“Prefiro sair transformada do que querer controlar os filmes”: uma entrevista com Cristina Amaral

Daniel Ribeiro Duarte [Daniel]: De que maneira a montagem te capturou? Qual o momento em que você foi percebendo que a montagem era a fase do processo cinematográfico que te interessava mais? 

Cristina Amaral [Cristina]: Acho que foi durante o curso¹ mesmo, porque tínhamos aula de todas as áreas de realização de cinema. Começava com um curso básico que tinha aula com outras áreas, tinha pessoal de teatro, música, artes plásticas no primeiro semestre. E depois fui afunilando com a coisa do cinema, mas, dentro do curso, nós aprendemos som, fotografia, roteiro, direção. Na verdade, foram nas aulas de montagem que eu entendi essa função e isso do processo, que era onde o filme, o resultado final do filme, ia ser estruturado. Isso foi algo que bateu internamente e que eu gostei muito. Teve um certo encantamento nessa hora. Porque as outras áreas... A fotografia é a primeira coisa que você vê no filme. Como leigo, é o que você olha. Mas, na hora que você começa a estudar os interesses, para mim, foi muito forte perceber o que significava a montagem dentro de um filme. E acho que bateu muito com o meu jeito de ser, não sei, deu uma liga ali naquele momento. De ver os experimentos todos que foram feitos. Principalmente os cineastas e montadores russos, é muito surpreendente tudo aquilo. Na verdade, foi na aula de montagem que deu essa acordada dentro de mim.

Daniel: Me parece que uma das suas grandes virtudes como montadora é ter uma escuta muito refinada do que o material bruto apresenta. Mas, ao mesmo tempo, a gente sente que existe uma relação com as imagens que é bem pessoal, que é sua também, que marca os filmes montados por você. Como você sente esse balanço entre um trabalho que é de escuta e de uma marca mais pessoal, de montadora, que a gente acaba sentindo nos filmes?

Cristina: A atenção, a escuta, é essencial para não ficarmos na superfície da imagem, para você poder aprofundar, poder trazer à tona todos os mistérios que uma imagem contém, que são maiores até... acho que a gente. Essa atenção acho fundamental. Agora, por outro lado, cada pessoa tem uma relação diferente com a imagem. É uma experiência. Por exemplo, eu tive a possibilidade de comprovar isso em um curso que dei no MIS aqui em São Paulo. O que eu fazia? Pegava o mesmo material bruto e entregava para cada aluno uma cópia. Aí eu não deixava ninguém conversar entre si sobre o que estava fazendo, só eu conversava sobre questões técnicas, não fazia nenhum tipo de indução. Deixava eles fazerem o mergulho naquelas imagens. E era muito lindo. Bom, tinha quem desistisse no meio do caminho, que aí você via que o cara não ia dar certo com montagem. Mas, para quem ficava, era incrível. Se ficassem, sei lá, sete alunos, tínhamos sete filmes diferentes a partir do mesmo material. Se a pessoa se colocar, se ela ficar presente, terá um diferencial em relação às outras pessoas com o mesmo material. Eu preciso sentir essa coisa em relação ao material. Preciso me perder no material, conviver com ele, estabelecer todas as dúvidas possíveis com relação àquele material, percorrer todos os caminhos possíveis. Acaba sendo desse jeito, se você estabelece uma relação pessoal. Porém, ao mesmo tempo, tem que ter muita atenção para não virmos com coisas pré-formatadas na cabeça e tentar encaixar aquela imagem nessa coisa anterior. Tem que ser uma descoberta mesmo. 

Carla Italiano [Carla]: Você tem um trabalho com curtas-metragens ao longo de toda a sua trajetória, desde o começo da carreira. Me parece que são processos e construções distintas também de relação com o material a cada trabalho. A mostra irá exibir um conjunto desses curtas, de diferentes momentos. Como você vê isso, tendo trabalhado com tantos outros formatos? O que continua te interessando no curta-metragem até hoje? 

Cristina: Assim, teve um período que eu fiquei sem montar curtas-metragens por falta de tempo mesmo. Eu falo que eu tenho um karma com projetos com muitos materiais, então fica difícil lidar com outras coisas. Mais recentemente, eu tenho feito uns curtas. Tenho alguns amigos com quem eu sempre trabalho e que, de repente, me apresentam curtas. Talvez o curta esteja para o cinema como o conto para a literatura, né? Você precisa achar uma linguagem mais concisa, mais sintética, menos descritiva. Tem um espaço bonito para a poesia no curta-metragem. É algo que eu gosto. Às vezes, dá até mais trabalho do que no longa, por conta disso. Mas é interessante, é um respiro... Em geral, são filmes mais soltos também. Enfim, são os filmes, na verdade, que me interessam, independentemente da metragem.


