Era uma vez Brasília: conversa com Adirley Queirós

Propus uma conversa com Adirley Queirós para tentar elaborar melhor o impacto de Era uma vez Brasília. Muita coisa no filme era opaca, enigmática para mim. De outras eu guardava um forte sentimento, que tinha dificuldade de transpor, de significar. Comecei me apegando ao que reconhecia: às continuidades com relação à filmografia anterior, especialmente Branco sai, preto fica. Em primeiro lugar, à complexa imbricação entre tempos, traço central do trabalho de Adirley até aqui. Novamente ele responde ao projeto futurista que norteou a construção de Brasília com a criação de um presente distópico: o setor habitacional Sol Nascente, expansão da Ceilândia, neste filme inteiramente noturno, oferece locações para a "cidade do futuro" (e empresta, na dramaturgia, o nome ao “planeta” de onde parte WA, viajante intergaláctico). De novo o presente é um híbrido: entre um "passado que não passa" (na continuidade da relação traumatizante e violenta do Estado com os moradores das periferias, nas ruínas e restos de projetos fracassados...) e um "futuro já presente" (na extrapolação de características sinistras da atualidade, como a segregação, o confinamento e o controle dos pobres).

Essa complexidade marca o filme todo. Cada cena modula uma espécie de montagem temporal, no jogo entre cenários, figurinos, corpos, diálogos, objetos. Os espaços internos são muito densos: a nave espacial de WA (Wellington Abreu), o viajante que tem a missão de matar JK, mas se perde no tempo e no espaço e cai na Ceilândia em 2016, é precária e insalubre como uma cela de prisão brasileira (como defende Adirley nessa conversa). Se a temporalidade é complexa, a referência ao passado tornou-se menos precisa, menos “documentária”. Tive o sentimento de que a rememoração de opressões sofridas pelos atores periféricos não está, de modo tão direto, no nascedouro da ficção, como nos filmes anteriores. É como se a distopia estivesse de tal modo instalada que não fosse mais possível remontar sua história, suas histórias. Já presente em Branco sai, preto fica, ganha força a aposta na construção cênica, na performance dos atores nos espaços, trabalhada em sua duração. Imobilidade, isolamento, confinamento, perplexidade são sentimentos que assomam – em uma espécie de “cifra” da condição precária e periférica, elaborada nas imagens, talvez de modo mais alegórico. Resulta uma atmosfera soturna, paralisante, anoitecida, nessa fábula que privilegia o ponto de vista de personagens radicalmente às margens: Andreia, ex-presidiária; Marquim, cadeirante silencioso e enigmático; WA, também presidiário, que invadiu terras e foi condenado em seu planeta.

Paradoxalmente, se a rememoração não é tão decisiva (na dramaturgia, na criação dos personagens), a referência a processos políticos atuais é mobilizada de modo direto e contundente: a montagem sobrepõe às imagens da ficção registros sonoros de discursos e declarações de voto, referentes ao processo do impeachment contra Dilma Roussef¹. Ouvimos discursos de Dilma, de Temer, de parte da bancada do Paraná na votação do impeachment na Câmara dos Deputados. Se um filme como A cidade é uma só? produzia uma contra-memória que confrontava o apagamento do violento processo de remoção dos pobres do Plano Piloto em tempos passados, Era uma vez Brasília parece sondar um recalcamento em ato: sobreposto às imagens sombrias do presente narrativo (especulado em chave distópica), o discurso de posse de Temer, no final do filme, é a mais acabada expressão da denegação e do mascaramento (coroando todas as manipulações, distorções e a amnésia programada que cercaram o golpe de Estado)². Nomeado no refrão do rap de Marquim do Tropa, performado em cena, o recalque assombra o presente. Como se não houvesse, para tantas violências, um horizonte de elaboração e reparação. As agressões contra pobres, negros, periféricos (agravadas por machismo e misoginia), a condição precária induzida e reiterada pelos poderes, aparecem nas histórias de Andreia e Corina, presidiárias, "perseguidas" pela justiça. Confrontado a esse universo de “sequelados”, como diz Adirley, o discurso de posse de Temer, que fala em “ponte para o futuro”, aparece em todo o seu cinismo, ou melhor, em toda a sua perversidade. Ele é  montado sobre imagens da ponte metálica onde os protagonistas se encontram “para fugir do radar”, passarela que conduz do nada a parte alguma.

