Frame do filme Interior, de Elisa Mendes e Maria Lutterbach (MG, 2022)
Histórias esquecidas. Histórias que parecem pequenas demais para serem guardadas nas grandes narrativas do cinema. Histórias que parecem tentar guardar um instante, numa pequena cidade ou num lugar largado às ruínas, para se deixarem ser filmadas.
No interior de Minas Gerais, uma menina, Laura, lista para a câmera as propriedades das ervas de seu jardim – o mesmo jardim da sua mãe, da sua avó e da sua tia. A câmera tenta acompanhar a menina e seu olhar: filma suas mãos, que buscam identificar diferentes folhas; se agacha junto dela para ficar na mesma altura de seus olhos. Laura interroga o antecampo que não vemos, mas escutamos, sobre as informações que passa para nós, espectadoras, como que buscando confirmar se suas explicações estão corretas, relembrando o nome de umas e outras plantas e seus poderes de cura.
O curta Interior, de Elisa Mendes e Maria Lutterbach (MG, 2022), não entra de uma vez na casa dessa família. As diretoras se aproximam aos poucos das histórias e saberes dessas “macumbeiras da floresta”, como Dona Maria define (as bruxas atuais). O filme não tenta dar conta narrativamente do contexto complexo desse lugar e dessas mulheres – pouco sabemos delas, para além dos nomes e dos fragmentos de saberes e histórias contadas. Ao invés disso, a câmera se aproxima devagar e de forma sensível, retratando uma parte da vida dessas personagens que elas estão dispostas a compartilhar. Porém, vemos o espaço precário que habitam e a forma como dominam os elementos da terra que as circundam. Dentre os depoimentos, há algumas referências sobre o difícil embate entre formas de medicação natural (antiga bruxaria), que aquelas mulheres manipulam com sabedoria, e a medicação farmacêutica (a ciência), dos antidepressivos que parecem imprescindíveis para a sobrevivência de Pinha, uma das integrantes da família.
Laura, pequena curandeira – filha, neta, sobrinha –, olha para o jardim e de volta para a câmera, guardando no presente um conhecimento que pode se perder fora da casa, um dia, no futuro – como já se perdeu tanto no passado. Já no interior, algo se preserva. Uma dinâmica familiar própria, que guarda um saber empírico e histórico: uma alquimia mundana, específica da experiência próxima das ervas cultivadas e suas funções curandeiras. Entre fragmentos de sonhos e pesadelos narrados oralmente pelas vozes femininas, a câmera consegue captar significativas nuances da casa, da família e dessas mulheres que prologam uma tradição. Em meio ao abandono, à escassez, à vulnerabilidade, ao ímpeto de desistir, filma-se – e se é filmada.
Uma parte da memória perdura, num tempo de recolhimento e de olhar para o passado que, no filme, nos é presente. Nesse Interior, nos aproximamos de um mundo lento, cujas ervas descansam por dias e meses para, então, ser cura. Um mundo solitário e afetuoso que dá a ver sopros de vida e sofrimento, de geração em geração que, apesar de tudo, sobrevive. Se o mundo encantado dos saberes que a ciência e o afã racional tentou apagar ainda resiste, é porque um senso de comunidade, um elo com um passado comum, constitui-se nas crenças daquelas mulheres numa ancestralidade encantada que se põe em cena na disputa contra a biopolítica capitalista, colonialista e machista: os remédios psiquiátricos nos ultrapassam.
Frame do filme No vazio do ar, de Priscilla Brasil (PA, 2022)
No norte do país, em Belém, Priscilla Brasil, diretora e narradora de No vazio do ar (PA, 2022), investiga a precariedade da aviação na região. O filme parte de uma busca incessante da cineasta para entender o desejo de voar, reunindo informações fragmentadas de sua memória e arquivos do seu tio, morto num atropelamento no aeroporto em que trabalhava.
Patrícia, pilota e uma das entrevistadas do filme, conta sobre a limpeza de seu avião como se falasse da limpeza de sua própria casa. “Colocar sujeira pra debaixo do tapete é coisa de homem”. Ela fala sobre voar como um sonho que, se ela abandonasse, estaria desistindo de si mesma. Aos poucos, entendemos que esse sonho não é tão simples e que uma rede maior de poder interfere diretamente na profissão dessas pessoas e na vida social, cultural e econômica de tudo que a circunda – envolvendo garimpo ilegal, tráfico de drogas e disputas entre milícias.