Daniel: O seu primeiro trabalho profissional foi o curta do Denoy de Oliveira, Nós de Valor, Nós de Fato (1985). Como foi o processo desse filme?

Cristina: Denoy eu já conhecia, tinha feito assistência de montagem num longa que ele dirigiu. E o Denoy é uma pessoa adorável, ficamos muito amigos, tendo feito um filme só. Fiquei muito amiga da Maraci [Melo]² também, e sempre nos encontrávamos, mesmo quando não estávamos trabalhando. O primeiro documentário que ele fez sobre isso foi no Brasil Feminino, um trabalho de teatro como arte, como recuperação de vida para aquelas detentas... Ele me chamou para fazer esse segundo, que era uma peça que elas tinham encenado. Ele filmou a peça e os bastidores e me chamou para montar. Foi incrível, porque, para mim, era impressionante ver aquelas mulheres que estavam presas por crimes pesados e que, de repente, eram umas menininhas ali no palco, sabe? Brotava uma outra realidade da vida delas ali. E era uma delícia trabalhar com Denoy, porque, além de tudo, ele era muito divertido, ríamos muito. Eu acabei tendo sorte, porque eram sempre realizadores que deixavam espaço para experimentar, é um filme que a montagem teve muito de experimentação. Fomos seguindo os impulsos que o material trazia. Até tem uma história engraçada, porque o Chico Botelho, que fotografou... Eu lembro até hoje, tinha um plano em que ele estava ainda preparando a câmera e elas já estavam no palco começando, então ele foi filmando enquanto ia ajustando o enquadramento, e ficou incrível. Nós colocamos aquilo no filme. Ele, quando viu, falou, “Cristininha, pelo amor de Deus, tira aquilo lá, porque não estava valendo o plano para mim, eu estava ajustando o enquadramento, o foco”. Mas era tão apropriado para o filme que o Denoy falou, “vamos ver…”. Aí ele foi embora, eu disse, “Denoy, vamos deixar, porque está incrível isso aqui”. Depois eu sei que ele ligou para uma amiga todo chateado, porque eu tinha deixado um plano que era apenas um ensaio. Mas que era super adequado para o filme, né? Então, tinha essas coisas. 

Daniel: Nós de Valor, Nós de Fato tem esse processo híbrido, com uma face voltada para uma realidade penitenciária, que é, digamos, mais documental, mas também tem essa ficcionalização através do universo do teatro. O primeiro filme que você monta profissionalmente já aponta de certa maneira para alguma coisa que você tem feito recentemente. Você sente que esse hibridismo na linguagem marcou o seu processo? 

Cristina: Eu já fui impregnada com isso nas aulas do Paulo Emílio [Salles Gomes], que foram os filmes que ele nos mostrou, do Andrea [Tonacci], do Rô [Luiz Rosemberg Filho]. Filmes que, na verdade, me incendiaram o coração. Ali eu entendi que fazer cinema era outra coisa, não era ficar contando historinha. Tinha muito a ver com vida, com postura perante a vida, porque todos esses filmes tinham isso, eles saltavam da tela. Tinha quase que uma declaração de princípios nesses filmes. Isso foi algo que me norteou, que me norteia até hoje. Se você for pensar, essa divisão de documentário e ficção é falsa porque, para mim, quando vou montar um filme, não tem diferença. Eu ando pelos filmes da mesma forma. Porque no documentário você não tem a realidade ali. Você tem um olhar, um ponto de vista, você constrói uma realidade na tela que não é necessariamente real. A partir do momento que você enquadrou, já fez um recorte dessa realidade. E as pessoas que existem nos documentários são personagens também. Trabalhando no documentário, vou percorrer aquele personagem até onde puder. Eu quero a certidão de nascimento dele, sabe? Acho que eu tenho que fazer esse trânsito. Não posso ficar só naquele momento que está sendo mostrando ali. Se você olha com atenção, vai captando, capturando pedaços da vida dessa pessoa, em um simples depoimento. 