A especulação distópica inclui outros mundos, outros “planetas”. Mas não há alternativa alhures, não há "lugar nenhum" utópico: “Karpenthall é tipo isso aqui”, diz WA num diálogo com Marquim, referindo-se às ruas da favela do Sol Nascente, onde grande parte das externas do filme foi gravada. O nome de seu “planeta”, aliás, diz WA, poderia ser traduzido por “Sol Nascente”. Sugestão que, a um só tempo, desnaturaliza a realidade presente dessa expansão de Ceilândia, e propõe um futuro avesso a toda idealização: “o entorno nos espera” (dizia o letreiro final de A cidade é uma só?). Nesse sentido, é didática mas marcante a figuração daqueles que vem e voltam no trem da Ceilândia: os trabalhadores (ou seriam presidiários?) aparecem uniformizados, cabisbaixos, controlados, sua força de trabalho totalmente manobrada, sua subjetividade e seus deslocamentos cerceados pelo Estado.

Nas franjas, vivem os protagonistas, sem trabalho certo, se escondendo da polícia. São esses marginalizados e precarizados que irão no filme se insurgir contra "os inimigos", esses que, nas palavras de Marquim, “falam dar-te-ei, mas não dão nada pra gente”. Apesar de toda a perplexidade e do caráter teatral, simbólico, não naturalista de seu plano de ação, são eles que vão oferecer no filme alguma rebeldia, alguma resistência contra as “monstruosidades” do presente político brasileiro. Mas, na Ceilândia distópica de Era uma vez Brasília, nada se cumpre, nada se completa, como nos diz Adirley, na conversa da qual editamos alguns trechos, abaixo.

Quando o processo do filme cruza com a história política recente? Porque imagino que o projeto de Era uma vez Brasília e mesmo sua realização sejam anteriores, em parte, à deflagração do processo do golpe contra Dilma.

É anterior sim. Começamos a filmar em 2015. A última gravação para o filme foi feita em agosto de 2017. Foi um processo muito fragmentado. E muito influenciado por essa atmosfera, pelo que eu sentia em relação ao golpe, como a gente reagiu, como eu experimentei as manifestações. Eu tenho, sem exagero, mais de 150 horas de gravação de manifestações. Desde o começo do MBL (Movimento Brasil Livre). Então a opção de filme que a gente monta é totalmente influenciada pelo espírito do golpe, pela queda da Dilma, pelas primeiras medidas do Temer...

Dá para notar que se trata, em parte, de um trabalho de montagem: associar a ficção distópica à atualidade política brasileira, através da sobreposição dos áudios do impeachment. Mas em cena isso também se dá: um cruzamento entre a encenação ficcional e a documentação simultânea de manifestações (naquele plano longo com Marquim, tendo ao fundo o Congresso Nacional). Vocês fizeram muitas mudanças na concepção do filme, no roteiro (não sei se havia roteiro), para incorporar o processo político em curso?

Roteiro não tinha, tinha um argumento. Na minha experiência, vejo o filme como uma espécie de etnografia da ficção. A gente propunha a ficção, propunha aos personagens que entrassem no espaço da ficção – com roupas, ambientes, atmosfera, uma sugestão de como cada um estava no mundo – e a partir daí a gente filmava como etnografia: câmera parada, observando... O mote básico era assim: vocês estão presos. Todos vocês estão presos e não conseguem sair da prisão. O que iriam propor poderia ser, inclusive, memórias e alucinações presidiárias. Sempre o inimigo era o Estado, o governo Temer, e tinha uma ideia de que a gente não podia sair, que as cidades tinham virado cidades-prisões. Não tem roteiro e a gente grava no espírito do momento. E com um sentimento de que a gente não consegue criar uma reação, uma possibilidade de estar na rua que não seja a tradicional manifestação, ir pra frente do Congresso... como propor alguma coisa à margem desse lugar? Como pensar outro lugar para contar essa história?

Em que medida, neste filme, as histórias vividas pelos atores informam a criação dos personagens? A história de Andreia Vieira, por exemplo, está na origem do projeto?

