1. Gostaríamos de começar perguntando sobre como surgiu esse projeto compartilhado entre vocês e se a leitura do livro A Queda do Céu sempre esteve na origem da proposta de trabalharem juntos?
Primeiramente, gostaríamos de dizer o quanto estamos felizes em estar no forumdoc.bh, um festival que admiramos muito, pela relação histórica com o cinema indígena e pelo espaço de debate aberto por vocês. Sim, a leitura do livro A Queda do Céu está na gênese desse filme e do desejo de trabalharmos juntos, compartilhando a direção. O livro chegou até nós durante o processo da peça Altamira 2042, dirigida por Gabriela, e logo percebemos a potência audiovisual da narrativa Yanomami. É um livro belíssimo que carrega consigo não apenas um, mas muitos filmes. Entretanto, nunca pensamos em uma adaptação, pois é um livro imenso e, de certo modo, inadaptável. A cosmologia Yanomami é extremamente audiovisual. Operar sobre o som, a imagem e o sonho são tecnologias sofisticadas do xamanismo Yanomami; são também tecnologias da arte e, mais especificamente, do cinema. O filme A Queda do Céu é a expressão cinematográfica de uma relação – do arrebatamento que tivemos ao ler o livro, certamente, mas, principalmente, do que foi vivido em carne, osso e espírito ao longo dos últimos sete anos de relação com Davi, Bruce, Watorikɨ e os Yanomami. É, mais precisamente, a experiência radical e transformadora que foi filmar a festa reahu Yanomami na comunidade de Watorikɨ, com todos os seus rituais e tudo o que vivenciamos lá.
2. O ritual funerário reahu, que costuma reunir diferentes aldeias aliadas, é um dos aspectos mais emblemáticos da cultura yanomami. Como surgiu a chance de filmar durante o reahu de um grande xamã, sogro de Davi Kopenawa, personagem central do livro A Queda do Céu?
Foram anos de estudos e trocas com Davi Kopenawa e Bruce Albert até as filmagens. Durante esse tempo, infelizmente, aconteceu a morte do sogro de Davi, grande xamã yanomami que o iniciou no xamanismo e também guiou Bruce Albert em todo o seu conhecimento da cosmologia Yanomami. Foi esse homem – pessoa que já não podemos mencionar pelo nome – que aproximou os dois e visionou essa amizade, sendo, em larga medida, uma espécie de terceiro autor do livro. A partir disso, Davi nos convidou para filmar o reahu em homenagem a ele. Não era algo que havíamos pensado previamente, mas que se tornou o coração de nosso filme.
3. O reahu, como dizem os yanomami, aliás, no próprio filme, é um ritual feito para esquecer o morto. Vocês poderiam falar como se deram as negociações em torno das imagens filmadas, tendo em vista a complexa relação com a “imagem” na concepção yanomami. O que nos leva a pensar o contraste entre imagem e palavra presente no filme.
O filme é um desejo nosso e também um desejo de Davi e das lideranças de Watorikɨ, que debateram longamente sobre essa realização. Davi entende, de modo muito profundo, a importância da imagem e da palavra Yanomami viajarem longe e reverberarem no mundo. Essa é sua missão de vida, elaborada junto ao seu sogro: falar aos brancos. Davi entende a imagem e o cinema como uma flecha para atingir o coração do napë. Todo o seu trabalho ao lado da fotógrafa Claudia Andujar – uma imensa inspiração para nosso filme – já revela essa compreensão. Pensamos que nosso filme segue essa trilha aberta por ele, Bruce, seu sogro e por Claudia. Mais do que uma negociação no sentido da produção – que também aconteceu –, pensamos que se trata de uma relação em que a imagem é pensada em sua potência de vida e morte: a restituição da imagem, do som e da montagem como um lugar de fazer e manter mundos. É um modo xamânico e também um modo cinematográfico de manejar a imagem e o som. Importante destacar também que houve momentos da festa em que não fomos convidados a filmar, e nem mesmo a ver. O que nos leva a pensar que, assim como alguns cantos não têm tradução possível, algumas imagens também não têm. São linguagens que pertencem a um mundo e não a outro, e é bom que seja assim.
4. Notamos que o filme alterna filmagens noturnas e diurnas. Essa alternância parece ter sido central tanto para a fotografia de Eryk Rocha e Bernard Machado quanto para a montagem de Renato Vallone. Vocês poderiam falar um pouco sobre essa dualidade do dia e da noite na estrutura do filme?
