Entrevista a Pedro Costa

Estúdio do realizador na Baixa Lisboeta. Tarde de 2ª feira, 29 de Outubro de 2007.

Pedro Maciel Guimarães: Eu queria que falássemos um pouco sobre a questão dos gêneros. Esses dois filmes No quarto da Vanda e Juventude em Marcha são obras que oscilam entre a ficção e o documentário. E seus outros filmes – com exceção de Onde jaz o teu sorriso – são puras ficções. Mesmo sabendo que a definição de cinema documentário é bastante ampla e abrange vertentes e maneiras de expressão bem diversas, o que significa para você ter uma retrospectiva integral num festival dedicado ao cinema documentário?

Pedro Costa: Significa talvez que os organizadores não sabem o que é o documentário. O que é óbvio, pois não se sabe bem o que é o documentário, ou a ficção. E tampouco é uma discussão interessante.

Talvez para o ensaísta sim, mas para o cineasta não é, nunca me coloco essa questão se estou fazendo um documentário ou uma ficção. Essa é uma questão tão confusa que normalmente, nos apoios, pequenos, que me dão o governo português, eu tenho tido mais apoio da parte dos documentários. E os apoios em dinheiro para os documentários são menores. E eu acabo fazendo, com o dinheiro do apoio dos documentários, um filme maior, ou mais ambicioso do que o simples documentário considerado comumente. Por isso para mim não existe essa divisão. Mesmo no caso do Onde jaz o teu sorriso é polêmico, se ele pode ser considerado documentário ou ficção. Eu acho que é ficção e com o tempo será cada vez mais ficcional. Quase ciência ficção.

Mas o No Quarto da Vanda, que as pessoas acham mais documental, só no apoio pedido ele foi considerado assim, porque na minha cabeça, nem na da Vanda, nem na de ninguém do bairro... Era considerado talvez um retrato de um lugar onde se vivia umas certas pessoas em um certo momento. Se isso é documentário… essa discussão é interessante para quem analisa, discute ou teoriza. Para o cineasta, essas divisões são prisões que alguns cineastas mais frágeis se deixam prender estupidamente.

Eu já vi pequenos filmes documentários que, com um pouco mais de fogo, passariam a um estágio completamente diferente, talvez a ficção ou alguma outra altitude. O documentário nunca foi uma coisa que gostei, nunca vi, só há muito pouco tempo vi os clássicos, o Flaherty, o Joris Ivens, Van der Keuken, meu interesse por um cineasta como o Van der Keuken sempre foi nulo, zero.

É um preconceito, claro que é. Mas quem passou anos a ser massacrado pelo John Ford não pode ter interesse por um tipo que vai filmar a realidade, de um povo não sei onde… esses filmes não me chegavam. Não chega...

PMG: Você é autor de uma obra única no cinema mundial, Onde jaz o teu sorriso, pela novidade da iniciativa e pela maneira de abordar o ato de criação cinematográfica – no caso a montagem – de uma maneira ao mesmo tempo apaixonada e reservada. Qual a maior dificuldade em se fazer um filme que mostra o nascimento de um outro filme?

PC: Esse filme nasceu de uma encomenda, não foi um desejo que eu tive. Foi um pedido de uma série de televisão que existia, Cinéastes de notre Temps. Então os fundadores, o André Labarthe e a Janine Bazin, sabendo que eu era fã dos Straub, me  propuseram esse filme.

Projeto este que já tinha sido tentado antes, duas vezes, no princípio dos anos 70, a obra do Straub estava ainda muito no princípio. E outra há pouco tempo, pouco antes de eu ter feito o meu filme. Essas duas tentativas não tinham resultado, por questões óbvias, um pouco.

Resistência dos Straubs, e se calhar a resistência deles ao tipo de projeto que era, que eu não conheço bem, mas provavelmente seriam entrevistas e trechos de filmes, talvez isso os tenha desagradado, ou a pessoa que iria fazer. Não sei bem.

No meu caso, eles acederam por um lado porque já conheciam o trabalho que eu tenho feito que, se calhar, não era muito longe do trabalho deles, no sentido em que é um trabalho no terreno, com pouco dinheiro, sendo eu quase meu próprio produtor, com não atores, com uma pequena comunidade de gente.

Também o Jacques Rivette, que é amigo deles, e posso dizer amigo meu, reforçou esse aspecto, de um trabalho sério, com uma pequena câmera de vídeo, que poderia resultar num trabalho de investigação sobre o trabalho deles, e não num show off, num espetáculo do Straub em ação.

E foi sobretudo uma relação de confiança que se estabeleceu entre eu e eles. Claro que eu tive essa ideia de filmar a montagem por eliminação de todo o resto.

