Gaia

traduzido por Déborah Danowski

No início do ano, bem no início do ano, essa chuva de passarinhos mortos que caiu sobre uma pequena cidade americana, e, logo depois, sobre uma outra cidade americana, e logo depois na Suécia, e logo depois na Itália... Não sei se continuou depois, mas o impressionante foi o tom com que esse acontecimento foi recebido – um tom bastante diferente do caso, por exemplo, de um rio no qual todos os peixes morreram. Porque neste último caso, sabemos que eles foram vítimas de uma poluição. Mas no caso dos passarinhos, foi como um sinal, um signo – porque os pássaros são livres, normalmente podem escapar de uma poluição, mas eis que se abatem mortos, em massa, como se mais nada estivesse protegido da nossa natureza. 

Eu fiquei impressionada com esse acontecimento, como todos os que ouviram a notícia. Bem, eu ouvi os cientistas desse tipo de serviço dizerem que tinha sido apenas uma coincidência: “Vamos circular, não há nada para ver aqui”. E sem dúvida eles tinham razão. Mas o poder dos signos é justamente de nos despertar para nossa sensibilidade. Os signos testam nossa sensibilidade. E o que havia nessas reações, pelo menos tal como eu as senti em mim, não era só um remorso, no sentido de pensar “O que fizemos desse mundo em que nós vivemos?”. Era também, muito profundamente, uma inquietude, uma profunda inquietude, como se alguma coisa estivesse em vias de acontecer, como se fosse um signo antecipatório.

Então é sobre isso que eu queria refletir junto com vocês, sobre essa novidade, da qual no fundo alguns cientistas e outros já estavam a par há várias décadas, mas que para muitos de nós se impôs apenas neste 3º milênio, que já começou aceleradamente. Há muito tempo (isto é, há muitas décadas, não quero dizer muitos séculos), nós sabemos – e os movimentos verdes, ecologistas, de proteção da natureza etc. estão aí para manifestá-lo –, e há muito tempo sentimos uma culpa ou um remorso em relação àquilo que ‘nossa civilização’ fez à Terra, ao tipo de devastação, de poluição que ela inflige à Terra. Nós conhecemos a imagem, é uma imagem bastante clássica, que aliás tem duas faces: nós estamos pisoteando nosso berço; a humanidade pisoteia seu berço de nascença. E isso pode ser visto como uma agressão, e coexistir com uma imagem de remorso. Também pode ser no sentido de dizer que o destino da humanidade está  nas estrelas; ela pisoteia seu berço porque deve deixar seu berço – e aí temos quase uma imagem freudianoide de ruptura com a fusão, de desligamento, de espírito de empreendedorismo etc. Todas essas eram imagens que coexistiam, pode-se dizer, desde que apareceu uma certa sensibilidade para o custo daquilo que chamamos progresso. 

Mas hoje uma outra imagem, inteiramente distinta, se impõe: aquela que eu associo, de minha parte, não ao nome Terra – "nós devastamos a Terra", no sentido de que somos criaturas terrestres e devastamos o habitat, a existência mesma de outras criaturas terrestres, portanto quando se trata do conjunto dos habitantes atuais da Terra, eu falo em Terra –, mas há uma outra palavra. Eu emprego aqui uma outra palavra porque é preciso dar um nome que crie um sentido de novidade, um sentido da importância dos problemas. Para isso emprego a palavra Gaia.

Gaia. É assim que eu tento pensá-la. Digo "tento pensar", porque não é fácil… Al Gore deu esse belo título a seu filme, Uma Verdade Inconveniente. Uma verdade inconveniente é aquilo que eu chamo de "a intrusão de Gaia em nossas histórias". Por que intrusão de Gaia? Gaia foi denominada assim pelo cientista original e herético James Lovelock, que trouxe à cena a solidariedade, a couplage entre enormes processos. Não se trata de uma floresta, um rio etc...,  mas de processos de viventes, e os viventes são, antes de mais nada, as bactérias, os microorganismos, tudo o que nos escapa e que por vezes nos mata. É uma multidão anônima de micro-organismos, mas também o clima, os oceanos, as terras férteis, tudo de que nós dependemos mas que tratamos como se fosse auto-evidente. E Lovelock mostrou sua interdependência; quer dizer, propôs fazer dessas coisas “um vivente”. Mas eu prefiro dizer “um ser”. Um ser no sentido de que não é apenas uma soma de processos gigantescos, mas também alguma coisa que, diante de uma variação, ele (Gaia) reage por repercussão, quer dizer, não como uma bela totalidade harmoniosa, mas com suas respostas próprias. São respostas dele, que lhe pertencem, não são simplesmente relações de causa e efeito.

