Imagens de arquivos: imbricamento de olhares

Entrevista com Sylvie Lindepergtraduzido por Pedro Maciel Guimarães

Jean-Louis Comolli: Como é possível, a partir de seu trabalho, de sua experiência como historiadora, refletir hoje sobre a utilização das imagens de arquivos nos filmes e, claro, nos programas de televisão? Como descrever o momento atual com relação às práticas de dez ou vinte anos atrás?

Sylvie Lindeperg: Tomarei por base exemplos ligados à Segunda Guerra Mundial, mas convém também voltar aos primeiros filmes de montagem de arquivos, sobretudo soviéticos, como os de Esther Shub¹. Seria necessário também analisar a fabricação de imagens durante a Primeira Guerra Mundial, em particular a dos franceses, que propuseram formas híbridas que misturavam tomadas gravadas ao vivo e imagens produzidas “por trás”, no cerne do evento, que, no entanto, eram reconstituídas, recompostas e reencenadas. Essa filiação tem que ser levada em conta. Eu trabalhei, particularmente, com as imagens rodadas durante a Segunda Guerra Mundial e com as primeiras utilizações delas. Nos anos 40, 50 e 60, o filme de montagem havia se tornado a forma canônica do documentário de História. Eu estudei, sobretudo, esses dois momentos que constituem a gravação da imagem – o que eu chamo de “tomada” – e depois sua “retomada” nos filmes documentários sobre a Segunda Guerra Mundial que inclui toda a história das suas migrações. Eu esbocei esse estudo em Cléo das 5 às 7 ², a partir das atualidades filmadas da época da liberação.

J.-L. C: Podemos partir dos casos concretos do que foi filmado nos guetos. As imagens da liberação atestam o mesmo fenômeno: trata-se, de uma certa maneira, de arquivos encomendados, orientados quanto à sua filmagem e a sua utilização – a questão da propaganda é central.

S.L.: Com certeza. Não se pode trabalhar com a “retomada” dessas imagens e da utilização delas sem interrogar esse momento único que é a “tomada”. Ou seja, o que é irredutível no olhar do fotógrafo ou do diretor de fotografia nazista mas, também, o que resiste, às vezes, na imagem e que se revela com o passar do tempo e de suas reutilizações.

As imagens gravadas nos guetos poloneses inscrevem-se de maneira exemplar numa lógica de propaganda. Podemos falar da sua aparente contradição: de um lado, a política de invisibilidade pretendida pelos nazistas explica a raridade absoluta de imagens gravadas no perímetro dos centros de extermínio (não basta somente liquidar, é preciso destruir os sinais do assassinato); do outro lado, uma profusão de imagens foi rodada nos guetos. A história dessas “tomadas” ainda está por ser construída.

Fritz Hippler, que dirigia a seção cinematográfica dentro do Ministério da Propaganda, conta em suas memórias que Joseph Goebbels lhe dera ordem de ir filmar nos guetos. Os conselhos do ministro do Reich para a Educação do Povo e a Propaganda revela sua vontade de fixar “o judeu” no seu estado original, de apreender sua “verdadeira natureza” nos guetos, pois, ele explica, a raça judia vai desaparecer e é preciso conservar dela o arquivo.

Eu me pergunto sempre em que momento uma imagem torna-se arquivo. Muitas vezes, ela não é gravada para ser arquivo: ela se torna arquivo. Nesse caso concreto, pode-se considerar que a imagem é pensada a título de conservação de alguma coisa que será destruída. Essa problemática é a preocupação de alguns cineastas contemporâneos. Por exemplo, Farocki constrói seu filme Imagens do mundo e inscrições da guerra³, sobre a constatação de uma conjunção entre os atos de conservação e de destruição. Sobre as fotos do álbum de Auschwitz, o cineasta faz um movimento próximo, que consiste em fotografar pessoas à beira da morte para fixar as imagens dela na película. Farocki interessa-se também pelas fotografias aéreas que permitem encontrar lugares que serão, em seguida, bombardeados. A proposta de arquivar imagens da “raça judia” revela-se perturbadora pois eu não estou certa de que a noção de arquivo seja tão explicitamente reivindicada durante esse período da guerra.

No ato da fotografia e do cinema nazista, há, através do aparelho, um encontro entre a preservação, a conservação e o ato de execução, o que é uma outra definição da propaganda pois está ligada ao assassinato “de massa”.

