Assinando embaixo da famosa frase de Lélia de Almeida Gonzalez, “negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido… ao gosto deles”, indicamos já no título o nome completo de nossa homenageada, internacionalmente conhecida como Benedita da Silva. Nascida em 11 de março de 1942, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, no Hospital Miguel Couto, na cidade do Rio de Janeiro. Filha de José Tobias, pedreiro e lavador de carros, e de Maria da Conceição, conhecida como dona Ovídea, que trabalhou como lavadeira. À época do nascimento de Benedita da Silva, a família residia na favela da Praia do Pinto, no Leblon, depois destruída nos anos de 1960 por um incêndio, dando lugar ao Condomínio Selva de Pedra.
Criada na favela Chapéu Mangueira, no Leme, na zona sul do Rio de Janeiro desde recém-nascida, Bené, como era conhecida, viveu com sua família, que além de seus pais era formada por 14 irmãos. A vida familiar não foi diferente das milhares de famílias negras pobres de sua época. Todos começaram a trabalhar ainda na infância, dificultando e até mesmo impedindo o acesso regular aos estudos, uma realidade ainda bem presente. Desde menina trabalhou como vendedora ambulante, viveu o chão da fábrica, ajudou a mãe na entrega da roupa e foi funcionária do Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro - DETRAN.
Cabe destacar que a favela do Chapéu-Mangueira, limítrofe com outro importante território negro, a favela da Babilônia, foi palco de muitas lutas, com destaque para aquelas dos anos de 1960-70. A comunidade do Chapéu Mangueira, também marcada pela presença do Exército, a partir da fronteira do Forte Duque de Caxias, representa uma favela moderna, de ocupação mais recente por trabalhadores urbanos, de resistência política frente à ditadura e às constantes ameaças de remoções. Foi nesse ambiente que Benedita da Silva atuou firme em tempos de resistência ao regime militar. Com dona Marcela e outras mulheres do Chapéu Mangueira, iniciou um movimento para pensar a condição da favela e das/os faveladas/os, tendo fundado o Departamento Feminino da Associação de Moradores do Chapéu Mangueira e atuado como professora na Escolinha Comunitária (SCHUMAHER, 2000, p.103).
Foi eleita em 1976 presidente da Associação de Moradores e, posteriormente, sua atuação à frente da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro e do Centro de Mulheres de Favelas e Periferias, ainda na ditadura, forjou as bases que a elegeram vereadora pelo Partido dos Trabalhadores - PT em 1982. E sedimentou a sua forma de atuação política, porque, segundo a própria: “A militância política do pobre começa no berço, no bairro, e não no partido. Foi na rua que aprendi que preciso lutar pela igualdade social para os homens e as mulheres!”.
Diplomou-se em Serviço Social e Estudos Sociais em 1984, aos 42 anos, o que nos diz também das condições concretas do acesso de mulheres negras ao ensino superior, considerando as suas histórias de vida e as barreiras estruturais impostas pelo racismo, pelo machismo e pelo sexismo.
Desde então sua carreira parlamentar foi vertiginosa e assumiu cargos públicos importantes, sendo a primeira mulher negra a nos representar em cargos dos poderes Legislativo e Executivo na história brasileira, incluindo a participação na fundação do Partido dos Trabalhadores: vereadora em 1982 pelo PT sob o slogan “negra, mulher e favelada”, afirmou sua origem popular e incorporou de forma direta a bandeira de luta contra discriminação racial e de gênero na agenda político-partidária; deputada federal constituinte em 1986/PT (Titular da Subcomissão dos Negros, das Populações Indígenas e Minorias, da Comissão de Ordem Social e da Comissão dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher), reeleita para um segundo mandato em 1990/PT; senadora de 1995 a 1998/PT; vice-governadora, de 1999 a 2002/PT e governadora em 2002, substituindo Anthony Garotinho, que se afastou para concorrer à Presidência da República. Foi também ministra de Estado da Secretaria Especial da Assistência e Promoção Social, Brasília - DF, 2003 a 2004, e secretária de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, Governo do Estado do Rio de Janeiro, entre os anos de 2007 e 2010.
Nesse significativo período histórico, ocupando cargos eletivos e funções de governo, suas propostas foram conduzidas, de forma intransigente, na defesa dos Direitos Humanos, com forte dimensão antirracista e antissexista, pautando temas relativos à memória e cultura afro-brasileira e africana, aos direitos das pessoas com deficiência, das crianças e adolescentes, da bioética em defesa da vida e contra a exploração sexual. Também denunciou a presença do quesito “boa aparência” como um fator expressivo da falsa democracia racial brasileira, no bloqueio de negros e negras ao acesso ao mercado de trabalho, reivindicando sua eliminação dos anúncios de empregos.