Para mim, na verdade, nunca teve essa diferença quanto à relação com o trabalho. Acho que esses filmes me iluminaram nesse sentido, já na sala de aula. Mudou tudo a partir do momento que eu vi esses filmes. Nas aulas do Paulo Emílio, que tínhamos história de cinema brasileiro, víamos os filmes do Cinema Novo, ou na aula dos primórdios do cinema brasileiro, com Maria Rita Galvão. Mesmo os que assistimos no cinema, era uma efervescência da cinematografia europeia, pelo menos aqui em São Paulo. Mas, na hora que eu vi isso, falei, “não, calma, é outra coisa que eu estou vendo na tela”. E isso me serve de norte até hoje. Tenho um profundo incômodo quando me chegam às mãos filmes que as pessoas querem ficar contando historinha, engessadas no roteiro. Você sente que a pessoa está impedindo a entrada da vida no filme. O Andrea tinha uma frase maravilhosa que era: “o roteiro tem que ser a certidão de nascimento de um filme, não a lápide”. Júlio Bressane já radicalizava, dizia que o roteiro era uma ferramenta para a produção do filme, que era para planejar a produção. 

Carla: Você construiu algumas parcerias de trabalho ao longo da vida, criativas, afetivas, de amizade, e uma delas foi com Carlos Reichenbach. Seria ótimo te ouvir um pouco sobre Alma Corsária (1993), que foi um marco para a sua parceria com o Carlão e também para o cinema brasileiro daquele momento, naquela espécie de terra arrasada após o fim da Embrafilme, com quase inexistentes possibilidades de viabilizar financiamento, produção, circulação. Então, me parece que o filme, quando surge, traz um novo fôlego. 

Cristina: Primeiro, foi um susto, porque eu já conhecia o Carlão, pois ele estava sempre junto do pessoal de curta-metragem, dando força para todo mundo, ele era muito atencioso e generoso nesse sentido. Eu o conhecia, mas nunca tínhamos feito nada juntos. E eu jamais, eu nem imaginava ser chamada para trabalhar com ele, porque ele trabalhava com Éder Mazzini, então, para mim, já nem entrava em cogitação. Bastava saber que o Carlão ia filmar e eu veria um filme novo dele, e eu já estava no melhor dos mundos. E, realmente, eu fiquei muito feliz quando soube que ele ganhou o edital. Quando ele me chamou, na verdade, ainda me enganou um pouco. Ele me pediu para ajudar a separar uns materiais que ele ia ampliar, que o pai dele filmou e que ele colocaria no filme. Fui feliz da vida, ia passar uma tarde com o Carlão na moviola. Aí, no fim do dia, ele me entregou o roteiro e perguntou se eu gostaria de montar o filme. Eu fiquei assim… Ao mesmo tempo, me deu uma insegurança danada. Era o oitavo longa-metragem que ele dirigia, e fica aquela coisa, “nossa, eu gosto tanto do cara, imagina se não dá certo?”. Me deu esse medo. Ao mesmo tempo, é também uma sorte estar perto de pessoas assim, porque ele foi me aproximando do trabalho. De vez em quando ele me ligava, estava em pré-produção e me chamava para almoçar com ele e Sara [Silveira], ou para tomar um café… E o Carlão tem essa coisa linda, que, para mim, quebra todos os mitos que as pessoas criam. “Ah, o cara é genial, mas é difícil”. Não tem isso. Pelo contrário, ele queria que você participasse do processo, te convocava. Ele foi abrindo todas as portas possíveis do filme para mim, o tempo inteiro. Nós conversávamos muito. Se eu sugerisse algo, ele dizia “vamos experimentar”. Às vezes, ele até radicalizava o que eu propunha. Foi um processo que foi ficando cada vez mais lindo. Para mim, foi um marco, porque eu vinha basicamente da montagem de curta-metragem e tinha feito assistência em longas. Isso me colocou imediatamente num outro patamar profissional, montar um filme do Carlos Reichenbach significou isso. Ao mesmo tempo, era um processo tão rico no cotidiano que as pessoas falam que é um milagre o filme ter sido feito com tão pouco dinheiro. Todo mundo ganhava pouco, mas eu não tenho memória de falta de dinheiro nessa época. Sou capaz de lembrar do sentimento, da reação que tivemos montando uma determinada sequência do filme, mas escapa totalmente da memória qualquer questão ligada às finanças... É engraçado, eu fiquei completamente impregnada por esse filme. A minha vida era ir para a moviola montar esse filme, era o meu prazer. Estar ao lado de Carlão era um enriquecimento o tempo inteiro, porque ele ficava falando comigo de livros, “não, você tem que ler esse livro!”. No dia seguinte, ele chegava com o livro de presente. E fora que falávamos da vida, do país. Eu brincava que ele não dormia, porque chegava às nove horas da manhã e já tinha lido uns três jornais inteiros. Foi algo que me preencheu de muitas outras coisas além do cinema. Foi muito bonito.

