Entrevista com Agnès Varda

Eu sou uma cineasta que existe dentro de seus filmes,

frequentemente porque escrevo e narro eu mesma meus comentários. Mas é o que

acontece à  minha volta o que verdadeiramente me interessa.

(Agnès Varda)

Reunimos um <<coletivo virtual>> de perguntadores para propor uma entrevista a Agnès Varda, já que ela não poderia estar em Belo Horizonte durante o forumdoc.bh.2004. Mesmo com o adiantado da hora e o volume de questões (todas compridas!), ela gentilmente respondeu, para nossa alegria. Publicamos perguntas e respostas abaixo. A entrevista foi composta a partir da edição de questões propostas por Ana Siqueira, Cláudia Mesquita, Jean-Claude Bernardet, Marília Rocha, Mateus Araújo e Tiago Mata Machado.

“Noite de segunda para terça. Bom dia, Ana Siqueira, para mim é noite. Eu sei que você espera o texto dessa entrevista. Faço o melhor que posso. Espero que seu computador possa ler os acentos. Diga-nos; senão reenviaremos o texto sem acentos. Salut! Suas questões, longas e muito bem escritas, são na verdade um “ensaio” sobre meu trabalho e estão escritas num francês notável. Bravo. Percebo que vocês procuram enormemente encontrar uma dimensão política em meus filmes; a mim me parece que ela é nitidamente mais social do que política. Vou tentar responder suas questões. Mas de modo geral não posso fazê-lo tanto quanto vocês desejariam.”

1) “Nada me excita tanto quanto encontrar na vida real modelos de personagens para filmar… ou não” (Varda par Agnès). De onde tudo habitualmente começa? O impulso em direção à ficção é o mesmo daquele em direção ao documentário? Ao fim e ao cabo, mas sobretudo no processo, o que os diferencia como experiência?

Eu mesma me pergunto onde começa ou, antes, quando começa o desejo de um filme. É muito sutil, muito secreto, um olhar sobre alguém que recolhe legumes depois da feira (Les glaneurs et la glaneuse) ou um quadro de um pintor alemão representando uma bela mulher e um esqueleto (Cleo de 5 à 7) ou a proposta de um canal de TV alemão e, súbito, um mágico que vem fazer um espetáculo no café da esquina (Daguerréotypes), ou uma melancolia repentina, o desejo de palavras, ou uma certa luz,  numa certa hora, que me parece estar na origem de uma cena de um filme ainda não escrito. Documentário ou ficção? Curta ou longa-metragem? Isso depende evidentemente do momento em que o desejo de filmar é acionado, pois somos cineastas o tempo todo, seja em vigília ou em ação.

2) “Para os filmar… ou não”. No caso do documentário, houve momentos em que “não filmá-los” foi imperativo? No embate com a realidade, houve na sua história filmes documentais desejados que não chegaram a ser realizados?

Quando fazemos um documentário, é claro que há certos momentos em que não devemos filmar, pois seria indecente. Mas também acontece de filmarmos antes de pedir autorização e, em seguida, a pessoa filmada não tem vontade de aparecer no filme, simplesmente não utilizamos o que foi filmado. Não sou jornalista, então para mim é importante ter a permissão das pessoas filmadas após ter lhes explicado as intenções do meu projeto.

3) Quando de sua primeira e autodidata experiência cinematográfica, La Pointe Courte, André Bazin escreveu que se tratava de um filme tão livre quanto o romance que você poderia ter escrito em seu lugar. Bazin, que não pode ver a eclosão da nouvelle vague, parece ter pressentido em seu filme o começo da era da “camera-stylo” (câmera-caneta) sonhada por seu amigo Alexandre Astruc. Você criou o conceito de “cinécriture” (cinescritura). Como descreveria sua “cinécriture”? Em termos de processo de produção, como tem sido viabilizado uma “escrita” tão pessoal numa arte coletiva e que envolve processos industriais como o cinema?