Sabendo que eles não gostariam de ser filmados numa entrevista, que não lhes interessa nada nem ter trechos de filmes remontados. Perguntava-me qual seria a melhor ideia, o segredo, e coincidiu de eles estarem trabalhando numa remontagem do Sicilia! e assim de repente me pareceu possível acompanhar como uma testemunha, um terceiro olhar dessa montagem, estando lá durante a integralidade do tempo do trabalho deles.

Com uma pequena câmera de vídeo isso me pareceu possível, visto que não é preciso muita sofisticação de luz, já que a sala de montagem exige escuridão. E reduzindo a equipe a duas pessoas, eu e um engenheiro de som. Dois então podem ser silenciosos e discretos. Tudo isso acho que os convenceu, mas sobretudo durante o trabalho, eles ficaram convencidos de que foi duro o trabalho, porque tecnicamente foi muito duro para o meu colega e para mim, um trabalho sério, pois ambos gostávamos muito do que estava acontecendo. Acho que demos a prova ao Jean-Marie e à Danielle que era possível, coisa que eles duvidavam, que era possível fazer um filme sobre a montagem.

Eles disseram que achavam improvável e impossível essa tarefa e eu expliquei que com a câmera de vídeo, ágil e com a montagem em digital, era possível, pois era tudo fácil de manipular e maleável, essa é uma das vantagens do digital, servir quase como um microscópico, de ver pequenas coisas, de reconstruir o que está para trás ou o que vem pela frente, esse tipo de manobra difícil tecnicamente é possível com o digital, o que em filme seria impraticável, pela luz, pela câmera, pela montagem, que é como eles fazem, talvez muito mais tensa, mais precisa, talvez mais única nesse sentido. A minha não. A minha montagem nesse filme é justamente, não diria, contra- straubiana, mas quebra todos os princípios que eles têm e que eles anunciam durante o filme.

Ou seja, eu tinha várias trilhas sonoras, eu poderia colocar uma frase do Jean-Marie onde eu quisesse estando ele de costas ou fora de campo, portanto, há uma manipulação enorme.

Mas claro, essa manipulação depende da pessoa que a faz e da maneira que eu fiz pode resultar nesse objeto que acho interessante, relativamente didático e invulgar, as pessoas talvez nunca tivessem visto esse momento daquela maneira. O que se vê sempre é… e esse momento é muito mais verdadeiro, é um momento que não engana.

O Godard mesmo está sempre a dizer, os cineastas, os artistas, os pintores enganam muito. Tudo é muito subjetivo, pode-se dizer que aquele quadro é bonito, ou que não é.

Não é a mesma coisa no esporte ou na ciência, onde 100 metros são 100 metros.

Neste caso, há algo do esporte e da ciência. E depois há as diferentes concepções de montagem, mas aquela que Straub diz que é feita desde os tempos do Chaplin até hoje em 99% dos casos tem de ser respeitada nos seus princípios, nas suas regras. E foi isso que filmamos, de uma maneira singular, quase científica, onde a câmera foi usada de uma maneira quase microscópica.

Isso só se deu pela relação de confiança durante a filmagem e pela generosidade deles próprios de darem ao meu filme coisas que eu não tinha sequer previsto. Eu estava ali filmando o trabalho e foi-me dado para além disso o que se vê no filme, quase uma história de amor, entre duas pessoas, podia-se passar em casa, numa cozinha, num quarto, às vezes, parece que está acontecendo mesmo em casa, mas isso veio por acréscimo e por um gesto generoso da parte deles.

O que eu vou buscar na obra deles não é a maneira como o Jean-Marie enquadra um plano ou como ele o monta, embora também seja isso inconscientemente, mas é sobretudo a maneira através da qual deve ser vivido o trabalho do cinema, com uma certa disciplina, exigência, paciência, dedicação e com amor, coisa que não sou ainda capaz, acho eu... mas.

PMG: Eu te fiz essa pergunta do nascimento do filme, porque vendo a sua filmografia, a gente tem impressão que os filmes nascem puxados por outros filmes: assim foi na trilogia Ossos, O Quarto da Vanda e Juventude em Marcha. Desde esse filme “nasceu” o segmento Tarrafal de O Estado do Mundo. Ao filmar, você já tem a noção de que a experiência de um filme não caberá somente dentro dele? Que precisa de extrapolar?

PC: Sim, é um pouco isso, mas é a ideia de que a vida não cabe num filme, que ela é demasiada vasta.

A complicação com o filme é que, no meu caso que trabalho com uma realidade concreta, eu resisto muito em colocar coisas inventadas por mim no filme, pelo menos nos últimos. Eu tenho que lidar com a realidade com a qual decidi me afrontar, todos os dias, naquele bairro, com aquela gente.