Depois, quando fomos para o Festival de Brasília, terminamos o filme em cima do laço. Porque, com essa falta de dinheiro, o filme foi todo dublado, terminou a dublagem e tinha duas semanas de verba para montagem. Aí chega a Sara desesperada, coçando a cabeça: “porque a gente tem que parar”. Só que Donald Ranvaud se ofereceu para participar da produção do filme, ele veio para São Paulo e pagou todo o processamento de som, que seria a etapa seguinte. Eu falei para Sara: “eu não vou parar, porque a etapa seguinte já está paga”. Ela, desesperada, andava pela sala gritando comigo: “tu vai pagar as contas? Como é que vai fazer?”. Eu falei: “olha, você tem crédito conosco, porque pagou todo mundo direitinho até agora. Eu vou falar com o dono da sala de montagem, nós abrimos uma caderneta, o durex é barato, então vamos continuar”. Se eu não tivesse feito isso, não teríamos terminado o filme a tempo, porque deixamos a montagem pronta e fomos para o estúdio fazer a edição de som, mixar. Quando saiu o dinheiro para a finalização, ficamos uma semana, eu e Carlão, dentro do laboratório; eu encaixando as trucas e os créditos, ele fazendo a correção de cor, porque ele que fotografou. O filme seria exibido, sei lá, na segunda-feira, em Brasília. Foi assim, tudo na correria. 

Na projeção, eu fiquei sabendo que um dos projetores não estava muito bom, então fui para a cabine e fiquei fazendo um corpo a corpo suave com o projecionista, não para irritar, mas para ver se estava tudo correndo bem. Fiquei a projeção inteira na cabine. A hora que eu desci, não acreditava no que estava acontecendo. Um monte de gente vinha me abraçar. Vi que ninguém tinha saído do cinema. As pessoas estavam num estado de emoção, uma coisa impressionante. Carlão demorou mais de duas horas para conseguir sair do Cine Brasília para ir jantar naquele dia. Como a imprensa não tinha visto o filme antes, viu junto com o público, e só dois dias depois saíram as matérias, matérias de página inteira. Esse filme fez um recorte dentro da crítica de cinema, tem o antes e o depois. Se era filme brasileiro, tinha sempre isso de deixar para lá. A partir dali, a crítica dos jornais começou a falar, mesmo quando não gostava do filme, tratava com respeito. Teve essa alteração, que eu credito a esse filme com a maior tranquilidade, que foi depois dele que a crítica começou a prestar atenção. Eu nunca vivi uma projeção como aquela, foi um negócio impressionante o quanto que tocou as pessoas.

Daniel: E Alma Corsária tem uma montagem supercomplexa, né?

Cristina: Ela tem uma estrutura, mas, ao mesmo tempo, tem uma fluidez… Se você consegue penetrar nas imagens com essa tensão, não tem dificuldade. É o fluxo que vai te levando. Eu sempre digo, sem o menor pudor, que são filmes maravilhosos, até me isentando desse resultado, porque chega uma hora que parece que tem uma instância que te leva junto com o material, com essa vida dentro do material. E, assim, diretores do porte de Carlão, de Andrea, os filmes não vêm à toa, né? Tem muita nuance. Tem coisas, inclusive, que eu sei que percorri aquilo durante muitos meses e que não dominei. Eu gosto disso. Gosto de me surpreender revendo os filmes, descobrindo uma nuance que eu não tinha percebido enquanto estava montando, a grandeza desse cinema que vem com essa potência de desejo, de criação, essa intensidade. A gente não domina. Eu me entrego. Eu falo que prefiro me entregar, prefiro sair transformada do que querer controlar os filmes. É muito mais legal assim. 

Daniel: Vou aproveitar e te perguntar sobre o Garotas do ABC (2003). O filme é do início do primeiro governo Lula, em que se descortinava um ideal democrático e as pessoas estavam falando de outras coisas, não aquilo que, de certa maneira, o filme aponta, que é uma ascensão de uma extrema-direita. Em contraposição a um grupo de mulheres que trabalhavam numa tecelagem, tem os neonazistas, tem a questão do racismo, do machismo, do conflito de classes, está tudo concentrado nesse filme. E eu queria saber como você sentia na época a visão do Carlão sobre isso, e como você sente que isso ilumina os dias de hoje. 