Muitas sequências foram filmadas no gueto de Varsóvia entre 1940 e 1942 pelos câmeras nazistas. Elas trazem, na maioria das vezes, um olhar antissemita que está de acordo com uma visão racialista “do judeu”. Os câmeras procuraram nos guetos fabricar imagens que não faziam referências à realidade, mas que estivessem de acordo com seu imaginário antissemita. Essas tomadas trazem o olhar nazista traduzido por vários procedimentos bastante conhecidos: contra-plongées, enquadramentos particulares, trabalho com as lentes focais etc.

J.-L. C: Uma retórica do olhar exagerado, caricatural e desmesurado existia então.

S.L.: No meio da população judia, os câmeras selecionam rostos que correspondam ao tipo ideal do imaginário antissemita, chegando à beira da caricatura nos momentos de enquadramento mais fechado. Ora, nessa perspectiva, aparecem possibilidades de resistência: um rosto integrado no plano, mas que não está de acordo com ele pode desmentir esse primeiro trabalho. As ordens dadas pelos câmeras nazistas não são escrupulosamente seguidas. Quando eles pedem a um grupo para rir, uma pessoa pode não fazê-lo e olhar estranhamente para a câmera ou fugir da sua lente. Trata-se de uma primeira categoria de imagens gravadas “ao vivo” nas ruas do gueto onde a resistência à mise en scène aparece dentro da própria imagem.

Uma segunda categoria engloba mises en scènes mais elaboradas que reconstituem cenas de judeus como figurantes forçados por roteiros escritos previamente, sempre com o intuito de reiterar a visão específica da “raça judia”. Assim, seria preciso fazer uma análise profunda dos jornais dos guetos que continham um relatório diário do que acontecia ali. Os cronistas judeus evocavam essas filmagens e os pedidos dos nazistas, que mereciam ser estudados em detalhes. Por exemplo, certas cenas mostram refeições opulentas, regadas a champanhe, depois das quais os figurantes judeus, vestidos com belas roupas, saem pelas ruas pulando cadáveres. Os nazistas usam essa violência para dividir a população. Com cinismo, eles chegam a enviar a conta para a comunidade judia pagar.

Os nazistas estigmatizam também o papel da polícia judia. Adam Czerniakow⁴ conta que foi rodada uma cena em maio de 1942 na qual o policial persegue um habitante do gueto que é “protegido” por um alemão... A mise en scène aí é total. Czerniakow descreve também as filmagens realizadas no seu escritório onde os dossiês são substituídos por candelabros e onde os alemães fazem desfilar rabinos de acordo com um roteiro previamente escrito.

No entanto, apesar dessas mises en scènes, os alemães não se asseguraram dos efeitos produzidos por essas sequências, pois há algo na imagem que pode se voltar contra aquele que a gravou.

As diferentes categorias de cenas gravadas “ao vivo” ou “reencenadas” chegariam a ser filmes. É interessante notar que muitos desses projetos ficaram inacabados. Um deles, Asien in Mitteleuropa nunca foi terminado apesar de todo o trabalho já efetuado. Em 1940, com imagens gravadas no gueto de Varsóvia e de Lodz, Fritz Hippler dirigiu O Judeu eterno⁵, que é a quintessência do filme de propaganda antissemita nazista. A conjunção das imagens e do texto tem como objeto insistir sobre as características “do” judeu, sua relação com o dinheiro, sua falta de higiene, suas deficiências físicas, sua decadência moral, sua preguiça... E chega à ideia da contaminação e da profilaxia com essa imagem terrível na qual os judeus são comparados a ratos e vermes. Um plano lotado de bichos é relacionado diretamente com a insalubridade dos guetos e a proliferação dos roedores. Em Lodz, Cracóvia e Varsóvia, os nazistas filmaram as consequências da sua política de “guetoização”: a miséria, a fome e os maus tratos. No entanto, da maneira mais cínica, eles apresentam essas consequências como a prova da degeneração de uma “raça”, como signos da essência ontológica “do” judeu. Esse filmefoi projetado numa versão francesa intitulada O perigo judeu, dentro da grande exposição parisiense que coincidiu com o ataque do Vel d’Hiv. É importante mencionar que, apesar dos esforços de Hippler, o filme não produziu os efeitos esperados. Ele era projetado na abertura em salas alemãs e os elementos dos quais dispomos parecem indicar que os espectadores não corriam para as salas e, até mesmo, saiam delas. Trata-se de um sinal de que a imagem de cinema pode resistir àquele que a grava, que uma imagem fabricada para produzir o ódio pode levar ao incômodo, até mesmo à compaixão com relação às pessoas filmadas.

