É na calada da noite que se inicia a narrativa em Entre nós e o mundo (2019), mostrando garotos fazendo um funk à capela. O ritmo quebrado das passagens de cada canção se liga aos planos não convencionais da noite. São rimas que falam de fé, persistência.
Em um muro aparece uma pichação escrita: “Nada muda”. Uma rua “morrada” também é mostrada dando a estranheza boa do enquadramento. Um beco. Janelas emitindo luzes talvez de TVs ligadas. No mesmo momento que a personagem principal, Erika, deve estar dormindo se preparando para um novo dia.
Já nos primeiros minutos de filme, depois que entendemos a dor da perda da personagem, compreendemos também a importância do surgimento de uma nova vida para Erika. Alicia chega, tem nome de cantora, um irmão de 17 anos e outro que, infelizmente, conhecerá por fotos, vídeos e histórias. Erika, a mãe, é o retrato de uma mulher preta e trabalhadora. Entre nós e o mundo mostra, antes de tudo, a potência negra e periférica e sua luta de vida diária e contra o racismo e o genocídio da população preta. Tudo é colocado de uma forma muito respeitosa, com o entendimento da dor, das coisas belas da periferia e das pessoas que nela moram.
As imagens de Entre nós e o mundo mostram um realizador que revela sua familiaridade com a periferia. Os planos, principalmente externos, têm suas particularidades e estilo e carregam uma força capaz de transmitir o que é viver naquele bairro, naquele lugar. Vila Ede, São Paulo. Periferia que poderia ser em vários lugares do Brasil, com seu povo que luta e que convive com desigualdades e a violência, incluindo a violência policial.
Uma das principais características do cinema brasileiro periférico de hoje é seu olhar. Um olhar que, na maioria das vezes, vem agora de dentro, com profundidade e propriedade. Diferente de muitos favela movies de alguns anos atrás que possuíam uma mirada externa que tentava entender toda aquela complexidade que é a periferia, mas se esbarrava na visão do preconceito e só via as mazelas com um olhar superior e antropológico. O simples fato de movimentar a câmera para bairros de periferia e não necessariamente uma favela já é uma mudança no olhar que pode mostrar uma gama de complexidades ainda não discutidas no cinema brasileiro.
Em um filme como o de Fábio Rodrigo vemos agora mais que uma horizontalidade, uma proximidade nada afetada e muito sincera. Sinceridade em querer contar histórias daquele lugar e de um jeito muito particular e pessoal.
Propriedade talvez seja a palavra que define o que a gente vê na tela em Entre nós e o mundo. Uma propriedade que entende cada esquina, cada poste, cada fio elétrico com sapatos dependurados por cadarços. Tanto o início quanto o final do curta parecem carregar algo que vai além de contar a história da personagem principal e de tudo o que ela passou. Parece querer dizer sobre fabulação, sobre pessoas dali, sobre música e como ela se dá bem com todos os elementos da periferia.
O realizador se coloca novamente no filme como em seu curta de estreia Lúcida e mantém contato com sua prima, Erika. Primeiro através das mensagens de voz, por fotos e pessoalmente. Nisso o tempo passa em uma profunda fluidez, fazendo com que as dores da personagem se distancie tentando aliviar o passado não tão distante e o surgimento do bebê com nome de cantora famosa.
Essa fluidez parece devedora de uma sabedoria também sobre o tempo, uma calma que o filme precisa pra contar tudo aquilo e que é totalmente diferente de um ritmo arrastado. A montagem tem cadência, como música boa.
Em um momento do filme vemos fotos dos personagens em outras épocas. Tal recurso, usado de maneira muito bonita em curtas recentes do cinema negro brasileiro como Travessia (2017), de Safira Moreira, e Fartura (2020), de Yasmin Thayná, apresentam uma história tão bonita e singela que se ligam em um passado que nos esforçamos para que não se apague. Em Entre nós e o mundo, assim como nos curtas citados, as fotos estão intrincadas de forma extremamente orgânica com a própria história e narrativa.
Na sequência final, a imagem do bebê no berço olhando para o teto seguido de uma montagem de crianças e adolescentes andando pelo bairro parece nos querer dizer da continuação das coisas, algo bem diferente de conformidade pela situação dos personagens. A vida segue. Theylor já não está ali e o outro filho de Erika continuará andando pelas ruas da cidade, as mesmas ruas onde passam também policiais.
Currículo
André Novais Oliveira
Realizador de cinema e integrante da comissão de seleção e curadoria da Mostra Contemporânea Brasileira do forumdoc.bh.2020.
Como citar este artigo
OLIVEIRA, André Novais. Entre nós e o mundo. In: forumdoc.bh.2020: 24º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2020. p. 201-202 [Impresso]; p. 203-204 [Online].