Cristina: Carlão era uma pessoa muito culta, ele tinha uma bagagem intelectual gigantesca e andava na rua. Essas coisas que as pessoas não estavam percebendo, ele já estava vendo de uma forma clara. Ele trouxe inclusive algo que as pessoas esquecem, que estamos vivendo agora, mas, se você puxar um fio, você chega no integralismo. E na época as pessoas reagiram muito mal ao filme. Diziam que era violento, não sei o que… Tiveram uma reação forte contra o filme. Aprendo muito com esses filmes, porque eu tinha algumas ilusões. Eu sempre dizia que tem dois marcos que não se volta atrás: um é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o outro é a nossa Constituição de 1988, que vimos começar a ruir, tudo isso agora. Eu tinha essas ilusões. Por exemplo, lá tinha os carecas do ABC, já havia grupos neonazistas naquela época. Ele foi andar no centro da cidade, olhar o que não estava sendo contemplado pelos olhares oficiais, ia construindo a partir desse olhar tão pleno e amplo que tinha da cidade, do mundo. Ele já estava enxergando, já estava ali, ele via essas sementes. Carlão, durante meses, pegava os primeiros ônibus que saíam, tipo, quatro horas da manhã, um ônibus lotado, junto com essas mulheres que iam trabalhar. Para trazer isso tudo para a tela, não era algo que ele ficava em casa imaginando. Ele ia vivenciar. 

Carla: Eu queria trazer uma outra parceria fundamental para a sua trajetória, que é justamente com Andrea Tonacci. Talvez possamos falar sobre Já Visto Jamais Visto (2013), que é um projeto muito afetivo e pessoal, mas que permite estabelecer diferentes relações. E como o trabalho de montagem nele é desafiador, de transitar por essas histórias de vida, as fronteiras entre o que é encenação, documental, autobiográfico, ao mesmo tempo que não é, nessa impossibilidade de separar as coisas. Queria te ouvir um pouco sobre os desafios de trabalhar nesse processo de montagem. 

Cristina: O desafio foi o mesmo de sempre, de todos os trabalhos do Andrea. Todos os trabalhos com ele foram muito desafiadores... Eu tinha momentos no meio de falar, “Meu Deus, não vou conseguir”, de tanta exigência, mas, ao mesmo tempo, era isso que me aguçava mais, essa relação de atenção, de aprofundar, de mergulho no material, até encontrar a luz lá no fundo. Ao mesmo tempo que sempre foi árduo, foi inestimável. Não tem dinheiro que pague isso. É um negócio de um tamanho que não dá para dizer. Mas todos os trabalhos com ele foram assim. Todos, não foi um ou outro. No caso do Já Visto Jamais Visto, não existia projeto de filme. Andrea falou várias vezes disso. O que tinha, na verdade, é que entramos num edital cultural, porque a intenção era recuperar alguns materiais dele que precisavam ser mandados para fora do Brasil para serem processados antes que se perdessem, material que estava na Cinemateca, numa fila de restauro. Só que o edital exigia que se entregasse um filme. E aí tinha a história de pitching. A gente ria muito, falando que “eu queria estar lá para ver a sua cara fazendo um pitching”. Ele brincou, ensaiou em casa, mas, na hora que chegou lá, falou: “olha, eu vou confessar uma coisa para vocês, eu não sei que filme vou fazer. Aliás, vou confessar mais uma coisa, ele só vai existir por causa deste edital, porque eu não tinha projeto de filme. Como o edital vai me propiciar o restauro dos materiais, vou apresentar um filme para vocês, mas não sei qual”. Esse edital tinha cinco prêmios que eram o mesmo valor e um que tinha o valor mais alto. Eles deram esse valor mais alto para ele. É o que eu falo para as pessoas, vocês têm que parar de ficar obedecendo. Você tem que ter ousadia de transgredir, que foi o que ele fez. Porque todo mundo ia ficar em casa tentando, inventando um projetinho para apresentar, para ser aprovado, para não sei o que. Ele chegou e falou, “não, não tem. Se quiser, é assim”. E por essa ousadia, ele recebeu o maior prêmio do edital. 