É interessante notar que Veit Harlan renunciou a usar imagens rodadas em 1940 nos guetos da Polônia na abertura do seu filme Le juif süss. Encontramos nessa ficção um outro elemento da propaganda que denuncia o que o diretor chama de “judeuzice primitiva” ao chamar a atenção para a esperteza dessa raça, que consiste em se disfarçar e em se maquiar, e para a necessidade de reconhecê-los e desmascará-los. Assim, no filme de Veit Harlan, o judeu do gueto que se travestiu para se transformar em “judeu da corte” torna-se o judeu “eterno”, no final do filme, depois de um plano encadeado. Se Harlan decide não usar os planos rodados nos guetos para Le juif süss, é, provavelmente, porque ele pressente que as tomadas “documentais” são mais difíceis de se manejar e resistirão mais facilmente que a reconstituição ficcional. Ele faz, então, atores interpretarem cenas do gueto e escolhe dar vários papéis ao mesmo ator, Werner Krauss, sempre procurando seguir essa lógica redutora da denúncia“do” judeu. Veit Harlan é abertamente mais sensível que Hippler à questão da ambivalência da imagem. Para Hippler, a “boa propaganda” consiste em mostrar claramente aos espectadores quem amar e quem odiar. Harlan pressente que a imagem pode escapar àquele que a produz. A sequência dos fatos lhe dá razão, já que seu ator principal, Ferdinand Marian, que interpreta o judeu Süss, recebeu várias cartas de amor de admiradoras alemãs.

J.-L. C: É impressionante. O projeto inicial visa arquivar a raça judia, o judeu enquanto judeu e, para isso, não hesita em maquiar a realidade, em fazer uma mise en scène. Estamos longe de uma vontade etnológica. Os nazistas não procuram saber como vive esse grupo e sentem-se obrigados a contar uma fábula, a reinventar modos de vida e maneiras de fazer para arquivá-los como o último traço de uma civilização desaparecida.

S.L.: O ponto de partida de Goebbels apoia-se sobre seu alfabeto e sua gramática antissemita; sua representação do judeu, por definição, não existe na realidade, pois trata-se de uma projeção íntima. No entanto, fica satisfeito com o resultado e encontra no filme suas primeiras intenções. Em seu diário, ele escreve que essas cenas são “tão horríveis e brutais, de congelar o sangue”. Logicamente, ele conclui : “a judeuzice deve ser eliminada”. Goebbels considera que a empreitada é um sucesso. Para ele, trata-se de fazer coincidir uma imagem com um imaginário, de tornar o real conforme uma fantasia e de justificar, assim, a eliminação dos judeus.

J.-L.C.: Você chamou a atenção para o fato de que nessas mises en scènes orientadas há alguma coisa que se mistura nelas, uma espécie de marca não conforme, um suplemento. Um pedaço do real que, de alguma maneira, afasta o resultado final do roteiro inicial. Esse fenômeno pode ser generalizado?

S.L.: Nós falávamos do travestimento. Um exemplo parecido aconteceu em locais de internamento, sobretudo em Terezín. Esse campo-gueto chamado “Potemkine” foi reformado quando da visita da Cruz Vermelha em 1944 e transformado em lugar de férias. Um filme foi rodado aí por Kurt Gerron durante o verão de 1944. Os internos são forçados a ser figurantes. Eles foram melhor alimentados, áreas verdes e de lazer foram criadas, os prédios foram pintados. Esse filme foi chamado, de maneira irônica, de O Führer oferece uma cidade aos judeus. É a camuflagem total do que acontece exatamente no campo. Depois da filmagem, o diretor e seus atores forçados são rapidamente enviados para Auschwitz e, em sua maioria, assassinados.

Um outro tipo de filmagem, bastante singular, é realizado no campo holandês de Westerbork. Trata-se de dissimulação, mas também de outra coisa. O filme nasceu de um projeto do comandante do campo, Albert Gemmeker, e foi realizado por um detento, Rudolf Breslauer, e seu assistente, Karl Jordan. Tem-se cenas rodadas em bares e de exercícios esportivos na mesma linha daquelas do filme de Terezín. Mas, ao mesmo tempo, Gemmeker deseja realizar um “filme de empresa”. Ele quer mostrar o trabalho dos detentos do seu campo. Ele se gaba do sucesso e da produtividade dos seus ateliês, das suas fábricas, da sua fazenda. Essa dimensão empresarial é bastante explorada. Harun Farocki, no filme Respite, que ele dedica a essa filmagem, revela até a existência de um logotipo para o campo de Westerbork. Essas tomadas, excessivamente perturbadoras, inscrevem-se numa lógica próxima àquela da série de fotografias (os slides a cores) tiradas por Genewein no gueto de Lodz. Tendo em vista o conflito entre a SS e a Wehrmacht, o administrador civil do gueto quer mostrar que sua pequena empresa é viável e próspera. Ele fotografa, então, os ateliês. No entanto, como bem mostrou Gertrud Koch, alguns operários fotografados resistem à mise en scène e ao agenciamento nazista que os torna “atletas no trabalho”. Há sempre nessas fotos um personagem que não joga o jogo, que não está absorvido pela sua tarefa ou que desaba e se demarca na composição. Dessa maneira, Gertrud Koch revela, no coração da imagem, o ponto que a desmente ou que destaca a mise en scène forçada.