Entre a “caméra-stylo” de Astruc e minha “cinéscriture” há uma grande diferença de sentido. Astruc sonhava com uma filmagem tão livre e pessoal quanto a escrita de um romance ou de um ensaio, e eu falo do estilo de um filme. Frequentemente quando evocamos um filme bem escrito, nos referimos ao roteiro ou aos diálogos. Para mim um filme está bem cinescrito quando o cineasta fez todas as escolhas que indicam uma escrita de cinema: filmagem em cenário natural ou estúdio, com atores (e quais atores) ou não profissionais, com esta ou aquela objetiva, com movimentos de câmera ou não, qual estilo de montagem, qual música, qual mixagem etc. Um filme é escrito, cinescrito por todas essas escolhas.

4) Você fez pelo menos dois filmes estritamente políticos, Loin du Vietnam (episódio não conservado) e Black Panthers, além de um filme “quase” político (Salut les cubains). No entanto, se podemos extrair uma dimensão política do seu cinema como um todo, ela nos parece ter mais a ver com a micro-política, com uma política da subjetividade, com a reivindicação de um direito à subjetividade na lida com a realidade objetiva. Você poderia abordar esse tema? Abordar o mundo “subjetivamente” ainda seria um gesto político?

a) Eu não sou um dos realizadores de Loin du Vietnam. Mesmo tendo trabalhado com os demais na concepção do projeto e mesmo tendo realizado um curta-metragem, nada do meu trabalho aparece no filme, exceto alguns planos aqui e acolá. Meu nome permaneceu nos créditos, mas o filme não faz parte da minha filmografia.

b) Black Panthers é um documentário sobre um certo momento da história dos negros. Salut les Cubain é um documentário sobre um certo momento da história de Cuba.

Mesmo que eu tenha opiniões e escolhas que possam aparecer nos meus filmes, nunca pertenci a nenhum partido e não fiz cinema político.

5) Há outra dimensão política que se vislumbra em sua obra, ainda que de modo oblíquo: a presença constante de personagens situados nas franjas da ordem capitalista burguesa, branca e patriarcal — pobres, estrangeiros imigrados, pretos, mulheres, hippies, contestatários, artistas sem dinheiro, velhos tratados com imenso respeito, sem-teto, desajustados. Você não edulcora a representação deles, nem os idealiza, nem esconde seus defeitos. Mas a maneira como se relaciona com eles nos permite vislumbrar um modelo mais íntegro e respeitoso de sociabilidade. Cria esses personagens para se aproximar deles e melhor entendê-los?

Suas perguntas são tão detalhadas e perspicazes que eu poderia simplesmente responder: sim. Sim, quando você lista as pessoas e personagens que me tocam e/ou me inspiram, todos mais ou menos marginais, mais ou menos rebeldes ou desajeitados. Por que se interessar pelos outros, tão seguros de seus lugares numa sociedade voltada à conquista de posições e de dinheiro?

Em um documentário, me aproximo das pessoas para filmá-las. Eles, elas, não são personagens, mas “pessoas de verdade”, e às vezes, por seu caráter e pela intensidade de seus comportamentos ou palavras, fazem com que sejam percebidos pelos espectadores como personagens. Sim, tento ter uma relação simples com eles, conversando antes de eventualmente fazer perguntas, explicando meu projeto e dizendo-lhes que preciso deles para realizá-lo.

Quanto aos personagens criados para um filme de ficção, eles são muitas vezes compostos de elementos vindos de diferentes pessoas que eu tive a oportunidade de conhecer. Todos os romancistas, todos os roteiristas têm assim uma pequena reserva, um pequeno fundo onde eles podem ir buscar, para utilizá-lo na forma de citações, impressões, pesquisas, lembranças ou narrativas. Nós inventamos também. Dito isso, escrevemos e filmamos sem necessariamente compreender os personagens.

6) Seus filmes costumam ser muito líricos na abordagem, e parecer muito ligeiros e descontraídos na forma. A impressão que fica é a de que o lirismo é uma característica espontânea do seu modo de ser, ao passo que o efeito de descontração resulta de um trabalho rigoroso e medido (no nível dos enquadramentos, da composição da imagem e sobretudo da montagem). Você costuma falar em “intuição” na filmagem e “estruturação” na montagem. Poderia abordar esses dois momentos e esses dois conceitos?