A Andreia entra depois. O início é muito louco... Tinha uma coisa de comédia, com monstros, meio Spectreman, aquele seriado japonês. A gente começou filmando com o Wellington naquela nave. Toda noite a gente ia pra lá. Três meses tentando achar um lugar em que o corpo dele acreditasse naquela cena. Tinha a história de um parente dele, que dizia que o avô veio para Brasília, caiu na construção e estava enterrado debaixo do Congresso Nacional. E o Wellington criou a narrativa de que vinha resgatar o corpo do pai para ser enterrado, esse era o motivo da viagem no espaço. E todos os elementos que constroem aquilo se relacionam com o Sol Nascente, que é a expansão da Ceilândia, com cerca de 100 mil moradores. É considerada a maior favela da América Latina. E o personagem está envolvido com esse universo: invadir terra, matar alguém para ganhar um lote do governo... A Andreia entra num segundo momento. Ela é ex-namorada do Marquim, e ficava sempre no set com a gente. De repente ela entra, e a gente parte da história dela. Ela mata um cara com um taco de sinuca e vai presa. Andreia é ex-presidiária. Cheguei a criar um texto para ela, de 6, 7 páginas. Nessa proposta de filme, a Andreia seria uma narradora em off: “o Brasil vive o momento tal, existe uma catástrofe, a gente não consegue reagir, toda proposta de reação cai na Lei Antiterrorismo” etc... Ela gravou esse texto, mas na montagem eu tirei tudo.

A história do ator Marquim do Tropa não vem à frente, como em Branco sai, preto fica. Quem é o personagem do Marquim?

O filme mudou muito no processo todo. Inicialmente o Marquim seria um cara que foi abduzido, cuja memória foi sequestrada. Ele seria a memória da Ceilândia, teria toda a memória do processo histórico, que poderia ser perigosa. Ele vaga procurando pela memória. No processo todo ele consegue enxergar onde estão os monstros, onde está a monstruosidade das coisas. Os monstros invadiram a Terra, o Congresso. Ele tinha um texto enorme também. Fui tirando essas coisas.

Gostei muito do aproveitamento dos espaços da cidade (o metrô, a passarela metálica) na criação da atmosfera. Mas os espaços criados, os interiores das naves, são especialmente potentes. Ficamos confinados nesses espaços, de precariedade deliberada, elaborada. A gente permanece com WA, experimenta o interior da nave na duração. Essa experiência de aprisionamento parece cifrar, de algum modo, a própria condição periférica. A nave é mais do que uma nave, ela tem a ver com a experiência social...

A gente pensava assim: a nave podia ser uma cela de prisão. Essa nave é um espaço em que se fica confinado 24 horas, muito agoniante. Nesse processo todo eu conversei muito com ex-presidiários. Muitos moram na minha rua, caras mais velhos, com 50, 55 anos, que hoje estão desempregados, muitos estão no crack. O que fazem os caras que estão presos? Eles começam a viajar, a alucinar. Eles têm sonhos recorrentes de voar, de correr... A gente pensava naquele espaço (da nave) totalmente construído como se fosse uma cadeia. Tanto que o investimento de som é baseado nisso: som de chaves, porta de cadeia, tem um cachorro intergaláctico, da polícia, que vai invadir... São sons que a gente construiu para criar uma atmosfera de tensão, de confinamento, fechado ao extremo. Importava a experiência, a sensação ali dentro: sono, cansaço, tédio, raiva, angústia, o que fosse. Não como na narrativa clássica, em que uma coisa conduz a outra, que conduz a outra, mas uma experimentação com o personagem mesmo. Chegou um momento em que o Wellington ficou ali 2, 3 horas, a câmera rodando, colada nele, tudo desligado, numa oficina escura, ele nem via a Joana (Pimenta, fotógrafa), e a gente não conversava no set mais. “Agora você se vira, tá preso, tenta se comunicar, tenta reagir no mundo, teu mundo é essa cela”. Uma experiência profunda para nós. Porque quando você não dá um roteiro para o cara, uma motivação da cena, ele tem que criar e reagir. Para uma tentativa de maior diálogo com o espectador, a gente chegou a pensar, no roteiro de som, em criar algo como "o Brasil acontecendo em 50 anos". Copa de 70 etc., ele ouvindo tudo pelo rádio. Mas acabamos tirando tudo isso. Pensamos que seria mais interessante chegar ao esgotamento dessa narrativa (na nave). Não sei se é alucinação minha, mas penso que se a gente recorresse a essa narrativa dos 50 anos, é como se fosse possível reagir ao momento que estamos vivendo hoje. O filme queria pensar assim: se a gente perdeu, se fomos derrotados, é hora de reconhecer que estamos numa imobilidade. A partir dessa imobilidade, para onde a gente pode ir? Nossa preocupação era como a história avança sobre nós, e a gente está cada vez mais confinado, cada vez mais preso, isolado. Os três meses filmando na nave foi uma aposta nesse sentimento. Tem gente que gosta, mas muita gente não... A sessão em Brasília foi muito difícil. Mas acho que as pessoas vêm com a expectativa de "fora, Temer", sabe?

