cantos, o fogo, as nuvens carregadas, o céu. Um filme que é beleza, é alerta e, principalmente, um recado aos napë; é outra forma de ser flecha no mundo do “povo da mercadoria”, de ser crítica aos “comedores de terra”.

As imagens que conduzem a narrativa na tela foram feitas durante o reahu do grande xamã do Demini, sogro de Davi Kopenawa, falecido em 2018. E este é mais um fio que tece a costura firme entre o filme e o livro A Queda do Céu, que, por sua vez, tem seu último e mais impactante capítulo chamado “A morte dos xamãs”. Quiçá haja uma conjuntura cósmica nesse encontro entre o último capítulo do livro e as filmagens do longa-metragem, já que o falecido sogro de Davi Kopenawa foi responsável por sua formação xamânica, alicerce do pensamento cosmopolítico de Kopenawa e presente como um autor oculto ao longo de todo o livro, como disse Albert em algum momento. Mas vale fazer aqui uma pequena pausa para explicar sobre o reahu, isto é, o grande festival funerário realizado por todas as comunidades Yanomami para a consumação ou o enterro das cinzas funerárias de seus parentes. O reahu é um ritual central na vida das comunidades yanomami. São vários dias seguidos de festa, em que os Yanomami conseguem rimar alegria e luto com vários momentos de cantos, danças, fartura de comidas, brincadeiras, namoros e ócio; é também o momento em que se reúnem para que possam chorar coletivamente seus mortos. A consumação das cinzas é uma etapa necessária para que a pessoa falecida possa ser esquecida e, assim, viver em paz no mundo dos mortos, o que, por sua vez, deixa em paz também os vivos. Portanto, o filme, realizado durante o reahu para acabar com as cinzas do grande xamã, sogro de Davi, é, para Bruce Albert, o novo capítulo de fechamento do livro.

Na tela do cinema, os sons do céu são o prenúncio do fim. O alerta, as vozes dos céus, estrondos e a ameaça. É o céu que poderá vir a desabar caso se acabem os xamãs que o sustentam. A narrativa no cinema reúne o compasso da distopia ao vivenciarmos os efeitos da crise climática e a apreensão nos olhos dos Yanomami que miram o céu. Porém, do lado de cá do mundo, nossos olhares não se voltam para o céu, mas ficam grudados em telas em que, atônitos, nos deparamos com imagens de enchentes que afogam famílias inteiras, cavalo em telhado, idosos e crianças que perderam suas casas e estão morando em pátios de escola. Casas e memórias levadas pelas correntezas das águas da chuva que inundaram o Rio Grande do Sul. Em outros cantos do Brasil, os rios secam, peixes agonizam, antas e onças são queimadas; pescadores sem rios, rios transformados em longos desertos de areia, escolas sem aulas em decorrência das fumaças; 76 mortes por síndrome respiratória aguda grave no período de queimadas só na cidade de São Paulo em 2024. Nevoeiro que não é uma imagem onírica, mas sim a distopia de um mundo em colapso: é a fumaça das epidemias xawara anunciadas por Davi e pelos xapiri. E a vingança da terra em curso, o começo de um fim sombrio, o fim para os Yanomami e também para nós, napë. É o alerta de Davi Kopenawa: a vingança da Terra. Estamos todos vivendo no mesmo planeta em colapso, mesmo aqueles negacionistas que já não conseguem subterfúgios para justificar a fumaça que arde em seus olhos ou as enchentes que devastam suas cidades. É o perigo do fim.

A crise climática é de responsabilidade exclusiva de um grupo específico de humanos: aqueles que se movem dentro do capitalismo para acumular, gerar lucro e que enxergam a natureza simplesmente como ativos, como forma de transformar florestas em dinheiro – lugar no qual os Yanomami não se enquadram. O modelo econômico atual fracassou, e nós, napë, chamados por Kopenawa de “povo da mercadoria”, estamos diretamente implicados nas enchentes e incêndios que consomem o mundo. Hoje, assustados, perguntamos aos indígenas como sobreviver ao fim do mundo, algo que eles seguem fazendo ao longo de séculos de colonização. É como se olhássemos para a nossa casa-planeta em colapso e ainda incumbíssemos aos indígenas de nos mostrar uma solução para um problema que não foi criado por eles, mas que os impacta diretamente.

Olhos puxados, apertados, olham atentos para o céu. O som das folhas secas. A ventania na casa, o fim que se anuncia. Olham o céu à espreita, escutam os prenúncios dos xamãs, de Yariporari, o espírito da tempestade. Os napë os cercam, ninguém vai escapar. Ninguém, nem os Yanomami, nem você, nem eu. É a vingança da Terra. Respiramos todos o mesmo ar, vivemos na mesma terra-floresta. Este filme é urgente, assim como é urgente se deixar tocar pelo pensamento de Kopenawa e por outras formas de existir no mundo que se situam fora desse modelo fracassado de sociedade que leva as várias formas de vida na Terra ao colapso. É preciso nos reinventar como sociedade e, sobretudo, defender prioritariamente a floresta e aqueles que nela habitam, pois “enquanto existirem os xapiri, eles irão segurar o céu”.