Para voltar ao campo de Westerbork, temos nessa filmagem outro elemento bastante singular. Na verdade, nesse universo de mise en scène forçada e de dissimulação, Gemmeker filma uma série de cenas que marcam, de alguma maneira, uma intromissão trágica do real e remete à função primeira desse campo que consiste em agrupar e internar judeus e ciganos presos nos Países Baixos, antes de deportá-los para os centros de extermínio do leste. Essa série de sequências mostra, na verdade, a partida para Auschwitz do comboio de 19 de maio de 1944. Elas são perturbadoras pois estão banhadas numa atmosfera de paz, uma quietude muito estranha: os internos embarcam calmamente, um casal se beija na plataforma, pessoas ajudam no fechamento das portas, despedidas amigáveis são endereçadas aos que ficam na plataforma. O incômodo vem do fato de que conhecemos o fora de campo da imagem e do contexto dessa cena filmada como uma partida de viagem de férias – nós sabemos, hoje, que essas pessoas partiram para a morte. Trata-se de um verdadeiro comboio, de uma verdadeira partida e a maior parte dos internos que vemos tranquilamente instalados nos vagões foram asfixiados a partir do momento que o trem chegou a Birkenau.

As condições de gravação que garantem a dissimulação deixam perguntas. As imagens foram rodadas numa perspectiva abrangente da produção que pretendia dar uma visão idealizada dos campos de concentração.

A princípio, somente nosso conhecimento sobre o evento permite antever seu aspecto eminentemente trágico. No entanto, alguns signos agem mais uma vez no interior da imagem. É o caso do plano que mostra a garotinha com um lenço enrolado na cabeça e cujo rosto se destaca na abertura das portas de um vagão. Essa criança olha fixamente para a câmera, o olhar impresso por uma tristeza que nos incomoda. Ela não participa da mise en scène leve da partida. Essa imagem sozinha, isolada, migrou para se tornar nos anos 70 e 80 um ícone da Shoah. No entanto, em 1997, uma equipe de pesquisadores holandeses, levados por uma necessidade de nomeação e de identificação que havia surgido na década anterior e que permitia entender o evento na sua dimensão individual, descobriu que essa garota chamava-se Anna Maria (Settela) Steinbach e que ela não era judia, mas cigana.

Essa precisão em nada muda a força do símbolo, justamente porque essa imagem consiste numa troca de olhares. Acontece nela algo que permite sua utilização posterior. Ao meu conhecimento, Alain Resnais foi o primeiro a descobri-la e a torná-la conhecida na França com Noite e neblina.

Nosso pensamento é permeado aqui pela dimensão da “retomada”. O cineasta não tem conhecimento aprofundado dessas imagens: ele sabe que elas foram rodadas pelos detentos sob ordens dos nazistas, mas ele não consegue ver a raridade delas. Com bastante intuição, Resnais se mostra perturbado por essa incrível quietude. Ele tem consciência que é o fora de campo que restitui à imagem sua violência e ele escolhe não decupar a sequência. Contrariamente a outras sequências de Noite e neblina formadas por materiais de arquivos heterogêneos encadeados em rápida montagem, a sequência do embarque provém quase que unicamente de uma mesma fonte, os rushes de Westerbork. O comentário de Cayrol interrompe-se, fica só a música de Hanns Eisler. O único elemento estranho a Westerbork é de origem polonesa. Trata-se de dois planos mostrando um velho senhor e três crianças que avançam lentamente numa plataforma. O homem roda na frente da câmera e olha para a lente. Essa terrível imagem remete àquela da garota com o lenço. Resnais a escolheu justamente por isso, mas também, talvez, para inquietar as imagens tranquilas rodadas em Westerbork. A intuição de Resnais é admirável, pois ela precede todo o conhecimento que virá mais tarde sobre o evento e sobre a imagem. O olhar do cineasta imbrica-se em todos esses outros olhares.