E Gaia, que esteve mais ou menos estável desde que os humanos existem, parece ter entrado num regime que vai na direção de uma profunda instabilidade. É o que se chama de ameaça climática, desordem climática. Eu me recuso a dizer “a crise climática”, porque, quando dizemos “crise”, é como se depois da crise houvesse o restabelecimento da tranquilidade: é uma boa crise, vai passar. Não: aqui, se Gaia entrar em crise, não vai passar; quer dizer, se o ponto de inflexão (tipping point) for atingido e ultrapassado, então o futuro é quase inimaginável. Portanto, não é uma crise, embora o ponto seja um ponto crítico (no sentido da termodinâmica). Mas esse ponto crítico não separa dois estados estáveis, ele separa nossa situação de algo difícil de imaginar.

Então, dar o nome de Gaia, ao invés de Terra, é dizer que o que faz uma intrusão em nossas histórias é um ser de uma potência tal que não podemos domar, um ser que nos ultrapassa, que nós antes ignoramos porque sua estabilidade permitia considerar aquilo de que gozávamos como se estivesse garantido, mas que agora nos mostra sua dimensão hiper-irritável – irritável no sentido de que nós somos capazes, não de dominá-la, mas de “ofendê-la”, ou seja, de provocá-la, fazer com que ela abandone esse regime de estabilidade. E Gaia, enquanto ser que existe pelas repercussões de todos esses processos uns sobre os outros, torna-se um sujeito.

A novidade em relação à Terra é que, quando falávamos da Terra ou da natureza, nós é que éramos os sujeitos. Nós éramos os sujeitos, no sentido de que éramos culpados, tínhamos deveres, era nossa história que era o problema – pelo menos no imaginário do europeu do século XIX, e sobretudo do século XX. A partir do momento em que Gaia se manifesta, a partir do momento em que Gaia coloca um problema, a partir do momento em que Gaia faz uma intrusão, não somos mais os únicos sujeitos da nossa história; devemos, de uma maneira ou de outra, aprender a compor com esse ser temível; e, em relação a esse ser, podemos sempre sonhar que a coisa vai se resolver, que é só uma crise, mas na verdade nós sabemos que não é – e os cientistas que nos dizem isso foram fortemente atacados por aqueles que não querem saber o que está se passando; mas, se bancarmos os avestruzes, a coisa não vai se resolver com apenas algumas modificações adaptativas.

Eu escolhi chamar esse ser de Gaia, não apenas porque era o nome dado pelos cientistas que a fizeram reaparecer, que a fizeram aparecer entre nós, mas também porque esse é o nome de uma divindade grega, mas uma divindade antiga, uma divindade dos povos camponeses, de uma época anterior à dos povos das cidades, que eventualmente aprenderam a ter medo da natureza – porque, creio, é uma reação de habitantes das cidades, por exemplo, ter medo dos insetos.

Pois bem, Gaia era então uma divindade que não era como Venus, Jupiter (estou dando os nomes latinos), Juno etc.; não era uma divindade antropomórfica, sedutora, vingativa, que exige que a reverenciemos, que exige reparação etc. Não não: Gaia não é uma divindade psicológica. Gaia é uma potência impessoal, parece, e temível, uma coisa em relação à qual é preciso saber compor, saber não ofendê-la, saber manter uma relação da qual pudéssemos dizer que é uma relação de paz com ela. É a ofensa, e não a vingança, que é temível.

E penso que Gaia nesse sentido é um nome bastante próximo de Terra, Mãe, de Mãe-Terra, da qual começamos a ouvir falar, e que alguns povos continuam a reverenciar, notadamente povos ameríndios. Porque esses povos ameríndios mesmos nunca tiveram a ingenuidade de pensar que essa Mãe-Terra, que os nutre, é boa como uma boa mãe ocidental, que vive para o seu filho. Não não. Para eles, uma mãe pode ser ofendida, pode ser terrível. E portanto, a Mãe-Terra tem uma dupla face, de nutriz e de temível – e isso é algo novo para nós, porque para nós a mãe era para cuidar dos filhos; mas não é novo para eles, o fato de que tenha várias faces. Mas, dado que aprendemos a pensar as mães como gentis – exceto, evidentemente, Medéia – então é preciso dar esse nome para nos lembrar que o remorso não basta, e que Gaia tampouco se vinga. Pois a questão não é a culpa, porque os povos pobres e o conjunto de nossos congêneres que vivem na Terra vão pagar como nós – e portanto Gaia não se vinga dos culpados. Não se trata de culpa, não se trata de remorso. Não são esses os sentimentos pertinentes.