Aí a gente começou a olhar os materiais. Ele tinha muita coisa filmada que não se completou. O primeiro trabalho que fizemos juntos não tinha sido completado, era toda aquela parte filmada no sítio, com o Dan pequenininho e tal. Foi a primeira coisa que ele me chamou para fazer, aquele filme, só que ele precisava filmar mais e foi indo no tempo, foi ficando... Ele fotografava sempre. Ele deixava a câmera montada na sala e, se pintasse algo, filmava. Tinha trechos de filmes que tinham sido um projeto, trechos dos filmes que ele completou, material em Hi8, que filmou no sítio, em vários suportes, e tinha os quadros dele, filmados para este filme. E nós ficamos transitando por aquele material. Aí ele sentou e fez uma escaleta do filme e eu coloquei nessa ordem. A gente olhou, não saiu nada ali. Ele voltou, continuou... Ele assistia alguns materiais e eu outros. Às vezes, quando eu achava algo interessante, eu o chamava e dizia “olha, isso você acha que pode ser?”. Fomos juntando pedaços dessas imagens, esse mosaico do que ele tinha feito no tempo. Nisso, entraram imagens de família, da primeira mulher dele, do filho, do sítio, de amigos. Fomos somando isso tudo. Até o momento em que deu um susto e falamos: “nossa, está começando a aparecer um filme aqui!”. Andrea nunca ficava na ilha comigo, não tinha muita paciência, ou ele ficava falando tanto que eu o colocava para fora da sala. De vez em quando ele entrava, assistíamos algo juntos e isso ia somando. Foi um processo que eu não sei racionalizar muito, foi meio assim, as coisas foram se encaixando. 

Ao mesmo tempo que o filme tem a imagem do Andrea, imagens pessoais dele, ele nunca quis ser a pessoa que está fazendo um filme pessoal, sobre a própria família. Era a possibilidade de afeto que todo mundo tem. Ele sempre ampliava, sempre esteve muito dentro de cada filme, ao mesmo tempo que nunca foi o umbigo dele que estava ali. Ele sempre ampliava para um desejo humano, um afeto humano, uma dor humana, amplificava para fora dele tudo que colocava ali na tela. No Serras da Desordem, eu digo que é um momento que o Andrea encostou o coração dele no coração de um outro homem, que, por acaso, era um índio, e compartilhou com ele de todas aquelas dores, aquelas perdas, aqueles desejos, tudo o que ainda permaneceu de humanidade ali. Que é impressionante isso nas populações indígenas, o quanto que eles têm de humanidade, apesar de todo o estrago que fazemos perto deles, em cima deles. No fundo, é isso. Acho o filme incrível, surpreendente. Quando eu vejo, falo, “nossa, o que é isso?”. 

Carla: Queria puxar um outro filme importante para a mostra que é Abá (1992). Pode ser interessante falar de como ele veio a existir, associado à parceria com Raquel Gerber e a Orí (1989), mas também falar da montagem em si de Abá, que é bem particular. Ele dialoga de formas diferentes, por exemplo, com Ana (1982), em que você contribui de outras maneiras. 

Cristina: Eu transito sempre de uma forma muito intuitiva com os filmes. Tento não trazer coisas que eu já fiz antes, nem o que eu vi, e sim olhar para o material mesmo, e muito do meu gesto é intuitivo. É mais o material que me impulsiona no gesto do que o contrário. E Abá, na verdade, era um desejo da Raquel. Ela ia para o Fespaco e queria levar um presente para o festival. Na verdade, é um material não usado em Orí, que ela tinha filmado. Até acho que ela já trouxe as imagens… Inclusive, conceitualmente, Raquel sabe falar de uma forma mais precisa do filme do que eu. Eu enxergo o filme como uma oração. A música, são as imagens que me levaram, o sentimento que essas imagens me traziam, que me levaram, que, no fim, me conduziram a mão para a montagem. Mais do que algo que eu tivesse consciente, sabe? É muito de intuição mesmo.

Ainda, quando tem música, daí eu faço um mergulho que nem eu sei, porque a música é uma outra instância de entendimento, de significação do mundo. Eu acho a música um milagre. Para mim, pensar como nasce uma música, eu só consigo pensar num milagre, e isso me impacta muito no trabalho. Inclusive, essa é uma das brigas que eu tenho com os compositores que fazem música para os filmes, que eles querem o corte final para fazerem. A música transforma a minha montagem, altera a montagem. Eu quero essa alteração, não quero o contrário, senão vamos engessando o processo. Então o Abá foi isso, um filme curtinho, de uma energia religiosa tão forte, tão bonita, que eu olho esse filme como uma oração. 