Única deputada negra na Constituinte, Benedita enfrentou na arena política a luta contra a ideia de que no Brasil não existiria discriminação racial, forte justificativa de recusa às políticas afirmativas e à própria criminalização do racismo. Sobre os desdobramentos do processo constituinte, tem consciência de que “não conseguimos tudo, mas avançamos naquilo que foi possível”, apontando que “O Brasil se encontrou com o Brasil no Congresso Constituinte” (2018).
Defendeu uma das principais pautas da luta antirracista no Brasil, quando em 2010 compôs a relatoria da proposta de Emenda Constitucional-EC, conhecida como “PEC das domésticas”, que ampliou os direitos trabalhistas das trabalhadoras domésticas, uma categoria com cerca de 7 milhões de pessoas que há décadas reivindicavam reconhecimento e amparo legal no âmbito da Consolidação da Leis do Trabalho - CLT. Em 2014, discursou, vestida com uniforme de doméstica, na sessão da Câmara em homenagem ao Dia do Trabalhador Doméstico, exigindo a regulamentação da lei: “Não é demagogia estar aqui. É algo da pele, do coração, das veias e da luta”. Somente em 2 de junho de 2015 a regulamentação dos direitos das domésticas, EC promulgada em 2013 pelo Congresso Nacional, foi publicada no Diário Oficial da União.
Na atualidade, diante do colapso sanitário e político que vive o Brasil, em unidade com parlamentares progressistas, encaminhou várias emendas que estabelecem medidas de proteção à mulher provedora de família monoparental em relação ao recebimento do auxílio emergencial, assim como o aumento do período de sua concessão. Essa iniciativa visa à garantia dos recursos sociais e econômicos necessários à sobrevivência das famílias pobres, as quais, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, são chefiadas por mulheres negras. Além dessa iniciativa, medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da covid-19 nos territórios indígenas e a criação de Plano Emergencial para Enfrentamento à covid-19, assim como o apoio do Estado às comunidades quilombolas e aos demais povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento da pandemia, são posicionamentos dessa frente parlamentar.
Na homenagem a essa senhora de 78 anos, mas que se mantém na vida política com vigor juvenil, externamos nosso reconhecimento de sua impoluta conduta na vida pública e no seu posicionamento sempre firme contra o racismo. O fato de ser uma mulher de religião evangélica não a retirou da luta contra a dominação racial e de gênero. Seu discurso direto mantém-se proferido contra todos que sequestram do povo o direito de vida, trabalho, educação, moradia e proteção social, sendo as mulheres, as crianças, os idosos, a população negra, a população LGBTQI+ e os povos tradicionais os mais vulneráveis. Uma posição contrária às propostas privatistas e proibicionistas emanadas dos governos que sucederam o golpe de 2016, ora aprofundadas pelo governo Bolsonaro, que seguindo os princípios e racionalidade neoliberais, em consonância com o ideário de supremacia branca, não menos letal que a retirada de direitos, assolam a cena pública com ideias eugênicas, conservadoras, que reforçam estereótipos de inferioridade sobre a população negra, bem no lastro das relações sociais coloniais e das desigualdades decorrentes das estruturas patriarcais, racistas e de classe da sociedade brasileira. Atenta aos retrocessos no país, foi bastante assertiva, em entrevista sobre o 13 de maio, ao afirmar que não vê motivo para comemoração:
Essa data faz parte da história do Brasil, para marcar o sofrimento que houve durante o processo abolicionista. Mas ela marca uma condenação, porque a abolição foi uma condenação. Não tivemos verdadeiramente a liberdade. Foram muitas as vítimas de atrocidades, e o Brasil foi um dos últimos a dar essa chamada “libertação”. Ficou, para nós, para os historiadores, militantes, como uma data de denúncia e de reflexão de que o extermínio da população negra continua até hoje. A escravidão apenas mudou do chicote para a caneta. Da caneta para a exclusão. É nesse sentido que o 13 de Maio não se festeja. (UOL, 2020)
Por fim, destacamos o engajamento de Benedita da Silva na luta do serviço social brasileiro contra o racismo e combate a todas as formas de discriminação, o que possibilitou, na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, em Audiência Pública, no dia 14 de agosto de 2019, mostrar a relevância do debate sobre Racismo Estrutural, tendo como tema central “Se cortam direitos, quem é preta e pobre sente primeiro”, Campanha do Conjunto CFESS/CRESS conduzida pela Gestão 2017-2020. Na ocasião, entidades representativas das/os assistentes sociais, pesquisadoras e pesquisadores negras/os, entidades do Movimento Negro, demonstraram sua disposição contrária ao racismo estrutural e suas expressões institucionais e propostas para o seu enfrentamento.