Então, o que é pertinente em relação a isso? Não estou dizendo pertinente no sentido de que haveria uma garantia de que vamos sair dessa; há razão de estar inquieto. Mas o que me interessa é o sentimento profundo – e nós já vimos, ele está hoje um pouco em toda parte – um sentimento profundo de impotência, de abatimento que nos toma frente a essa situação. Alguém disse, de maneira muito inteligente, que é mais fácil pensar o desmoronamento da civilização, pensar o fim do nosso mundo – há uma porção de ficções distópicas que nos mostram um mundo tornado inteiramente bárbaro –, é mais fácil pensar isso do que pensar como iremos mudar. Como iremos mudar, isso parece utópico. Que vamos todos mergulhar na barbárie etc., isso é factível, é pensável – aliás, já vemos os processos que nos levam a isso; eles são perceptíveis, sensíveis.

E eu queria dizer que esse sentimento de impotência, de certa forma, é justificado, no sentido de que há uma impotência, que nunca estivemos – e é isso que sempre me impressionou nessa ideia de Gaia – nunca estivemos mais mal equipados para enfrentar essa Questão (com “Q” maiúsculo) de como modificar a maneira mesma como fazemos a história. Estamos mal equipados, no sentido de que, justamente, nas últimas décadas do século XX, mostrando uma grande determinação, os governos que poderiam ter feito alguma coisa remeteram esse poder pertinente à OMC (Organização Mundial do Comércio) – quer dizer, puseram-no sob o signo da liberdade de circulação e de investimento. Portanto, as localidades abdicaram de todo poder de fazer o que podem por elas. As ciências perderam tudo que elas podiam ter ainda de autônomas etc.; a isso se chama economia do conhecimento: o que faz as vezes de produção científica hoje é a corrida pelo patenteamento, quer dizer, uma lógica de tipo industrial.

Quanto ao capitalismo, que é agora aquilo que transcende nossa história, aquilo com o que devemos nos haver, mesmo se há crise etc., nós nos damos conta que a crise que estamos sofrendo há alguns anos não mudou nada nas relações de força. Pois bem, esse capitalismo é literalmente incapaz, não equipado para nos ensinar aquilo que devemos aprender para compor com Gaia. Não é má-vontade, é simplesmente porque isso implica uma relação com o tempo que não é a sua. O capitalismo está equipado para detectar, especular e lucrar com todas as oportunidades. Para ele, as desordens que se anunciam são fontes de oportunidade, mas não de pensar o que isso exige de nós para fazermos algo diferente.

Portanto, não somos aparelhados para aprender a prestar atenção. Lembrem-se que há apenas vinte anos, os que se inquietavam com os estragos daquilo que se chamava desenvolvimento eram chamados de irracionais. E ainda hoje, diante desse tímido "princípio de precaução" adotado pelos europeus, os cientistas, notadamente os cientistas da academia de ciências de vocês¹, disseram: isso é timidez, medo, é preciso saber arriscar, o destino do homem está nas estrelas etc.; é preciso saber arriscar. Mas disseram isso sem precisar quem era colocado em risco pelas inovações técnico-científicas – certamente não eram eles. Mas disseram: é preciso saber arriscar, isso é da humanidade (porque o cientista desse tipo de escola tende frequentemente a identificar sua posição com a posição da humanidade).

Portanto, se há algo de que creio estar certa é que, por enquanto, e se confiarmos naquilo que se chama de capitalismo verde, não escaparemos da barbárie, ou então de uma tirania, uma tirania dos especialistas que irão gerir a penúria, no sentido de que para viver vai ser preciso merecer, no sentido de “pior para os que ficaram para trás, pior para as bocas inúteis” — os especialistas no poder. Eu vi do que era capaz essa expertise, ao ler algumas falas onde eles diziam: é preciso começar suprimindo os cães e os gatos: são bocas inúteis. Bem, depois começaremos a contar as outras bocas inúteis. Entendem o que isso significa?