Assim, quando você falava de conservação e de olhares, eu pensei em uma sequência do Farocki, da qual gosto muito: a da bela mulher fotografada no álbum de Auschwitz. Ela está numa subida como se estivesse ainda nos grandes bulevares no meio da uma multidão de passantes na frente das vitrines das lojas. O cineasta analisa cara a cara com o fotógrafo que registra e eterniza sua beleza mas que, ao mesmo tempo, pertence ao grupo dos SS que vão levá-la à morte. Atrás dela, percebemos que o plano segue seu rumo, através da operação de “seleção”. A composição dessa imagem ilustra a continuidade de duas cenas, o que remete a dois universos distintos e separados no tempo. Trata-se de uma relação com o tempo que se apoia numa inversão brusca: tudo está na fragilidade de um último instante, de um último brilho antes do desaparecimento, que foi o que mostrou admiravelmente Jaubert no seu filme sobre o álbum de Auschwitz⁶.

J.-L.C.: O que pensa a historiadora dessa “mixagem” de elementos documentários provenientes de diversas fontes – que se tornou uma maneira de fazer generalizada? A história de cada imagem, de cada plano, de cada documento desaparece pura e simplesmente. Tempos, lugares e circunstâncias são misturados, geralmente respondendo a um projeto unificador. Isso parece colocar alguns problemas ao historiador que deve recompor tudo o que foi despedaçado. Como você analisa esse fenômeno? Será que essa perda de referentes é o “destino” que espera, inevitavelmente, as imagens do passado?

S.L.: Acho que deve ser pensado de maneira conjunta a história das práticas documentárias e a do saber iconográfico e do comércio com as imagens que evoluíram consideravelmente nas últimas décadas. Montar fontes de origens heterogêneas no meio dos anos 50 em um documentário como Noite e neblina não é a mesma coisa que fazê-lo nos anos 90.

No meio dos anos 50, o saber sobre as imagens – as da Segunda Guerra Mundial – é extremamente incerto. As demandas sociais e simbólicas endereçadas a elas são, também, bastante diferentes das nossas. No que diz respeito a Noite e neblina, a montagem de arquivos constitui o cerne da encomenda feita a Alain Resnais. Ele vai se confrontar com esses planos e fotografias quase contra seu próprio desejo, da mesma maneira que Jean Cayrol, que considera a imagem de arquivo como uma imagem impotente. Além disso, a suspensão historiográfica dos anos 50 explica que esses planos e fotografias que hoje nos parecem disparates – já que evocam acontecimentos distintos e de períodos diferentes – não sejam necessariamente percebidos como tal pela equipe do filme.

Resnais e seus conselheiros históricos tampouco tinham consciência da absoluta raridade das imagens dos centros de extermínio, e por uma série de razões. Primeiro, a distinção entre campo de concentração e centros de extermínio não é claramente estabelecida. Nessa época, ainda é difícil pensar conjuntamente esses dois momentos – o sistema concentracional e a exterminação dos judeus – nas suas diferenças e similitudes. A conjunção deles em Auschwitz-Birkenau impediu, durante muito tempo, a plena compreensão dos fatos. Noite e neblina é, nesse sentido, um primeiro ponto de esclarecimento, mas inscrito num horizonte de persistente confusão. O que acabo de dizer sobre o conhecimento histórico é verdade, conscientemente, no que diz respeito à imagem. Se a distinção entre dois momentos não é estabelecida, é possível para Resnais apreender e perceber o contraste entre o vasto corpus de imagens de campos de concentração e a absoluta raridade de imagens feitas no centros de extermínio.

Por exemplo, quando o filme aborda o ano chave que foi 1942 e evoca os assassinatos nas câmaras de gás, as fontes são bastante heterogêneas: uma imagem da seleção oriunda do álbum de Auschwitz é misturada a fotografias de matanças feitas pelos Einsatzgruppen e que mostram mulheres, homens e crianças nus nos momentos que precedem a exterminação a balas no território da União Soviética. Hoje, uma montagem como essa nos coloca alguns problemas.