Eu não vou parafrasear sua declaração. É verdade: antes de rodar, tenho a impressão de convocar o acaso e durante a realização ele se torna meu principal assistente. Eu guardo o projeto do filme, da sequência e do plano, mas eu me deixo levar por intuições, por propostas que faço a mim mesma, por associações de ideias, de imagens, de sons ou de sentidos.
É verdade que eu dedico muito tempo à montagem. É aí que se faz o filme em sua versão pensada. Achar uma ordem ou um caminho e uma estrutura na qual aquilo que foi realmente filmado se torne mais importante do que o projeto original. Deixar os elementos da filmagem me solicitarem, me guiarem. Pensar naqueles que vão olhar e escutar. Isso é emocionante.

7) Um traço marcante de quase todos os seus filmes é a intensa e declarada afetividade na maneira de olhar e escutar as pessoas que eles mostram. Ao mesmo tempo, tal afetividade difusa parece sempre contrabalançada por uma ligeireza no tom, que a impede de derivar para o sentimentalismo. Você experimenta o cinema como um meio de registrar e traduzir, acima de tudo, os movimentos da afetividade?

Eu não sei o que responder, a não ser que vivo, filmo ou não filmo, mas sou uma cineasta todo o tempo, mesmo se estou fazendo outra coisa. Me nutro de vida, de acontecimentos e de emoções próprias. Eu lamento às vezes por não ter mais talento para saber compartilhar com o espectador a rajada de impressões, de emoções e pensamentos que são contínuos em mim, mas que não tomam forma.

8) Em boa parte dos seus filmes, você assume a sua subjetividade ao tratar dos seus objetos, e acaba falando de si mesma, na primeira pessoa do singular, ao falar dos outros. Nesse sentido,  seus filmes falam não só do mundo como também, e principalmente, de você diante do mundo. Comentando L’Opéra Mouffe (1958), você já falava em “documentário subjetivo". Poderia abordar esse conceito?

Eu não creio de modo algum que meus filmes falem principalmente de mim. Não sou tão interessada assim por mim mesma (e de forma alguma pela minha infância, por exemplo). Eu sou uma cineasta que existe nos meus filmes, frequentemente porque escrevo e narro eu mesma meus comentários. Mas é o que acontece fora de mim o que verdadeiramente me interessa.

Em L’Opéra-Mouffe, filmei pessoas, mendigos, pobres, velhos, bêbados etc., que circulavam na rua Mouffetard. Eu os olhava com uma enorme ternura, consciente de que cada uma dessas pessoas havia sido um dia uma criança recém-nascida, um pequeno bebê todo doce, todo meigo.

É preciso dizer que estava grávida. Isso não é dito no filme, nem é colocado como uma situação pessoal, mas como um certo olhar. L’Opéra-Mouffe não é um documentário social, é um certo olhar, o meu, sobre a realidade tal como a senti naquele dado momento, como mulher, como cineasta. Isto é um documentário subjetivo.

9) Você disse certa vez que “o talento, quando somos documentaristas, consiste em conseguirmos nos fazer esquecer”. Nesse sentido, durante a filmagem, o papel do realizador seria talvez, essencialmente, o de dar voz e espaço aos sujeitos filmados. No entanto, em vários de seus filmes, ainda que mantendo um interesse verdadeiro pela aproximação e a escuta do outro, você se torna de certa forma personagem do filme. Você filma seu próprio corpo, sua voz, performance e gestos; seu jeito, gostos e ideias aparecem na tela. Como foi “compor-se” como personagem? Como você vê essa relação/oscilação entre a documentarista/personagem e os personagens filmados?

Se filmei minhas mãos em Les Glaneurs, aconteceu por acaso, e esse acontecimento mínimo se pôs a viver no interior do filme documentário. Ali está minha mão que envelhece e também minha mão que brinca de pegar caminhões — isso também aconteceu por acaso, num dia em que eu fazia o enquadramento com minha mão, e acabou também entrando no filme. Sou bastante espontânea e me aproveito disso.

10) Quando seus filmes estão diante do público, você se vê da mesma maneira do que se via quando estava na sala de montagem com seus colaboradores? O olhar do público muda em algum aspecto a imagem que você tem de si mesma?