Outra questão que eu sempre fico explicando é que eu não sou diretora. O crédito de direção ali é um carinho da Raquel, que falou para assinarmos juntas esse filme. Porque nosso trabalho sempre foi um processo bonito, algo que fazemos juntas. Acho que a montagem tem que ser isso, essa cumplicidade total com a direção. É de uma cumplicidade que eu falo, não uma obediência, mas uma cumplicidade. Às vezes, nesse processo de cumplicidade, tem momentos em que falamos “olha, isso não está funcionando, vamos tentar de outro jeito”, mas estamos junto ali. 

Adilson Marcelino trouxe uma chave para mim que eu nunca tinha prestado atenção. Ele falou que eu não desenvolvi uma carreira profissional, desenvolvi parcerias. Tem pessoas, por exemplo, com quem eu fiz um filme só e não bateu, nunca tiveram desentendimentos maiores, mas não vamos fazer mais nada juntos. É um filme só e pronto. Agora, tem uma coisa de parceria mesmo que é estabelecida, que eu não tinha percebido. E com Raquel é isso, ela é uma amiga, uma irmã que eu tenho. Ela tem um trabalho sensível e profundo também, é outra pessoa estudiosa, tem uma cultura muito grande. Qualquer filme que ela vai fazer tem um processo de pesquisa, de conhecimento. Quando ela me traz essas imagens, elas vêm carregadas de muitas histórias ancestrais, coisas que eu não domino, que nem quero dominar também. Quero viajar junto com essas imagens. Então o Abá é meio isso.

Daniel: Ongamira (2013) também tem essa abordagem de uma espiritualidade. Você lembra desse momento da montagem? Como recebeu esse material? 

Cristina: Nós temos conversas até antes de ela filmar. E a Raquel é daqueles realizadores que eu tenho a mais absoluta confiança. Nem preciso saber muito do material, sobre o que ela vai filmar, porque sei que faremos uma viagem bonita. Nem fico preocupada com qual vai ser o resultado do filme. Porque, na verdade, o mais importante é o processo. É o processo que se atravessa durante a feitura do filme. O que vai ser depois é o que ele quiser, é o que ele quis ser. E as pessoas ficam preocupadas em como vai bater para o público... Ninguém sabe. Só se você ficar pegando fórmulas, dentro dessa caixinha que já está pronta. Se não, deixa andar que vai acontecer alguma coisa. 

Eu acho que o mais lindo, o mais rico, é o processo de fazer. E às vezes você nem sabe quando que isso vai resultar. Orí, por exemplo, é um filme que não teve apoio nenhum para ser filmado e lançado. A Raquel teve que vender um apartamento para fazer o filme. Tinha a Embrafilme, mas ela não deu um tostão. No lançamento, também nada. Tudo ela teve que pagar. Eu lembro que ela falava, “Cristina, do céu, tanto esforço, dez anos filmando, pesquisando…”. E eu dizia “calma, esse filme é para o tempo”. Hoje, ele é um filme essencial, mais requisitado e exibido agora do que na época em que foi lançado. Às vezes, temos que não nos preocupar com isso. É difícil falar isso com o diretor ou o produtor, mas temos que fazer isso. Faz com a maior intensidade que você puder, com a maior integridade na hora que estiver fazendo, e deixa ir. De tudo que eu ouvi, nunca deu errado quando fizemos com o máximo de honestidade e energia. Aí deixa andar. Então, Ongamira também foi um filme que ela trouxe, um espaço e um processo pelo qual ela estava passando que eram muito importantes, enriquecedores. Mas não são filmagens estratégicas, né? Tal tema está na moda, não sei o quê. Não é isso, é o que te provoca internamente. Foi um processo bonito de fazer também. 