Mas Resnais não dispunha desse conhecimento sobre a imagem que poderia lhe permitir estabelecer distinções necessárias e de compreender o valor particular das imagens bastante raras feito no âmago do processo de extermínio (algumas fotos do álbum de Auschwitz e as fotografias tiradas clandestinamente pelos membros do Sonderkommando de Birkenau). Resnais monta uma delas que representa a cremação dos corpos numa fogueira a céu aberto. Eu mostrei no meu livro sobre Noite e neblina que Resnais havia escolhido outra imagem do Sonderkommando, a das mulheres nuas no bosque de Birkenau. Nos rushes do filme, percebe-se o olhar em ação do cineasta que tenta corrigir a diagonal dessa imagem, feita às pressas, numa urgência absoluta. Resnais não consegue reenquadrá-la de maneira satisfatória e decide então não usá-la. Ele renuncia a ela pois não pode perceber a singularidade dessa imagem, por todas as razões que eu expus. Hoje, pensamos nela como uma raridade absoluta; compreendemos que ela se aproxima ao máximo desse ponto cego que é o assassinato na câmara de gás. Para Resnais, ela pode ser trocada por aquelas, em número importante, que mostram as execuções a bala nos territórios da União Soviética. Uma outra diferença entre essas categorias de imagens vem do fato que a série de Birkenau foi tirada pelas vítimas, as outras pelos carrascos. A distinção irredutível entre o ponto de vista das vítimas e o dos carrascos só será pensada mais tarde. Para que as imagens do Sonderkommando sejam encaradas em sua singularidade, foi necessário investir o gesto do fotógrafo clandestino de um valor simbólico e testemunhal; encará-lo como um ato de resistência à política do segredo e à empreitada de invisibilidade do genocídio dos judeus.

Alain Resnais não pode então apreender a singularidade e a raridade das imagens do Sonderkommando; ele pode pensar que são “imagens sem qualidade” a partir do momento que são imagens sem olhar. O fotógrafo Alex, que fez essas imagens às pressas, não pode olhar pelo visor, ou seja, olhar para o seu tema. Por outro lado, essas mulheres, mostradas em seu último momento, não sabem que estão sendo fotografadas. Ao contrário da garota de Westerbork ou da bela mulher na plataforma de Auschwitz que encara o soldado nazista, não há momento de troca de olhares nas imagens clandestinas do Sonderkommando.

Mas, se o conhecimento dos anos 1950 ainda é precário, a postura de Alain Resnais e suas escolhas de montador revelam fortes intuições e realçam a qualidade do seu olhar de cineasta que precede, de uma certa maneira, o conhecimento sobre as imagens.

Esse conhecimento constituiu-se progressivamente a partir dos anos 1980 e deu origem a filmes que refletem sobre a ausência, sobre as faltas de imagem, sobre a invisibilidade como o cerne do evento. Mencionamos os filmes de Farocki e Jaubert, que trabalham sobre o que não é visível no interior da imagem. Eles convidam o espectador a imaginar seu fora de campo, evocam a história complexa dos olhares que se colocaram sobre elas, esclarecem a evolução do contexto de leitura e interpretação. Esses filmes apoderam-se de um novo conhecimento sobre os planos e as fotografias da época nazista, mas eles nos permitem também pensar por e através essas imagens. Ao lado dessas obras, identificamos – sobretudo na produção televisiva – a persistência de práticas documentárias de uma outra era que não levam em conta a evolução dos conhecimentos sobre as imagens de arquivo.

Dessa maneira, podemos notar que filmes e programas de televisão que conduzem a uma mistura de planos e fotografias de origens distintas existem até hoje. Em Cléo das 5 às 7, eu estudei alguma práticas televisivas que consistiam em utilizar a imagem como prova em assuntos extremamente delicados que abordam a questão do negacionismo. Os jornais televisivos expunham na cara dos negacionistas imagens totalmente inapropriadas e descontextualizadas: as da liberação dos campos de concentração do oeste. Essa prática, bastante difundida na televisão dos anos 1970 e 1980, atestava um total desconhecimento e uma falta de interesse latente pela imagem. Essa tendência conduziu à aporia mais total pois as imagens mostradas não provavam nada e não permitiam refutar as alegações dos negacionistas.

Hoje, a situação evoluiu. O conhecimento sobre as imagens foi progressivamente integrado, até mesmo por certos programas de televisão. Em documentários recentes, as fontes são detalhadas e corretamente identificadas por legendas. Isso não significa, no entanto, que esses filmes participam da construção de um olhar e de um pensamento sobre essas imagens.