Nesse quadro digamos realista e bastante limitado, porque eu tenho poucos meios, é difícil termos essa concentração, que talvez Straub tenha, essa concentração do real, de ter um aspecto ou vários aspectos da realidade de tal maneira concentrados que ultrapassam a metáfora, e têm um sentido pleno e verdadeiro nos filmes deles.

No meu caso ainda é difícil pois ainda procuro, estou sempre à procura e tenho consciência de que a realidade é vasta, complexa, contraditória e dispersa sobretudo.

Esse esforço de não dispersão num filme ainda me custa muitíssimo e também muito tempo. Aos poucos vou pondo ordem nessa dispersão que é o problema sobretudo dos filmes contemporâneos, uma espécie de dispersão das razões pelas quais os filmes são feitos.

A razão se esvai, ela serve de ponto de partida para o filme mas logo depois dilui-se na própria dispersão, como é feito, pra onde olha.

É uma espécie de salada russa, mal mexida.

Um cineasta como Godard sempre viveu nesse dilema: como pôr ordem nessa salada e ao mesmo tempo, mostrar a salada.

Dizer: isto é uma salada e vamos tentar por ordem nela. Os filmes do Godard são assim.

Já os do Straub são diferentes, por isso de uma maneira mais clássica… com uma espécie de convicções que me parecem mais fortes do que no Godard (ele fala Straub), uma ideologia… Godard é saltitante, às vezes, ele pode dizer algo e justamente o seu contrário.

E o faz muito bem, é exatamente isso que ele quer dizer e nós próprios achamos que aquilo é mais genial assim.

No Straub não, ele é uma e uma só coisa, ele é relativamente inflexível. Isso passa pelos filmes dele, que admiro muito, e confesso que admiro mais do que os do Godard, provavelmente por temperamento, não sei.

Tudo isso para explicar que meu esforço de concentração e de arrumação mesmo, sobretudo como com os móveis, os planos, as pessoas, num filme para que ele seja coerente e sólido, demora muito, demanda esforço.

Não vejo outra maneira senão avançar em cada filme, ser mais convicto, ter convicções cada vez mais fortes com relação a certas coisas.

Nesse caso, nem é tanto um filme que puxa outro, é a própria concentração da visão, essa convicção das coisas que fará o próximo filme, quase como se não fosse preciso procurar… E a velha questão que se coloca muito no meu filme, com relação às pessoas que estão no filme, quando elas querem dizer algo e fazem um desvio no seu monólogo, há sempre aquela questão: “calma, que isso é para o outro filme”. Isto é outra história.

É mais uma vez um esforço de concentração pois essa dispersão é fato recorrente. Esse esforço de concentração vem da minha parte e da parte dos “atores” também.

Mas algo que ocorre com meus filmes, mas eu me pergunto se isso não se passa também com todos os filmes, é que cada um tem umas quatro chaves secretas para abrir o próximo filme, como um sinal, uma chave quase. No caso dos meus, algumas me são dadas, como no caso de Casa da Lava, em que foi-me dado o filme seguinte.

No final desse filme, as pessoas em Cabo Verde nos deram muitas cartas, muitos presentes, encomendas, café, tabaco, para os familiares emigrados em Lisboa.

No último dia de filmagens, eles nos deram um saco cheio de coisas.

Nós tivemos então que ir ao bairro das Fontainhas¹, Bairro 6 de Maio², a Cova da Moura³, em Lisboa, bairros que eu não conhecia.

PMG: Isso poderia ter dado um filme?

PC: ...mas o que deu foi um filme concreto pois, como eu falava um pouco crioulo, eu ia à casa do seu José tal e dizia a ele que a filha lhe mandava um carta, com muitas saudades, e imediatamente sou convidado a entrar na casa, beber o grogue, tomar a sopa ou ficar um pouco ou convidado para o domingo seguinte, quando se casa a filha de alguém.

É claro que isso faz nascer logo um mot de passe, uma senha, e isso deu o filme Ossos. Eu fui ficando por lá, para tomar um copo, comecei a gostar, me sentia parte daquele lugar, e esteticamente ou plasticamente, eu gostei do lugar, da organização espacial, das cores, não era só o sentido de comunidade, que evidentemente me impressionou muito, mas sobretudo as características daquele lugar limitado, pequeno, um gueto.

PMG: O bairro de Lisboa onde filmou Vanda e Juventude é um bairro de classe baixa, um lado da cidade que está longe dos cartões postais e que mostra uma cidade feia, em demolição, com personagens presos à uma realidade imposta pelo ambiente em que vivem. Da mesma maneira, a ilha vulcânica do Cabo Verde em Casa de Lava parece contaminar as atitudes e ações de seus personagens. A relação entre pessoas e espaços é algo que lhe interessa particularmente no cinema?