Nós mulheres negras fomos estupradas para parir o Brasil, depois fomos abandonadas, jogadas de lado, e agora querem cobrar de nós meritocracia, depois que não nos deram nenhuma oportunidade, então onde nós chegamos foi porque lutamos, principalmente a mulher negra. (HEDFLOW, 2020)
Porque o país ainda precisa ouvir essas verdades de uma mulher negra, estimamos muitos anos de luta para que Benedita Souza da Silva Sampaio faça reverberar a voz coletiva e incansável do Movimento Negro Brasileiro.
Currículo
Benedita da Silva
foi uma das mais importantes lideranças na luta pelos direitos das mulheres na Constituinte. Suas aparições nos documentários dos anos 1980 e 1990 traçam o percurso - então raro e imprescindível - da mulher negra, liderança comunitária no Chapéu Mangueira (Rio de Janeiro), ativista pelos direitos da população negra e das mulheres, assistente social que chega à Assembleia Constituinte como deputada federal (PT), tendo atuação ativa e engajada na Subcomissão dos Negros, das Populações Indígenas e Minorias e, posteriormente, na Comissão de Ordem Social e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. O forumdoc.bh republica este perfil em homenagem a seu decisivo e transformador protagonismo político. Artigo originalmente publicado em 2020 na Revista Em Pauta - Teoria Social e Realidade Contemporânea, licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/52021/0.
Ana Paula Procópio da Silva
Doutora em Serviço Social pela UFRJ. É docente da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Programa de Estudos e Debates dos Povos Africanos e Afro-americanos (PROAFRO UERJ). E-mail: anapaulaprocopio@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4420-1114
Magali da Silva Almeida
Doutora em Serviço Social pela PUC do Rio de Janeiro. Professora do curso de Serviço Social e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Coordena o Observatório de Racialidade e Interseccionalidade ORI- Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre relações raciais, de gênero e classe e lutas sociais antirracistas. E-mail: quilombola_rio56@ yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7382-8480.
Referências
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https://www.camara.leg.br/busca-portal?contextoBusca=BuscaProposicoes&pagina=1&order=data&abaEspecifica=true&filtros=%5B%7B%22autores.nome%22%3A%22Benedita%20da%20Silva%22%7D,%7B%22temaPortal%22%3A%22Direitos%20humanos%22%7D,%7B%22ano%22%3A2 020%7D%5D&q=%2ª. Acesso em: 24 maio 2020.
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FGV; CPDOC. Verbete biográfico. Benedita Sousa da Silva. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/beneditasousa-da-silva. Acesso em: 6 jul. 2020.
HEDFLOW. Entrevista. Benedita da Silva: Nós parimos este país. 30/05/2019. Disponível em: https://hedflow.com/2019/05/31/benedita-da-silvafala-a-hedflow-sobre-a-luta-da-mulher-brasileira/. Acesso em: 6 jul. 2020.
PARTIDO DOS TRABALHADORES. Governantes e Parlamentares / Deputada Federal / Rio de Janeiro. Benedita da Silva. Disponível em: https://pt.org.br/benedita-da-silva/. Acesso em: 24 maio 2020.
PARTIDO DOS TRABALHADORES. Entrevista. Participação popular fez diferença na Constituinte, lembra Benedita. 2018. Disponível em:
https://pt.org.br/participacao-popular-fez-diferenca-na-constituinte-lembrabenedita/. Acesso em: 06 jul. 2020.
SCHUMAHER, S; BRAZIL, Érico Vital (org.). Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
SOUTO, L.; GERALDO, N. Deputada Benedita da Silva: “a escravidão mudou do chicote para a caneta”. Universa, 15/05/2020. Disponível em:
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/05/11/deputada-benedita-da-silva-aescravidao-mudou-do-chicote-para-a-caneta.htm. Acesso em: 24 maio 2020.
UOL. Entrevista. Deputada Benedita da Silva: A escravidão mudou do chicote para a caneta. 11/05/2020. Disponível em:
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/05/11/deputada-benedita-da-silva-aescravidao-mudou-do-chicote-para-a-caneta.htm. Acesso em: 6 jul. 2020.