Outro dia, vieram me falar sobre o meu trabalho de montagem. Primeiro que eu nem sou tão premiada quanto as pessoas acham. Eu recebo umas críticas às vezes que... Bom, Serras da Desordem disseram que a montagem era errática. Mato Seco em Chamas as pessoas reclamam do tempo, não sei o que... Eu tento nem me preocupar, nem me tocar muito com isso, porque nos atrapalha. Sei a riqueza do processo que estou vivendo naquele momento. E sei que esses filmes vão... Se não é no momento que eles são lançados, é porque, de repente, eles estão chegando um pouco antes da hora. Era o caso do Garotas do ABC. O Brasil não estava preparado para receber esse filme naquele momento. O Brasil estava olhando para o chão, enquanto as coisas estavam passando na frente dele. Você tem até coragem de fazer aquilo que faz com integridade, com intensidade, se buscar uma verdade. Acho que o cinema não tem realidade, ele tem verdades. Você busca uma verdade naquilo que está colocando. Fica tranquilo, porque, em algum momento, isso trará uma resposta, alguma existência. E que a gente nunca sabe o que é. Deixa aí, vai saber o que virá. 

Carla: Esta mostra nos convida a olhar retrospectivamente, um pouco como sugerido pelo título de Já Visto Jamais Visto. Talvez seria bom te ouvir sobre como é olhar para esses trabalhos iniciais. O que você acha que permanece, pensando na jovem Cristina dos anos 1980 começando a trabalhar com montagem, e o que acha que mudou completamente? 

Cristina: Acho uma sorte descobrir o que gostamos de fazer. É uma sorte imensa, porque daí o prazer de fazer não acaba, o desejo, a energia, pois é uma descoberta. Às vezes, eu vejo as pessoas angustiadas porque querem virar diretoras de cinema. Eu falo: “então o cinema brasileiro vai perder uma montadora razoável e ganhar uma diretora medíocre”, porque é diferente. É um jeito de estar no mundo, não basta uma luz divina e você vira diretor. Principalmente após ter essas convivências tão intensas, como tive com o Carlão e Andrea, eu sei que é um outro jeito de estar no mundo. Nessa relação, eu não hierarquizo, é tudo de igual para igual. Mas eu supervalorizo isso, porque, na verdade, o que eles são? São antenas de desejos, angústias, ansiedades, de dores do mundo, que eles têm que reelaborar e transformar em algo. Isso é algo que eu valorizo muito. 

Por exemplo, Ana é um filme que ficou muito tempo sem ser exibido. Não parece que fui eu que fiz, entendeu? Já vejo com outro prazer… É bonito poder rever desse jeito. Ao mesmo tempo, você assiste permeada de memórias, da relação com as pessoas. A Regina [Chamlian] também é alguém que parou de fazer cinema, mas nós estudamos juntos, eu, ela, Joel [Yamaji], e continuamos amigos até hoje. Ela é uma escritora maravilhosa, escreve livros infanto-juvenis inteligentes, é incrível. Ana foi um projeto que fizemos saindo da escola. Outra coisa bonita é que saímos criando juntos. Tinha um edital, nós nos juntamos e Ana acabou ganhando. E Regina é uma pessoa muito generosa também, não ficou aquilo de “eu sou a diretora do filme”. Não, sempre trabalhamos juntos. Acho que esse afeto fica no filme, ele transborda de afeto a imagem. 

Ao mesmo tempo, eu tento começar cada filme como se fosse uma página em branco, em que não vou trazer a experiência de nada, nem do que fiz, dos gestos, nada dos filmes anteriores. Claro que você é sempre você, então se alguém quiser analisar um conjunto, vai enxergar uma pessoa ali. Mas, para cada um, vou lavar o olho e começar a olhar de novo, porque eu quero olhar aquilo que está presente na minha frente. Isso eu acho um privilégio, não ter perdido esse prazer. E o privilégio são das escolhas também, das pessoas e dos filmes que escolhi para caminharem comigo na vida. Tenho um corpo de afeto em volta de mim o tempo inteiro, tanto de filmes quanto de pessoas. São pessoas imprescindíveis. Eu morro de saudades do Adirley [Queirós]... Com Adirley, eu falo “vou inventar alguma coisa para você vir a cada dois meses para São Paulo, passar uns dias com a gente”. Fica algo que faz parte da vida, você não separa, “agora é meu trabalho, agora eu fecho”... É até preciso se policiar para não tomar tanto conta da vida, mas, ao mesmo tempo, é tão bom e bonito que seja assim, esse corpo de afeto em volta. Acho uma sorte. E foram escolhas superintuitivas que eu fiz…. Vai pelo coração, vai que dá tudo certo.

Notas

  1. Cristina Amaral estudou na ECA-USP no início dos anos 1980.
  2. Maraci Melo é atriz e produtora brasileira, tendo sido casada com Denoy de Oliveira de 1979 a 1998.