A noite dos vivos é o dia dos xapiri. É durante a noite que os xapiri cantam, dançam e trabalham espiritualmente. De dia, os xamãs fazem xamanismo e inalam yakoana; à noite, os xamãs sonham nas redes e trabalham com os xapiri. Dia e noite não são opostos, mas uma continuidade. É durante a noite que se dizem as palavras que não devem ser esquecidas. Os xapiri, que traduzimos como espíritos, são melhor traduzidos como seres-imagem. Há luz nessas imagens, pequenas luzes vistas quando não há a luz do sol. Fizemos uma escolha de não iluminar a escuridão. Fizemos uma escolha por uma outra habilidade de ver. Fizemos essa escolha junto com os Yanomami, quando levamos a sério a proposta cosmológica e, portanto, estética de um povo. Essa escolha nos coloca um problema cinematográfico que Davi percebeu quando nos disse, apontando para a câmera: “essa máquina gosta de luz”. Ele percebeu que tínhamos um problema. Mas optamos por não “solucionar o problema” com equipamentos, e sim ficar no problema e provocar o cinema. Não à toa, boa parte dos rituais que compõem o reahu acontecem à noite. Essa ideia do “ver” e de que a imagem precisa estar iluminada, preenchida, e de que tudo precisa ser visto e preenchido, é desmistificada, pois tão importante quanto o que se vê, é o que não se vê. Então o som e o fora de campo têm um papel crucial na imersão e imensidão dessa floresta poliglota. A noite e a penumbra são uma linguagem no filme. Nesse sentido, o cinema (mesmo diurno) é uma atividade noturna por natureza, assim como toda a experiência que vivenciamos na sala escura. O trabalho expressivo de Bernard e Eryk na imagem do filme confluem belamente na montagem certeira de Renato Vallone. Buscamos descobrir e enraizar a forma do filme na própria dinâmica da festa e na cosmologia yanomami. Importante lembrar também de Roseane Yariana Yanomami e Morzaniel Iramari como câmeras que também participaram da criação de imagens do filme.
5. Notamos ainda outras oposições que nos pareceram bem-marcadas, como, por exemplo, entre as imagens do pátio da aldeia e as de trilha na mata; assim como entre as da pista de pouso – lugar onde, aliás, tem início o filme, na mais longa sequência do filme – e as da monumental montanha ao pé da qual situa-se a maloca de Watorikɨ –, onde a montagem talvez ganhe seu respiro dando vazão aos recomeços na narrativa. Vocês concordariam com esse modo de ver a construção do filme privilegiando tais contrastes?
Totalmente, e ficamos felizes por vocês terem visto isso. Ao longo da montagem, trabalhamos com o conceito da fita de Möbius: algo como uma dualidade continuada, onde as fronteiras duras se apagam – dia e noite, trilha e maloca, sonho e cotidiano.
6. Ainda sobre as opções entre materiais do filme, há aquela de manter a presença dos napë no cotidiano yanomami limitada às mensagens trocadas através do rádio. É através do som das transmissões que ouvimos a respeito da luta incansável contra a invasão e destruição de suas terras e de seus corpos pelo garimpo, o medo terrificante das mulheres, as questões alarmantes de saúde e o nascimento de mais uma criança. Como se deu essa opção no processo de construção do filme e qual a sua importância?
Talvez seja importante dizer que, mesmo com muito tempo de estudo, trocas e até mesmo a criação de um roteiro ao longo dos anos de preparação, nós não chegamos a Watorikɨ com um projeto cinematográfico pronto. Tínhamos um roteiro como base, repleto de intuições, desejos e apontamentos, e não um roteiro fechado. Fomos convidados a filmar uma festa e sabíamos da dimensão desse convite. Assim, o verdadeiro roteiro que seguimos foi o da festa e do impressionante fluxo de energia dos yanomami. A linguagem do filme nasce da nossa relação com a comunidade de Watorikɨ e se enraíza na expressão estética dos yanomami através da festa, sua teatralidade e rituais. Chegamos antes de a festa começar e ficamos até depois de ela acabar. Alguns dos elementos-chave do filme se firmaram durante as filmagens – o rádio é um exemplo. Ao estar lá, entendemos a importância da radiofonia. Watorikɨ é uma comunidade relativamente protegida da invasão garimpeira. A comunidade não fica perto de nenhum grande rio que pudesse tornar a chegada dos garimpeiros mais acessível, e, principalmente, conta com a liderança incansável de Davi Kopenawa. Então, os únicos modos que sentíamos o cerco do garimpo eram pela radiofonia e pelos aviões que cruzavam o céu. Isso foi percebido com o tempo, sendo incorporado na filmagem e valorizado na montagem. Era também um desejo nosso e de Davi preservar os Yanomami do assolamento de imagens de sofrimento e destruição, novamente compartilhando uma compreensão sobre o poder da imagem. Essas imagens explícitas de violência já são diariamente propagadas em grande escala pela mídia. Queríamos mostrar a potência da beleza e força desse povo; dessa forma, o cerco foi se transformando em uma força sonora na narrativa do filme, muitas vezes em contraponto com a imagem.