Na verdade, eu não me vejo como “mim mesma”. Nem como a imagem que se tem de mim. Eu gostaria que apreciassem meus filmes e as impressões que eles suscitam. Eu sei que um pouco de afeto acaba chegando até mim, cineasta, isso me dá prazer.

11) Você é frequentemente mencionada por ter tido um papel precursor: de um cinema moderno francês, de um cinema feminino (realizado por uma mulher, com um ponto de vista feminino e com temas que abordam condições de gênero), de um documentário de ensaio pessoal. E esse papel seria ainda mais substancial porque você continuou (e continua ainda) a criar e a surpreender em termos cinematográficos. Você cultiva a ideia do intempestivo e do inatual como valores de criação? E a respeito do cinema no feminino, como você percebe a posição da mulher no cinema hoje?

Existem os fatos, as datas e as circunstâncias dos filmes que realizei. Também há a história do cinema feito pelas mulheres, uma história em movimento emparelhada com o movimento do próprio cinema, que evolui. Esses são os fatos. E não tenho vontade de comentá-los. Gostei de suas palavras “o intempestivo e o inatual”, mas não sei o que mais dizer.
Faz um ano que trabalho sobre um outro tipo de relação com os espectadores. Criei "instalações" com diversas telas que projetam simultaneamente filmes diferentes. É atual sim, e inatual também…

12) Seu trabalho fotográfico foi muitas vezes associado à sua obra cinematográfica, mas um aspecto nos interessa mais de perto: invariavelmente, é fitando uma foto e seus mistérios que lhe vem a ideia de um filme. É o caso de Ulysse mas ainda das fotos de família que estão na origem do filme Le Bonheur — poderíamos ainda mencionar as fotografias do casal Louis Aragon e Elsa Triolet no belo Elsa la rose. Você poderia nos falar um pouco desse tema?

É o caso de Ulysse, de Salut le Cubains e de Ydessa, les ours et etc. Talvez vocês projetem Cinevardaphoto, onde justamente me posiciono como “observadora e comentadora de fotografias” (eu disse intencionalmente comentadora e não comentarista).

13) Em Cléo, de 5 à 7 há também, de uma certa maneira, a desconstrução de uma imagem clichê, aquela da “senhorita-nouvelle-vague”. Não nos espantaria se sua origem tivesse sido uma foto de revista feminina.

Claro que não! A origem de Cléo de 5 à 7 não é absolutamente uma foto de revista feminina. É muito longo para contar. O tema é o contraste entre o corpo da mulher, carnal e bela, e um esqueleto que lhe dirá no ouvido que ela vai morrer. Isto é a beleza e a morte. O tempo que se condensa ou se desloca. O tempo objetivo e o tempo subjetivo.

14) Os hippies, o underground, os Panteras Negras: sua fase americana nos anos 60 foi dedicada à contracultura. Como você vê a onda neoconservadora na América de hoje?

Acreditou-se, alguns americanos acreditaram, nos anos 60 e etc., que eles iriam sacudir os pilares do edifício conservador e puritano que são as instituições americanas. O voto recente dos americanos mostra que nada foi sacudido, a não ser um pouco, e durante algum tempo, quando o “Paz e Amor” fazia sentido, podia ser expresso como um desejo. Ao menos como expressão de um desejo. Essa contracultura californiana — Sexo e política — foi sedutora e engraçada. Eu aprendi muito por lá e voltei.

Agnès Varda, 2004


Currículo

Ana Siqueira

Curadora de cinema.

Cláudia Mesquita

Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, pesquisadora e realizadora de cinema.

Jean-Claude Bernardet

Escritor, ator e realizador de cinema.

Marília Rocha

Cineasta brasileira.

Mateus Araújo Silva

Professor Livre-Docente do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão e do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Universidade de São Paulo, pesquisador e curador de cinema.

Tiago Mata Machado

Crítico de cinema, curador e cineasta brasileiro.

Como citar este artigo

SIQUEIRA, Ana (et al). Entrevista com Agnès Varda. In: forumdoc.bh.2004: 8º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2004. p. 115-121.