É por isso que me incomodo um pouco com os chamados teóricos do decrescimento, por causa desse caráter abstrato do imperativo do decrescimento. Por outro lado, evidentemente, o que me interessa é algo muito mais dinâmico, são os objetores do crescimento – mesmo que tenham uma ligação com os teóricos de decrescimento. Porque os objetores do crescimento, sob diferentes formas – quer eles se chamem ou não com esse nome, objetores do crescimento –, eles buscam fazer coincidir, e buscam nos mostrar que podemos fazer coincidir maneiras de viver junto, de trabalhar junto, maneiras de viver no sentido concreto do termo, de produzir também, e que exigem um pensamento, uma imaginação, a criação de um entendimento com aquilo com o que nós vivemos e entre nós, praticando no fundo o Reclaim. Esta é uma palavra que aprendi com os ativistas americanos, e de que gosto muito, mas que não consigo traduzir bem, práticas de reclaim. Reclaim é se reapropriar, é também curar, é também tornar-se novamente capaz. Em francês isso dá réclamer², mas vocês veem que é um pouco distante. Não é somente réclamer, como se nos houvessem privado disso, é dizer: sim, nós fomos separados de maneiras de viver nas quais nós sabíamos compor, sabíamos prestar atenção. Fomos separados delas, e, para nos tornarmos novamente capazes, nós devemos não apenas lutar contra aqueles que nos separaram disso, e aqueles que nos dizem que a natureza é suja etc., aqueles que fazem publicidade para dizer: “Os insetos são insuportáveis, e nós temos o veneno para matá-los” – o medo é também inculcado. 

Portanto, não se trata apenas de lutar contra aqueles que nos separaram disso, trata-se também de nos curarmos dessa separação, quer dizer, de nos tornarmos novamente capazes. E eles o fazem, na prática, nos dois planos. Em alguns anos – foi lento, talvez lento demais –, mas eu fico muito impressionada com a maneira como, em alguns anos, em toda parte, vemos aparecer hortas coletivas, práticas de trocas e de reabilitação de sementes, de permacultura, e tudo isso. Alguém pode dizer que tudo isso é pequeno demais em relação ao pouco tempo que nos resta. Bem, eu diria, quem diz que é pouco demais e que precisamos de outra coisa, na verdade está esperando os especialistas soberanos que vão nos dizer: "o cachorro e o gato…", e depois "as bocas inúteis".

Portanto, para mim essas práticas são interessantes justamente porque elas nos falam de uma relação às coisas, aos seres não-humanos, digamos à natureza, mas elas nos falam também de uma relação entre nós mesmos. E as duas coisas estão ligadas. Estão ligadas sob o modo de uma ecologia, de um cuidado das relações, antes que de uma harmonia.

Ecologia no sentido justamente de que não se trata de uma harmonia a reencontrar, trata-se de imaginação a recriar, que nos permita inventar, produzir, criar novos tipos de relação uns com os outros e com aquilo de que nós vivemos e aquilo com o que nós vivemos. Criação coletiva, que é também aprendizado de indocilidade em relação àqueles que nos dizem: “Vocês são incapazes, vocês são egoístas, vocês são impotentes.”. Creio que todo grau de liberdade que é reconquistado localmente é importante, mas importante também sobretudo se pudermos narrar isso, quer dizer, se pudermos transformar aquilo que está se passando em todos os cantos numa dinâmica de narrativa, de experiência, em uma produção cultural que nos mostre – e creio que lugares como o teatro são importantes para isso – dinâmicas que nos mostrem que nós somos capazes de outra coisa, e que isso não é triste.

Portanto, eu tenho a impressão de que nós precisamos também de exploradores de novos possíveis, de exploradores daquilo que é exigido por uma criação coletiva, precisamos também de artistas, de contadores, de mediadores que permitam que essas experiências sejam difundidas, sejam experimentadas em outros lugares, que se produza um novo tipo de ecologia cultural, que não é simplesmente a cultura no sentido das belas artes, mas a cultura prática, a cultura do fazer-com, fazer-com as coisas, e fazer uns com os outros.

E eu diria que isso não é neutro politicamente. Deleuze havia dito que a esquerda, ao contrário da direita, precisa vitalmente que as pessoas pensem. E pensar, no sentido de Deleuze, é esse pensamento coletivo, que podemos chamar de cultura, se nos lembrarmos que cultura é a própria vida.

Obrigada.

// Intervenção apresentada durante a jornada Art e Culture de la Terre, no Théâtre Dunois, em Paris, em 15 de janeiro de 2011. Vídeo disponível em: https://vimeo.com/24011454.

Currículo

Isabelle Stengers

Filósofa belga. Autora de No Tempo das Catástrofes (Cosac Naify, 2015), entre outros.

Como citar este artigo

STENGERS, Isabelle. Gaia.Tradução e adaptação de Déborah Danowski. In: forumdoc.bh.2017: 21º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2017. p. 118-124 [Impresso]; p. 120-126 [On-line].

Notas

1.1  Isabelle Stengers, que é belga, se refere aqui à Academia de Ciências Francesa.

2.1 Em português, reclamar.