PC: Ando à procura das coisas. Isso não são coisas que se pensa assim como você as descreve. São sobretudo conclusões de uma análise mais profunda. Eu não sou muito rosseliniano nesse sentido, sou admirador, mas talvez não sejam os filmes que me…

Enfim, tenho um respeito pelo diretor e como ele dizia: se vamos fazer um filme sobre pessoas, é necessário pensar onde é que vivem, como se vestem, quanto é que ganham, como é que se deslocam, o que é que almoçam, que jantam. É possível mesmo fazer um quadro real, onde temos um local, as personagens, cada um numa coluna, onde colocamos esses dados quase sociológicos, informações sobre vestuário, alimentação, economia, uma série de parâmetros, e depois ir preenchendo. Nessa altura, um filme do Rossellini já estaria feito, era só filmá-lo.

De uma certa maneira ele fez alguns filmes assim, por exemplo o filme Índia, com um suplemento poético próprio dele, com seu olhar próprio.

No meu caso, o que me agradou foi a mistura nesses bairros, algo entre o africano e o europeu, que não é nem um nem outro, mas que começa a ser algo especial.

Isso não só me agradou como eu comecei a me sentir bem, e se eu me sinto bem, é um sinal que eu saberia filmar lá. Como eu sinto também que não sei filmar em espaços abertos, em planícies ou montanhas.

PGM: Você poderia filmar os ricos, Pedro?

PC: Acho que sim, porque não há uma grande diferença. Isso é um outro tipo de diferença.

PMG: Na abertura do ciclo da cinemateca você disse “que devia estar do lado dos pobres, então...”

PC: ah, sim, porque aquilo...

PGM: ... chamava-se “O lugar dos ricos e dos pobres no cinema e na arquitetura”.

PC: Em Portugal sou muito conotado e atacado por fazer sempre a mesma coisa, por estar sempre de um lado.

Não sei mesmo se a crueldade dos pobres e dos ricos não será a mesma. Saiu-me crueldade, poderia ter dito sentimento de solidariedade, mas acho que a crueldade que se passava nas Fontainhas e que agora se passa no Casal da Boba é a mesma dos meios mais ricos.

Há algo meio voudou nessa história, meio sobrenatural, gosto de pensar que eles lá naquele vulcão, aquela raça estranha já tinha pensado na minha vida toda até a minha morte : “agora vais sair daqui e vais fazer isso, porque nós vamos te dar uma carta, um envelope, que tu não podes abrir, mas que deverás passar a uma outra pessoa”.

É a mesma história do Tarrafal, você tem algo para passar a uma pessoa, e se não der vai morrer e se der vai ter uma recompensa misteriosa.

E provavelmente foi isso que aconteceu. Eles perceberam tudo que eu tinha deixado incompleto, a minha insatisfação e meu desgosto no fim do Casa de Lava, um pouco como se eu não tivesse completado esse filme e com isso, talvez as portas se abram para outras coisas.

E provavelmente vem do meu gosto por esses ambientes mais próximos da rua, como Chaplin, Ozu, Ford ou outros clássicos americanos, aquela sensação de que o cinema está mais próximo da rua e do sujo, tem-se que passar por alguma coisa mais baixa, em todos os sentidos, para se atingir algo altíssimo.

Daniel Ribeiro: Uma das soluções mais exploradas pelos cineastas para a ausência de perspectivas de luta política é filmar o outro de classe, os marginalizados, os excluídos. Esse interesse pelo outro, no entanto, gera frequentemente uma estetização gratuita da diferença, que oculta aquilo que poderia aparecer de mais radical. Quais estratégias você usa nos seus filmes para escapar a essa lógica?

PC: Essa é outra pergunta daquelas perversas.

Sempre que me fazem essa pergunta eu fico sempre pensando em várias respostas e algumas são tão perversas quanto a pergunta.

Acho que você sabe melhor do que eu a resposta e acho que você sabe muito mais sobre isso do que eu. A pessoa que faz o filme não se pergunta isso, assim como sobre a diferença entre documentário e ficção.

Se está seriamente empenhado a fazer um filme, com gosto e desejo de fazê-lo, coloca-se questões bem mais materiais, concretas, de espaço, de tempo, que são como filmar, de onde, com que lentes, que altura, para que lado, mas isso não tem a ver com uma espécie de embelezamento ou de  enfeiamento das coisas ou das pessoas.