Nisso, apesar das diferenças entre eles, Era uma vez Brasília e o curta com os acampados do MST (episódio de uma série para a TV pública, Fantasmas da casa própria) se aproximam, a meu ver. São filmes "anti-catárticos", não tem resolução, nem clímax. O filme com os acampados se detém muito mais sobre os deslocamentos difíceis, a precariedade da vida, o ônibus que não vem, o ônibus que quebra, a volta para o acampamento depois da derrota, do que sobre a manifestação propriamente dita, no dia da votação do impeachment, em Brasília.

Eu fiquei muito tempo com eles (no Acampamento Dom Tomás Balduíno, em Goiás), acabei trabalhando com um grupo, do Rafael Villas Bôas, da Universidade de Brasília, que faz agitação e propaganda, agitprop, lá dentro. Eles são um grupo à margem, digamos assim, do grupo forte do MST. Me interessava muito a força que aquelas pessoas têm... de organização, mesmo na precariedade. E os rostos deles, daquela turma mais velha, que está deslocada desses discursos todos. Esse filme com o MST influenciou radicalmente a montagem do Era uma vez Brasília. Porque na rua tinha muita gente, da UNE, do Levante Popular da Juventude... E o grupo do MST ficou 5 horas esperando o ônibus, mais 5 horas para chegar, cansados, sem comer nada, quando eles chegam na manifestação, alguns deles diabéticos, com problemas de locomoção, vinha o Levante atrás deles, gritando assim: "Quem não é tucano, quem não é tucano, tira o pé do chão!". Para todo mundo pular. E os velhinhos não conseguiam pular. E o MST abriu para o Levante passar. Uma coisa absurda, né? A falta de sensibilidade da nossa esquerda, foi constrangedor. Então o filme do MST me fez pensar como é viver esse lugar de desencontro, mas ainda assim de possibilidade...

Você contou que Marquim seria a memória (sequestrada) de Ceilândia, coisa que não é evidente no filme final. Mas tive um sentimento que tem a ver com essa “desmemória”: a ficção parece, neste filme, mais "despregada" do passado documentário. Como se a distopia estivesse tão instalada que já nem fosse possível remontar a história de como chegamos até aqui. Talvez o investimento agora seja mais alegórico... Mas, certamente, nas escolhas de encenação, o filme cifra a experiência (como você falou sobre a nave: espécie de prisão do presente, das cidades, dos corpos periféricos...)

Acho que você tem razão. Na montagem, por exemplo, não aparecem esses elementos de um passado mais explícito. Tem um pouco desse jogo na fala de Andreia... Mas sim, acho que a gente quis deixar tudo mais vazio. Como se esse momento agora partisse do zero. Como se as coisas fossem tão absurdas que estivéssemos numa noite eterna. Não tem uma cena de dia. Muitos planos fechados. O filme despregado do lugar mais documental da cidade. E muito mais performático também. Apostamos muito nas internas, no enquadramento, nas luzes que estão montadas, na atmosfera, em como o tempo se prolonga nesses espaços confinados, e se isso pode nos constranger também. Mas eu não tinha clareza de que o filme era tão incômodo... Tem tanto subtexto que eu pensava que haveria uma compreensão. Mas é difícil as pessoas se apegarem aos personagens. Eles nem completam as ações, vão e param, vão e param... Um exército de sequelados, que é o exército da gente. Tinha também a ideia de que as coisas aqui não se cumprem nunca, e o pensamento sobre o que restaria filmar nesse momento: com essas pessoas, com a minha experiência de filme, com o limite de orçamento que a gente tinha, o limite de equipe. É um filme feito sempre com 3, 4 pessoas, como um documentário. O que poderíamos criar de possibilidades de cinema a partir daí? Que esse limite nos motivasse na criação do imaginário de um filme. Tinha uma certa arrogância, talvez, de apostar que se poderia contar uma história sem tanta fala, sem tanta narrativa, apostando no silêncio, na duração... Não um filme experimental, mas outra experiência de filme.

Acho que o que funciona melhor é justamente algumas performances nos espaços. Como se essas cenas em si mesmas dessem conta de exprimir, de cifrar, a atmosfera do momento... Ainda tenho dúvidas sobre a associação mais direta ao golpe, sobre o que resulta dessa montagem. É paradoxal: por um lado é o seu filme menos "documentário", menos enraizado, e que elabora a experiência periférica de uma forma mais alegórica, apoiada na construção cênica; e, por outro, é o que lida de forma mais direta com a atualidade, com o momento político em curso.