7. O trabalho de som do filme é realmente notável. Gostaríamos de saber um pouco sobre o processo de mixagem conduzido por Guile Martins e Toco Cerqueira, além do som direto de Marcos Lopes. A mixagem nos pareceu ter um papel preponderante no filme, vocês poderiam comentar a respeito do desenho de som?
Um dos textos que mais nos inspirou no pensamento sonoro do filme foi “A Floresta Poliglota”, de Bruce Albert. A floresta como uma imensa caixa de som de vozes e línguas multiespécie, é o som que abre a imagem no xamanismo. Essa relação sonora entre o mundo dos vivos e o mundo dos xapiri. Então, nossa filmagem foi conduzida de modo a dar espaço para o som, que não estava preso à imagem. Algumas vezes, a câmera (junto com um pequeno microfone acoplado) estava num lugar diferente do gravador e dos microfones. Marcos Lopes fez um trabalho primoroso de escuta. Mais do que captação, o que Marcos fez foi escutar. O desenho de som do Guile e a mixagem com Toco tiveram a sabedoria e sensibilidade de amplificar essa “floresta poliglota”, mas mantendo os espaços de silêncio, de compreender o silêncio como som. Trazendo também a polifonia da maloca, da floresta, e do mundo dos xapiri. De caminhar por trilhas de som que levam de um mundo a outro.
8. Na realização de filmes com indígenas, a tradução configura-se como uma etapa crucial de produção. Muitas vezes, como deve ter sido o caso, é só após o processo de tradução que os próprios diretores passam a conhecer, de fato, o material filmado. Gostaríamos de saber sobre o processo de tradução deste filme, se todo o material filmado passou por tradução, como foi montada a equipe e quanto tempo foi necessário para concluí-la?
A tradução foi um filme dentro do filme. A primeira leva deve ter durado mais de um ano, e, depois, outras levas de tradução foram acontecendo durante o processo de montagem. Isso, evidentemente, foi afetando e abrindo novas veredas para a montagem. A primeira coisa foi traduzir as conversas com Davi sobre conceitos e passagens do livro – foram mais de 20 horas de uma tradução complexa. Depois, vieram as 100 horas de material filmado durante a festa. A equipe de tradução foi liderada pela antropóloga e imensa parceira deste filme, Ana Maria Machado, e contou com uma equipe de Yanomami e pessoas ligadas a eles, entre enfermeiros e missionários. Depois, houve uma revisão de todo o conteúdo textual do filme, liderada por Ana, Morzaniel Iramari e Bruce Albert.
9. Ainda sobre a fala, as palavras… era de se esperar que o filme estivesse focado nas palavras do grande xamã Davi Kopenawa, contudo, suas falas, precisas e retas como uma flecha, são alternadas com outras falas de pessoas mais velhas, homens e mulheres, com o mesmo vigor e impacto. Vocês poderiam falar um pouco sobre a inserção dessas falas em off, sobre como elas foram produzidas? A presença delas já estava posta de antemão no roteiro? Aliás, o filme foi roteirizado?
Era também um desejo nosso coletivizar o pensamento do filme. Davi pensa consigo mesmo, com seu povo, com os xapiri, com os brancos, com a floresta. Estávamos em um contexto de festa com a comunidade cheia de convidados, e verdadeiras assembleias aconteciam – o que eles chamam de hereammu –, então, nos pareceu importante continuar a fala de Davi em outros corpos. O hereammu do Justino, por exemplo – o ancião que fala diretamente conosco–, é um dos momentos mais fortes do filme.
Antes das filmagens, fizemos o que chamamos de um roteiro de estudo. Gostamos dessa palavra em espanhol, guión, que sugere mais uma “guia” do que um roteiro pronto. Esse roteiro contava com trechos do livro que seriam uma espécie de fala do Davi. Nós nos debruçamos mais na terceira parte do livro, que também se chama A Queda do Céu e que faz uma confrontação mais frontal com o mundo dos napë e uma crítica xamânica poderosa ao sistema vigente. Hoje, percebemos que diversas coisas que estão no filme estavam apontadas nesse primeiro guión, sobretudo esses três eixos dramatúrgicos que guiam e que são vitais no filme: diagnóstico, alerta e convite.