Nunca houve um cineasta que eu admiro – e chega os que admiro, porque os outros não existem –  que alguma vez tenha pensado: vou fazer assim, por que dessa maneira fica mais bonito. Nunca a questão é, foi ou será essa: eu vou te filmar desse lado porque assim você é mais bonito ou interessante. O princípio disto está em tudo que é mal, no que não deve ser feito. Pode-se dizer que é uma coisa ética. A coisa mais concreta do trabalho do cineasta é saber como vamos filmar algo, obedecendo a uma espécie de retórica do cinema.

Acho que a coisa funciona pior quando se filma como hoje em dia, quando se filma de todos os ângulos, de todas as perspectivas, com a câmera no ombro, na mão. É a história da dispersão, vamos baralhar a visão, fazer a dispersão para ganhar qualquer coisa.

Acho que é muito mais difícil adotar uma única ideia de perspectiva, uma única ideia, de manter um só olhar até o fim sobre uma coisa. Eu tento manter essa segurança, essa tensão.

Depois é possível fazer pequenas variações. Em No Quarto da Vanda, por exemplo, é um filme onde há duas maneiras de se olhar. De um lado as garotas e de outro os rapazes, eles quase nunca se tocam e quando se tocam há um choque, talvez por causa da droga, ou da sexualidade que não existe.

Há ali um desconforto entre rapazes e garotas que existia na realidade.

Nas garotas, a maneira como o filme foi filmado – não gosto muito de falar em enquadramentos – os planos das garotas parecem ser muito mais teatrais, mais distantes, o espaço tem a ver com um pequeno teatro, onde somos a quarta parede. A própria exuberância delas, há ali qualquer coisa de teatral, é assim que dizemos na vida, quando há algo mais dramático, dizemos teatral.

A parte dos rapazes, ao contrário, é muito mais decupado, mais cinematográfico, há diferenças de pontos de vista, de escalas, há mais planos abertos, cortes para diferentes pontos de vista. Isso surgiu no decorrer do trabalho, talvez seja consciente, porque o trabalho é muito consciente. Pois estamos ali a trabalhar e o trabalho trabalha. O trabalho é inteligente, sem mesmo nos darmos conta. Ele nos faz fazer coisas que são inteligentes per si. Com o esforço e as pequenas regras, a câmera vai procurar o estilo mais adequado a uma certa situação. E foi isso que aconteceu com a parte dos rapazes, era preciso uma diferença maior entre eles e as garotas.

Isso que eu digo jamais me passou pela cabeça durante a filmagem, não pensei que isso embelezaria um plano, que poderia transformar uma imagem num quadro pictórico, ou algo assim. Não é uma questão que passa nesse momento pela minha cabeça nem pelo filme.

Mas eu vi muitos textos desse gênero, dizendo que eu filmava as Fontainhas como se fossem vitrais de catedrais renascentistas. Acho que isso é muito coisa dos críticos de porem lá coisas. Há uma certa vaidade cultural em dizer que um plano lembra um certo estilo. Acho que um filme deve ser visto como um filme, essas observações caem muito para a estética e nunca para a ética. As personagens não querem saber se aquilo é bem ou mal feito. Quando é bonito demais, eles acham que é mal feito.

Por outro lado, há o “porque não”. Um filme brasileiro como Cidade de Deus, que é um filme que glamouriza ou estiliza mais ou menos que o Quarto da Vanda esse mundo. Eu acho que estiliza muito mais, é uma imagem muito mais próxima da publicidade. Não estou fazendo juízos de valor, mas ele está muito mais próximo à imagem que as pessoas já têm, na publicidade, na televisão ou nas revistas de moda.

É muito mais próximo da publicidade sofisticada, luxuosa, da revista Vogue, por exemplo. Eu senti que há um esforço muito grande, muita preparação.

DR: Nos seus filmes, as categorias já muitas vezes desfeitas de ficção e documentário são novamente colocadas em questão, e pode-se até mesmo dizer que são ultrapassadas. Isso acontece sobretudo porque não se esclarece exatamente quando os personagens são atores (e são guiados pelo realizador) ou quando atuam suas próprias vidas.Nesse sentido, seria melhor falar de uma comunidade de colaboradores do que de um realizador e seus atores? Ao longo dos anos em que essa comunidade se formou, como você descreve o deslocamento tanto desses colaboradores quanto do lugar do próprio realizador?

PC: Sim. Eu não tenho esta crença. Acho que a câmera é um objeto muito frio, científico, imóvel, que só mexe se alguém puser algo lá dentro. Entre o diretor e o ator (ou um objeto), eu acredito num certo equilíbrio feito por alguma distância.