Vou pegar um exemplo preciso e voltar ao que dizíamos anteriormente sobre Alain Resnais: “essas imagens têm uma história”. É incômodo constatar que o cineasta experimentou a necessidade de relatar plano a plano, em um documento de montagem transmitido sobretudo ao músico Eisler, tudo o que ele sabia sobre a origem das imagens montadas. Claro, ele faz desaparecer em seguida essas histórias em um gesto de montador norteado por uma forma: a cor do presente opõe-se à massa indistinta do preto e branco no qual são igualmente incluídos dois planos de ficção, assim como planos rodados por Alain Resnais. Mas antes que a história das imagens se apague no gesto do montador, ele teve a necessidade de escrever o que ele sabia sobre elas, o cuidado de relatar seus parcos conhecimentos sobre aquela época. Eu me pergunto se essa atitude não anuncia, de uma certa maneira, a prática posterior da ficção, quando Resnais terá o cuidado de escrever fichas biográficas sobre os personagens para comunicá-las aos atores. Essas informações desaparecem, elas também, no filme, mas elas são trocadas no momento da realização e existem como reminiscências no fora-do-filme.

Eu chego ao meu exemplo recente, o da docu-ficção produzido em 2005 pela BBC sob o título: Auschwitz, os nazistas e a solução final . Esse tipo de filme, que mistura documentos de arquivos e cenas de reconstituição, é muito usado e está no centro da economia da televisão de hoje.

J.-L.C.: Então, o arquivo é julgado como insuficiente; é preciso completá-lo?

S.L.: Toda categoria do visível é julgada como insuficiente. Esse filme combina imagens de arquivo, cenas de reconstituição, testemunhos filmados, uma investigação dos lugares, mas ainda uma utilização do digital que permite reconstruir instalações destruídas (sobretudo as câmaras de gás crematórias de Treblinka e Birkenau).

Cada um desses regimes de imagens socorre o outro do qual ele finge suprir as lacunas, em particular do documento de arquivo. É preciso dizer que esse filme tem por vocação levar ao conhecimento do grande público o mais preciso saber historiográfico e que esse saber estende-se, a partir de agora, ao campo da imagem. No caso desse programa, não é preciso fazer uma investigação profunda dos planos e das fotografias. Essas imagens estão corretamente legendadas e cuidadosamente reconstituídas em seu contexto; o comentário lembra, às vezes, as suas circunstâncias de gravação. No entanto, os diretores não têm nenhuma confiança no poder intrínseco delas. Essas imagens têm que ser, então, completadas, sobretudo pela ficção, que vem suprir o fora de campo, preencher as lacunas e os vazios da imagem. Por exemplo, o documento filmado que mostra a execução a bala dos judeus de Liepaja é completado por um contracampo ficcional onde se vê o ator que interpreta Himmler assistir à execução. Essa atitude é muito significativa na economia da ultravisibilidade que reina na televisão. Do mesmo modo, as testemunhas filmadas só aparecem alguns segundos na tela para dar lugar às cenas de reconstituição que devem ilustrar seus comentários.

O filme pretende inscrever-se na posteridade de Shoah ao nos mostrar planos bastante leves de Auschwitz-Birkenau: pôr do sol, flores de gelo nos arames farpados e outros clichês de cartões postais. Estamos aqui bem distantes do gesto de Lanzmann. A paisagem não é percorrida para falar da falta, da distância, da destruição das marcas, mas para designar o lugar onde o cenário será reimplantado graças às imagens digitais. A técnica digital permite reconstruir as instalações homicidas e colocar o espectador no interior da câmara de gás como num videogame. E mais, ao final desse passeio virtual, a porta se fecha sobre o espectador, que fica dentro da câmara de gás. No centro desse buraco negro que a ficção hesitou em representar, o espectador se encontra num lugar impossível onde ele não pode estar. Insistimos aqui no desaparecimento do fora de campo para dar lugar a um plano-cheio, a uma estética do super-visível que corresponde à economia televisiva atual.

J.L-C.: Estamos de acordo para descrever o que acontece hoje como um sistema do “super-cheio”, da saturação do olhar do espectador pela aceleração constante das imagens e pela reconstituição desse fora de campo que se torna um campo super-cheio. Mas eu me pergunto se essa direção não estava inscrita desde o início do cinema. As primeiras atualidades filmadas, por exemplo, eram reconstituídas em estúdio e traziam atores interpretando papéis. Uma maneira muito próxima das práticas televisivas atuais. Eu me pergunto se essa tendência de brincar com as imagens, de pervertê-las, não é constitutiva do próprio funcionamento do cinema, uma condição do seu aparecimento. A ideia de gravar o que Daney chamava de uma “inscrição verdadeira” não seria mais uma raridade que não corresponde à prática geral que transforma, alterna, ficcionaliza?