É engraçado ouvir isso, porque o que tivemos mais dúvida, sempre, foi com relação aos áudios. Eu tenho uma cópia desse filme que não tem os áudios do golpe. Tinha medo de parecer uma adesão dilmista. Sou contra Temer, mas pró-Dilma não... É diferente. A tentativa era transformar Temer numa monstruosidade. De todo jeito, foi um risco. Queria experimentar com o tempo dilatado. Um grupo de pessoas em um espaço periférico num filme mais existencialista... acho que tem um clima existencialista, devagar. E uma tentativa sim de pensar no momento político brasileiro. Qual é o lugar que a gente ocupa numa disputa dos espaços.

Você considera esse filme mais fiado em imagens prévias, mais debitário de referências, do que os trabalhos anteriores?

O que eu queria era sobretudo pensar uma ambiguidade do tempo. Não tinha uma imagem prévia de como isso ia acontecer, foi se construindo. Mas tinha na cabeça muito mais imagens da literatura do que do cinema. Sobretudo As crônicas marcianas (Ray Bradbury). Talvez tivesse um pouco de imagem de faroeste, a montagem do bang-bang: um encarando o outro, o tempo que isso toma, o vento que sopra e tal. A gente conversava muito, passava horas, e depois filmava, movido por aquela atmosfera. E não tinha uma decupagem prévia, ia experimentando a câmera em vários lugares. "Hoje tá ventando muito, vamos filmar desse lado". Então não havia tantas referências imagéticas. Mas tinha a vontade de buscar essa atmosfera: de uma imobilidade política. E de uma descrença em relação ao corpo político da esquerda na rua. Que corpo é esse que está na rua? Que narrativa é essa que se cria? A ação drástica, extrema, violenta, está muito mais no Facebook do que no real. Algo só entre nós, nada saía daquela bolha. As imagens procuravam esse sentimento: esse corpo que está na rua é um corpo anacrônico, que não produz consequência nenhuma. Mas aquele outro corpo, do Marquim, da Andreia, também está perdido. Ele representaria a possibilidade de um caminho de esquerda. Ao mesmo tempo são pessoas que estão à margem, que não estão no centro das discussões, da rebelião das ruas... a esquerda são outras pessoas. Esses personagens no filme estão num estado tão estranho, é quase telepata. Aquela história: essa fala de cinema aprisiona os personagens de periferia. Por mais que eles falem, estão falando como a classe média. Como que a gente pode negar isso? Como deslocar suas falas? Porque tem uma demanda da pauta política. Esse corpo da periferia já foi pautado, a intermediação nossa, enquanto cinema, enquanto literatura, cria essa pauta. A gente vira explicador do processo. Eu tenho medo disso. Será que a gente pode radicalizar mais? Que as falas tragam outros sentimentos? Talvez o não-dito, as conversas atravessadas, tragam alguma coisa... Tudo isso a gente queria para o filme.

Currículo

Cláudia Mesquita

Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Pesquisadora do cinema brasileiro, com mestrado e doutorado na ECA/USP. Publicou, com Consuelo Lins, o livro Filmar o real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo (Editora Jorge Zahar, 2008), e organizou, com Maria Campaña Ramia, El otro cine de Eduardo Coutinho (Cinememoria, 2012), publicado no Equador. Em 2018-2019, desenvolveu, na UFC, a pesquisa de pós-doutorado "O presente como história - estéticas da elaboração no cinema brasileiro contemporâneo".

Como citar este artigo

Como citar este texto: MESQUITA, Cláudia. Era uma vez Brasília: conversa com Adirley Queirós. In: forumdoc.bh.2017: 21º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2017. p. 165-172 [Impresso]; p. 167-174 [Online].

Notas

1. Há também um trecho do discurso de JK na cerimônia de inauguração de Brasília, em 1960.

2. "O momento é de esperança na retomada do Brasil. A incerteza chegou ao fim. É hora de unir o país e colocar os interesses nacionais acima dos interesses de grupos. (...) Tudo trans-correu dentro do mais absoluto respeito constitucional. Demos esse exemplo ao mundo. (...) Não prevaleceram vontades individuais, mas a força das instituições, sob o olhar atento de uma sociedade plural e de uma imprensa inteiramente livre".