Distância que é feita por algum pudor. O filme com mais pudor que eu já fiz foi No Quarto da Vanda, apesar de tudo. Eu dependia muito de um acordo não verbal entre eu e aquelas pessoas e isso tinha a ver com a distância.

Uma distância clara que era a distância da câmera, a distância que eu estava deles. Não sou o tipo de cineasta a quem interessa saber o que o ator sente quando está filmando.

Me interessa mais como o ator vai dizer uma certa coisa, de que maneira, como vai soar uma frase, como é o ritmo do ator, as pausas dele.

Ou quando é um silêncio, como é o olhar dele, como eu vejo aquele olhar. Há filmes como os meus que, apesar de tudo, acho que trazem muita gordura psicológica em torno deles, que as pessoas às vezes tomam como verdade, como a verdade nua e dura no cinema.

O caso do Cassavetes é muito difícil de contrariar, não digo que os filmes sejam maus, mas é um trabalho no cinema que é muito longe do meu. Por causa dessa psicologia, dessa psicanálise quase, dessa fusão e comunhão.

Eu estou nas Fontainhas, me foi dado uma margem de manobra, eu não posso e nem quero cruzar umas certas fronteiras. Haverá sempre, como nesse filme com o Ventura, um oceano entre eu e ele, eu não poderei jamais passar para o lado dele, eu não saberia atravessar esse oceano para passar para o lado dele, e nem quero, acho que é mais interessante contar com esse abismo, esse silêncio, de uma pessoa de uma outra classe social que a minha, eu não nasci naquela classe, não tive a mesma vida que ele… Ventura dizia isso todos os dias, quase sem dizer: “nós estamos aqui fazendo um filme sobre mim, sobre o meu passado, mas você nunca saberá o que eu sofri”.

E eu não posso sequer imaginar o que ele sofreu. Eu não posso representar o que ele sofreu, ou lutou, e ganhou. Eu nunca poderei ser ele. Portanto, essa distância no cinema é visível, sempre foi, para o bem e para o mal.

Isto nunca mais me esqueço, no Quarto da Vanda há um plano banal, de uma garota fazendo dever de casa, repetindo as vogais, no meio de um barulho monstruoso. E ela ficava lá, tentando se concentrar.

Eu passei uma tarde inteira com ela, repetindo, e quando eles viram o filme, disseram que aquilo era muito bonito pois mostrava as dificuldades que eles tinham com as crianças que tentavam estudar ou aprender, como uma criança aqui no bairro leva 7 vezes mais a aprender uma palavra do que na casa dos ricos. Esse tipo de coisa não tem preço. Não há nenhum crítico de cinema que vai dizer isto. Esse mesmo plano, numa revista de cinema francesa, foi descrito como um “velho retábulo crístico à maneira dos pintores da Renascença”.

No Juventude em Marcha, o Lento, um personagem que está sempre nas cenas com o Ventura, disse-me, depois de ver o filme, já em Cannes, que havia percebido que ele era o Ventura quando jovem. Coisa que jamais me passou pela cabeça. Ela viu-se, num mesmo plano, como o Ventura jovem, como se fosse o Ventura como um operário, já com uma certa idade, e o outro era o mesmo, só que jovem. Tudo isso na mesma cena.

É fenomenal. É muito bom para o imaginário deles. Abre-lhes a cabeça, e a mim. Ou como o ator de Ossos que me disse, ao fim do terceiro dia, que não conseguia mais fazer o filme.

Ele dizia se sentir muito mais fraco do que o bebê que estava ali todos os dias.

Isto faz o resto do filme. Você só tem que dizer a ele: “é isso mesmo, agora só tem que ir até o fim”. Isto não tem preço. Pronto, o filme está feito, com esse tipo de sensibilidade... isto não tem preço, trabalhar com esse tipo de pessoa. Eles são pessoas muito habituadas a trabalhar duro, pouco, mas duro, são pedreiros, fazem um trabalho violento.

DR: Aparentemente, o som dos seus filmes é todo captado em direto. Há neles algum tratamento plástico ou rítmico para o som?

PC: O som é gravado separadamente. Em vídeo, hoje em dia, o som é gravado na câmera, som direto. No meu caso, eu gravo o som à parte porque sinto que o som das câmeras não é suficiente bom, tenho mais confiança em alguém que capte o som à parte, digital.

O som normalmente é direto. Em algumas ocasiões tive um som muito mal, e tive que melhorá-lo na medida do possível. Mas não é um trabalho como o do Straub.

Mas é... não posso explicar como é feito pois depende da situação, da composição poética, dos ritmos.

DR: Tem os seus intrusos, né.. a telenovela brasileira, no No quarto da Vanda né?