Dito isso, o que abriu a linguagem e a gramática do filme foi a experiência vivida visceralmente em Watorikɨ e na festa reahu; ali, o filme foi ganhando carne, osso e sonho. Uma trilha estreita que foi devidamente aberta para a passagem do filme, e aprofundada e redescoberta na montagem junto ao Renato e na construção sonora do filme com Guile.
10. Sabemos que a coprodução do filme com a Associação Hutukara envolveu a realização de outros projetos que acabaram tomando forma com o processo do próprio filme: a produção de filmes de autoria yanomami e o coletivo de cineastas/comunicadores da Hutukara, por exemplo. Vocês podem comentar mais sobre esse processo?
A Hutukara Associação Yanomami é coprodutora do filme, e, assim como Davi, sempre esteve envolvida na imaginação deste filme. Filmamos A Queda do Céu com uma equipe híbrida entre indígenas e não indígenas, e super reduzida. A câmera entra nessa relação, assim como entram o corpo, os olhos e os ouvidos. Não se trata de manter algo imutável e distante, mas de mudar junto com aquilo que te afeta. Foi nesse sentido que se deu nosso encontro, nossa relação e aliança com Davi Kopenawa, a comunidade de Watorikɨ e o povo Yanomami. Ambos em um esforço mútuo de se encontrar, se provocar, se tensionar, se atravessar e de criar imagens e sons que segurem o céu à beira de colapsar. Durante as filmagens de A Queda do Céu, sugerimos um espaço de troca e formação com jovens realizadores Yanomami que trabalharam no filme em diferentes funções criativas com câmeras, som, pesquisa, etc, e também realizaram seus próprios curtas-metragens que circularam recentemente por diversos festivais de cinema e de arte no Brasil e no mundo. Os curtas são: Mãri hi – A Árvore do Sonho, dirigido por Morzaniel Ɨramari; Yuri u xëatima thë - A Pesca com Timbó e Thuë pihi kuuwi - Uma Mulher Pensando, ambos dirigidos por Aida Harika, Roseane Yariana e Edmar Tokorino. É fundamental destacar o importante e embrionário trabalho de Marília Senlle, que, antes, coordenou por anos o núcleo de formação com os jovens comunicadores yanomami, vários dos quais compuseram a equipe de A Queda do Céu. Destacamos, também, o fundamental trabalho da produtora Margarida Serrano e do coletivo Gatamaior na realização da montagem dos curtas junto com os realizadores yanomami.
A montagem quase final foi exibida para Davi Kopenawa e Bruce Albert, justamente na direção de esclarecer qualquer ruído ou má compreensão que o filme pudesse trazer. Felizmente, não houve.
Fizemos uma opção por colocar as questões que apareciam sobre imagens dentro do filme. Novamente, a cena do Justino é um exemplo. Um velho homem que, normalmente, não cederia sua imagem ao filme, dada sua idade avançada e a relação perigosa com a imagem, mas escolhe fazer isso e nos questiona se seu gesto valerá a pena. Mais do que fazer uma negociação fora do filme, escolhemos colocar essa questão dentro dele – uma questão para ser respondida por nós, público, e por nós, cineastas; uma questão que se coloca para o agora e para o futuro.
Sobre indicação na filmagem, o que ouvíamos de todos os presentes na festa era: mostrem a beleza e a força dos Yanomami!
11. Um dos poucos pontos de cisura do filme consiste na montagem, imagem e som, lancinante, de trechos de dois filmes, um de Peleshian e outro de Humberto Mauro, natureza e civilização. Vocês poderiam falar um pouco sobre essa dualidade e sequência na economia geral do filme?
Peleshian é um mestre, e toda sua obra aponta para um cinema cósmico, épico, lírico e perspectivista, no qual os seres humanos e não humanos – e todos esses povos juntos – coexistem nessa grande força que é a terra. Pensamos que seu cinema tem muitos pontos de diálogo com o pensamento de Davi, sobretudo com o que ele chama no filme de “vingança da terra”. São parentescos improváveis, pois um vem da Amazônia e outro da Armênia; assim, essas imagens de Peleshian evocam no filme uma espécie de visão, de alucinação xamânica dessa revolta da terra. Humberto Mauro é uma semente forte do cinema brasileiro; sua obra e iconografia trazem a natureza viva em primeiro plano. Foi um dos primeiros cineastas brasileiros a filmar a natureza, e aquelas imagens das árvores caindo trazem um caráter mítico e muito expressivo, que compõe e rima com toda a sequência.