Patrícia é uma entrevistada que, aparentemente, não tem nenhuma conexão com o tio da diretora, assim como outros personagens do filme. Isso se dá porque muitos dos pilotos que trabalharam com ele já estavam mortos, e restou à cineasta traçar outras linhas de conexão para dar prosseguimento ao documentário. É nesse fracasso da busca que o filme expõe seu processo e ensaia uma frustração com as imagens. Priscilla se pergunta: existe vida para além das fitas cassetes que mostram uma família feliz, com um tio vivo que alegra a casa? Seu tio existiu para além daquelas gravações?
Ao duvidar da natureza das imagens que a fizeram realizar o filme em primeiro lugar, a diretora filma, a partir do encontro com outras personagens, seu luto infinito e sua indignação – com a morte, com o fim das imagens, com a falta de estrutura num país em que não se pode sonhar. Se você sonha, você morre – ou é deixada às moscas, numa pilha de sucatas.
Ao final, a cineasta descobre que o único vestígio da passagem de seu tio pelo aeroporto (uma placa com seu nome) é retirada do local. O aeroporto está abandonado, é um grande vazio inabitado – como um Brasil entregue a homens poderosos inomináveis (ninguém sabe por que o projeto do parque que seria inaugurado no lugar foi abandonado) que ocupam o espaço público e impedem qualquer possibilidade de existência coletiva na cidade. Trata-se de uma paisagem destruída, sem explicações, tomada por um poder que corrói aos poucos as vidas ao seu redor – uma máquina silenciosa, na qual nem as imagens podem mais durar. Resta uma memória lacunar e uma busca constante, eterna, curiosa, que guarde alguma coisa desse passado recente de modo a impedir que ele desapareça por completo.
Os dois filmes trabalham com a matéria fugidia da memória. Uma memória que pode enganar pelas narrativas de uma vida que já se foi, de alguém que existiu naquelas imagens e, anos depois, reaparece no cinema, pelos olhos da sobrinha, sobrevivendo apenas por vagos vestígios, por histórias paralelas que ligam algumas estradas e linhas de voo. Ou, por outro lado, uma memória contada, passada de mãe para filha, de avó para neta, da neta para nós; contada entre as folhas do jardim e um café da tarde, entre um fragmento de existência e outro, que vai se reinventando e virando um conhecimento outro – agora filmado em sua crença de que deve sobreviver às máquinas sem pele.
Pode uma vida existir apenas em imagem? Pode um conhecimento de outras vidas ser guardado no cinema? Uma imagem pode passar de geração a geração. Ela pode envelhecer, ser alterada pelos ruídos do tempo, ser guardada, resguardada, até fazer algum sentido numa nova comunidade que ainda virá, ou voltar a fazer sentido para uma que já se foi. A imagem também pode materializar a falta, uma ausência inenarrável de um presente que só existe na memória. E assim ela lampeja, brilha uma centelha que nos inspira e nos move. Uma pessoa que se foi, uma cidade que já não existe mais, um sonho que precisou ser esquecido, uma crendice desfeita. Tem algo nas imagens guardadas, e depois retomadas – seja por meio do arquivo, do testemunho, seja por meio da filmagem presente que olha para trás –, que ecoa uma vontade de guardar o que for possível, de lembrar do que podemos, de dar um jeito de permanecer aqui, mesmo que o tempo – e às vezes o próprio cinema – não seja tão maleável a essa permanência.
Estes são filmes que querem continuar. Traçar mais um retrato, gravar mais uma risada solta. Tentar mais um nome e um saber que possa ainda estar vivo, contando histórias, reinventar velhas disputas: como as das ervas contra os remédios manipulados. Tentar voltar naquela fita cassete que um dia registrou uma felicidade que já não volta mais, ou naquele chá que, se bebido, vai curar uma ferida aberta. Continuar, dar um jeito de prosseguir crendo num comum, em meio ao esquecimento, ao que apodreceu e à vontade de desistir. Resistir ao trabalho do tempo e da terra, ou seja, da história, que apaga tudo aos poucos, é continuar filmando, é persistir no cinema que recria elos frágeis, porém vitais.
Currículo
Larissa Muniz
é pesquisadora e realizadora. No mestrado (UFMG), pesquisa narrativas experimentais feministas das décadas de 1970 e 1980. Dirigiu os curtas-metragens ela viu aranhas e eu vi nos seus olhos, da janela, eu vi, que era o fim, contemplado pelo 6º Prêmio BDMG Cultural/FCS. Também atua nas áreas de curadoria, crítica e montagem.
Roberta Veiga
é professora da UFMG. Coordenadora do grupo de pesquisa Poéticas Femininas; do GT Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual (COMPÓS); do ST Cinemas Mundiais entre Mulheres (SOCINE). Autora de artigos e do livro recente de poemas feministas Cavalo e Caramelo (Quintal Edições, 2022).