PC: Pois, nunca há uma falsificação ideológica, de algo que não existe e que temos que acrescentar. Se calhar, o que existe é muito mais. No quarto da Vanda está é só pra dar uma imagem aproximada do que era. Na época eram as novelas brasileiras, hoje são as portuguesas, as brasileiras já acabaram, ninguém acredita mais nelas.

Mas o que existia era a sensação de que você estava num mundo sonoro que oscilava entre uma grande violência acústica, onde tudo reverbera muito, em espaços pequenos, muito crus, de pedra, betão, o que dá o som reverberado no seu máximo, que ricocheteia em todo lado, ecos, já não há direção, tudo vem de todo lado. E depois há a sensação de que as pessoas gritam muito para serem ouvidas, uma questão de sensibilidade. Nas favelas também é assim.

E a questão do mundo exterior, do som da televisão, uma espécie de bomba que não para, a música dos rapazes, do tecno, aquilo é difícil de eliminar, de fazer qualquer coisa sem o som. Então é preciso procurar uma catacumba, onde não chegue a telenovela brasileira.

Várias vezes eu pedi para tirarem o barulho de uma televisão de fundo e noutras vezes pedi para ligarem.

Em No Quarto da Vanda, eu pedi para desligarem. Mas são coisas que já não gosto de fazer porque é uma interferência no real. Eu vou fazendo porque não sou fundamentalista, como diria o Straub.

Em Ossos, serviu muito para a maneira como eu filmo hoje em vídeo, para a maneira como uso a luz. Nesse filme, eu tinha demasiados projetores, caminhões geradores.

E filmávamos muito a noite, até as 5h da manhã. As pessoas que vivem lá, levantam-se às 3 ou 4 horas da manhã e deitam-se às 10 ou 11h.

E têm que levantar cedo para estarem no trabalho às 6h ou às 5h, às vezes. Com aquela luz toda, ela entrava pelas frestas, pelos buracos e as pessoas diziam que não dava, que não conseguiam dormir, pois eram fortíssimas as luzes. Eu disse então ao diretor de fotografia, “vamos apagar as luzes”.

Foi a crise total no filme, mas tínhamos que inventar alguma maneira.

E daí há alguns planos que não foram feitos por beleza artística ou de composição.

Foi desligado o projetor e os personagens têm que se pôr nos lugares onde há a luz, contra uma parede e ficarem ali em silhueta.

Mas eu preferi assim do que ficar em mal estar, ou ainda, ir contra uma vida.

Tudo começou assim. E ele (Emmanuel Machuel) ganhou o prêmio de melhor fotografia em Veneza, com este método.

Ele ficou contentíssimo e me agradeceu por eu ter desligado os projetores: “você me deu o Leão de Ouro em Veneza”.

E o filme tem mesmo um caráter muito especial, se desligamos os projetores e fizermos um plano numa sala, claro que o personagem só pode ir à janela, é como o Juventude em Marcha.

DR: Você conta naquele seu texto “Ozu, cineasta punk”. Se você teve essa relação com o Punk, imagino que tenha até hoje, de alguma forma... depois de muitos anos de cinema, de que forma você acha que o Punk interfere nos seus filmes?

PC: ... não é especial por ser o punk, em novo....

Tive a sorte de ter passado por isso tudo, em comparação com outro cineasta, ou qualquer músico, ou outro, se não viveu um momento que é algo mais do que a adolescência. Tem a adolescência que é igual para todos, garotos num quarto de alguém e todo mundo vêm a esse quarto, depois vão ao café, ou outro lugar, reúnem-se todos à noite num tal café e terminam sempre num tal quarto.

Em torno de livros, filmes, discos, umas garotas, uns garotos.

Essa adolescência que é igual para todos, já tem tudo o que se vai perder, dessa energia, fantasia ou utopia.

Eu tive a sorte de ter isso e, por coincidência, ter esse movimento muito inglês mas que circulava muito bem na Europa. Londres era próximo.

E também era muito musical, além dos fanzines, todo mundo fazia jornais. Ao mesmo tempo vivíamos poucos anos depois da revolução portuguesa, que foi em 1974, 1975, 1976, 1977 e 1978, foram anos de muita agitação política, grande confusão, quase anarquia.

Os militares na rua, às tantas já não eram militares, poder completamente disperso, uma espécie de liberdade muito perigosa. Mas com uma energia fenomenal, foi um momento em que se sentiu que tudo era possível.

Portanto, nessa altura tinha 13 anos, comecei a ver o Lenine, o Bakunine, os situacionistas, o comunismo, o socialismo, os bandeiras pretas, misturado com The Clash, Sex Pistols, e todos os outros grupos, que eram grupos diários, fazia-se um grupo que acabaria no dia seguinte.