12. Para encerrar, vocês gostariam de comentar algo sobre a relação de vocês, ou de seu filme, com os filmes anteriormente realizados sobre os Yanomami, a começar pela extensa produção do cineasta e antropólogo americano, Timothy Asch, ainda na década de 1970, passando pelo filme Xapiri, de Leandro Lima, Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos, Stella Senra e Bruce Albert, em 2012, e o filme A Última Floresta, de Luiz Bolognesi e Davi Kopenawa, em 2021, até chegar aos filmes feitos pelos próprios cineastas yanomami, como Morzaniel Iramari, o qual já tem uma premiada produção (podem-se listar Xapiripë Yanopë - Casa dos Espíritos, 2010; Urihi Haromatipë - Curadores da Terra-Floresta, 2014; e Mãri Hi - A Árvore da Vida, 2023, também inspirado no livro A Queda do Céu) e que, inclusive, também colaborou com o filme de vocês, se não estamos enganados, além dos filmes mais recentes e diversos realizados pelo próprio coletivo de cineastas yanomami. Enfim, poderiam refletir sobre a urgência de retomar e refazer essa “tradição” do cinema yanomami com o filme de vocês?
Morzaniel Iramari é um amigo nosso e um brilhante cineasta; ficamos encantados quando assistimos a seus filmes e, por isso, fomos procurá-lo para participar de A Queda do Céu. Então, tivemos a alegria de produzir seu belíssimo Mãri-hi, A Árvore do sonho, que, há mais de dois anos, circula pelo Brasil e pelo mundo. Agora, estamos produzindo seu próximo filme, um longa-metragem chamado Urihi, A terra-floresta, e iniciamos a pré-produção no início do ano.
A guerra e a festa são a luta, e nos parece que ainda há muita luta pela frente. A própria fala de Davi nos revela isso. Uma luta que nunca acaba porque os brancos insistem em não ouvir, em não sonhar, ou em só sonhar consigo mesmos, com seu projeto de habitar a terra. A terra Yanomami foi demarcada, nos anos 90, depois de muita luta; e isso não significa que a terra não continue sendo invadida. Os Yanomami estão, nesse momento, vivendo uma das piores crises sanitárias e humanitárias de sua história, causada por um agente novo, chamado narcogarimpo. Então, é muito difícil pensar em “fora da guerra”. É preciso uma ação de Estado imediata para a retirada dos invasores da Terra Indígena, e uma mudança radical nas políticas de Estado e governo. Num país e num continente dilacerado e em convulsão social permanente como o nosso, e num mundo onde a publicidade e as linguagens hegemônicas cada vez mais padronizam e orientam uma monocultura da comunicação e dos imaginários, nos sentimos mais livres para buscar outros caminhos e alianças. Creio que o cinema artesanal e mais combativo, por sua leveza estrutural e de orçamento, está testemunhando esse Brasil e essa América Latina complexa, em chamas, do século XXI!
A Queda do Céu trata de uma relação inegável entre os yanomami e os napë – isto é, nós, os brancos. Portanto, não se trata somente de mostrar a luta e a cultura Yanomami, mas também a cultura de destruição e exploração vigente naqueles que Davi chama tão precisamente de “Povo da Mercadoria”. São essas visões de mundo, de imagem e de cinema que estão em debate. Davi sabe perfeitamente nomear os povos que querem roubar a floresta dos Yanomami e os rastros que esses povos e seu sistema econômico têm deixado na terra. O desejo, então, é que a cultura yanomami seja vista como uma cultura viva, contemporânea e florescente, e como força geopolítica, mas também que a cultura napë veja a si mesma a partir de uma perspectiva xamânica e contracolonial.
Precisamos nos relançar com coragem no coração do nosso tempo e reativar o risco, repensar o espaço social e como o cinema pode estar inserido aí. Nosso desejo e desafio no processo de A Queda do Céu foi deixar nosso cinema se abrir e se modificar a partir da própria experiência e relação com os Yanomami e sua cosmologia, onde o “sonho” é uma questão primordial. Nossa busca foi ver, ouvir e explodir na tela o sonho, os xapiri pë e a luta do povo Yanomami! E, ao mesmo tempo, buscamos explodir na tela essa trajetória de um cinema que acreditamos que navega no desconhecido, que transita entre a materialidade e o espírito. Davi fala muito de suas palavras serem uma flecha no coração dos napë, os brancos, os não indígenas. O filme traz essas palavras na voz de Davi; traz os corpos, os cantos; e traz perguntas próprias do nosso tempo, urgentes de serem respondidas.