Tive um grupo que era o “grupo do quarto”. Cada quarto era um grupo. Uns faziam mais guitarras, o outro mais baixo. Era revolução russa, Lenine, The Clash, Ozu, Straub, Godard, tudo isso ao mesmo tempo, quando se tem entre 13 e 18 anos, é uma sorte.

Mas é a mesma coisa com a Nouvelle Vague, eles não tiveram isso tudo mas tiveram também um grupo, uma espécie de agitação, social, cultural, e outros movimentos, os cinemas novos, no Brasil... eu não falava com meus colegas cineastas porque na altura... eu não falava com os maus cineastas, isto que era a grande força. Nós odiávamos tudo, praticamente.

Quando entrei para a escola de cinema, já sabia que não queria mais tocar. Eram os filmes que eu gostava. E com um colega decidimos entrar pra escola. E a primeira coisa que fiz foi escrever coisas, ridículas: “ao melhor Tarkovksi, oponho o pior Ozu”. É o que tá escrito lá. Eu ainda sou contra o Tarkovski, pobre diabo, não tem culpa nenhuma da nossa estupidez, mas é um cineasta que não é, digamos, da minha família. O Tarkovski para nós era igual ao que não suportávamos na música, grupos que não morreram, que eram o Genesis, o Yes, o Pink Floyd. O Tarkovski era esse tipo de coisa.

Ninguém percebia bem, uns caras sozinhos, numas planícies, numas montanhas, uns nevoeiros, uma metafísica, uma filosofia mixuruca, de pacotilha, que ninguém entendia bem.

Do outro lado, eram coisas concretas. O Ozu era na verdade uns três acordes, pin pin pin, sempre igual, sempre os mesmos objetos, as mesmas coisas. Ou o Straub, para mim, era evidente que era a coisa mais próxima do punk como atitude. Era parecidíssimo com os Sex Pistols, e eu disse isso muitas vezes ao Straub, e ele ria muito. Evidente que ele não ouvia esse tipo de coisa como eu não ouvia os Stockhausen, ou Schönberg algo que na música são próximas deles, mas eu sentia que na cultura popular... ver um filme do Straub e ouvir um disco do Clash, no meio de uma confusão de bandeiras pretas, soldados de cabelos até aqui, com umas boinas, estrelas, é evidente que há um glamour em tudo isso, o estilo revolucionário.

Havia uma grande pose também, mas isso foi minha sorte... sorte mesmo porque gostei muito disso tudo, todo mundo fica logo com uma lágrima no olho.

Acho realmente que é uma sorte, porque reforça ainda mais a sensação na adolescência de que se tem razão, que aquilo é uma grande estupidez e que outra coisa é que é bom. Toda a música vinda dá-nos razão, que aqueles gajos têm que morrer e aquele tem que viver.

Agradecimento especial a: Pedro Costa, Ricardo Matos Cabo, Pedro Aspahan e Marilà Dardot.

Uma co-produção Procur.arte / Filmes de Quintal Apoio : Instituto do Cinema e Audiovisual / Ministério da Cultura Português. Lisboa 11/2007. Crédito: Conceito e produção: Catarina Simão (Procur.arte). Edição e montagem de CD áudio: Sílvio Rosado e Catarina Simão.

Currículo

Pedro Maciel Guimarães

Professor do Departamento de Multimeios, Cinema e Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Multimeios (Instituto de Artes - Unicamp). Desde 2011, integra o comitê de seleção e curadoria das Mostras de Cinema de Tiradentes, CineOP e CineBH

Daniel Ribeiro Duarte

Pesquisador, curador e realizador de cinema. Integrante do Coletivo Filmes de Quintal. Doutor em Comunicação com especialidade em Cinema pela Universidade Nova de Lisboa, com tese sobre a obra de Pedro Costa.

Como citar este artigo

GUIMARÃES, Pedro Maciel; DUARTE, Daniel Ribeiro. Entrevista a Pedro Costa. Transcrição e retextualização de Pedro Maciel Guimarães e Catarina Simão. In: forumdoc.bh.2007: 11º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. CD-ROM. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2007. p.14

Notas

1. Bairro popular da capital portuguesa.

2. Bairro social afastado do centro de Lisboa.

3. Bairro social situado na zona norte da capital portuguesa.

4. A Cinemateca Portuguesa havia exibido no dia 26 de Outubro, o filme Juventude em Marcha dentro do ciclo “O Lugar dos ricos e dos pobres no cinema e na arquitectura em Portugal”, proposto pelo Núcleo de Cinema da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. Pedro Costa foi convidado a estar presente para um debate com alguns arquitectos.