S.L.: Você tem toda razão, a não ser que, justamente, as atualidades de reconstituição, no momento em que são fabricadas, inscrevam-se numa outra relação com a crença. Parece-me que a utilização da imagem, durante a Segunda Guerra Mundial, significa uma ruptura. Se tudo já existia antes, esse todo passa-se a dispor de outra maneira, sobretudo através da inscrição das imagens no contexto da contrapropaganda de depois da guerra – isso fica claro nas atualidades filmadas. A imagem foi engajada por diferentes campos no intuito de fazer propaganda. As imagens da liberação dos campos inscrevem-se numa lógica de contrapropaganda. Ao mesmo tempo, a imagem é investida de um poder de testemunho inigualável.

Além disso, quando vejo certas imagens, sobretudo as montadas em Nazi concentration camps, um filme de montagem projetado durante o julgamento de Nuremberg⁸, pergunto-me se não existe uma vontade de punir pela imagem. Uma grande parte desses planos era destinada aos espectadores alemães. Nessa perspectiva, os deportados são totalmente reificados, instrumentalizados por uma mise en scène que lembra as danças macabras: eles giram, levantam as mangas das roupas ou as saias para mostrar as terríveis marcas para a câmera. Por essa razão, são filmes impossíveis de ser assistidos, pois a dignidade da vítima desaparece totalmente. Os operadores de câmera tiveram muita dificuldade de pensar que esses sobreviventes e esses mortos pertenciam ainda à espécie humana. Em algumas imagens, cenas de tortura são reencenadas. Essa mise en scène que utiliza o corpo do deportado para dar visibilidade às atrocidades nazistas e punir o espectador é dificilmente suportável pois ela nos torna testemunhas desse sofrimento suplementar infligido aos deportados, aos quais se nega a humanidade.

J.L.-C.: Essa prática lembra Saló, de Pasolini, e esse tipo de filme concebido para fazer sofrer o espectador, justamente para tornar o espetáculo insuportável.

S.L.: Trata-se de uma outra categoria de imagens que, para mim, estão no lado oposto das imagens rodadas por Samuel Fuller em Falkenau. Nas sequências de Fuller, o sujeito filmado não tem mais o mesmo lugar e, consequentemente, o espectador também não. Os sobreviventes de Faulkenau são tornados humanos e, graças à iniciativa do capitão Fuller que ordenou que vestissem os mortos, o filme lhes concede dignidade e lhes oferece uma sepultura. Essas imagens são da mesma época, mas são oriundas de uma concepção bem diferente do cinema.

J.L.-C.: Não é do ponto de vista do lugar do espectador que poderíamos distinguir esses diferentes tipos de imagem? Será que consideramos que o espectador está aí para apreciar, de uma maneira atroz, a nudez dos outros, ou pensamos o contrário, que ele deve construir sua dignidade de espectador? Com isso, eu tento interrogar sua prática de historiadora. Na verdade, trabalhar com esse imenso campo de pesquisas é se questionar sobre o que poderíamos chamar de “perversão do olhar”. A maior parte dos nossos exemplos giram em torno dessas questões: mise en scène, falsificação de reencenações...

S.L.: No que diz respeito ao meu trabalho de historiadora e de suas evoluções, eu comecei a trabalhar sobre a migração das imagens, seus usos e reinterpretações, centrando-me na questão do sentido e da relação com o acontecimento (o que fiz a partir de Cléo). A ideia de tentar elaborar uma história dos olhares e seus imbricamentos veio mais tarde com Noite e neblina. Se eu tivesse que recuperar o trabalho sobre os documentos filmados pelos aliados durante a liberação dos campos, eu me interessaria mais profundamente por essa questão.

Eu tentaria também pensar no que está em espera nessas fotografias e nesses planos. Você mostra isso muito bem no seu artigo sobre Bergen-Belsen⁹, que eu tentei discutir quando trabalhei sobre a projeção dessas imagens durante o processo Eichmann. Dentro do tribunal de Jerusalém, Haim Gouri, que revê essas imagens pela segunda vez, explica que ele as vê de maneira totalmente diferente. Primeiro, porque essas imagens inscrevem-se num novo contexto de leitura, mas também porque ele percebe, ao revê-las, signos que estavam até então invisíveis. O que foi captado pelas câmeras de cinema e de fotografia não foi necessariamente percebido, de primeira mão, pelos espectadores e pode ter, eventualmente, escapado ao fotógrafo e ao câmera.

Para se escrever uma narrativa, é preciso passar por uma forma de elucidação. O leitor, aliás, mesmo que ele proceda a uma reinterpretação ligada à pluralidade de sentidos, deve caminhar com palavras que foram escolhidas de uma vez por todas. Na imagem, a gravação do acontecimento pode preceder a compreensão e pode haver elementos não escolhidos que ficam a espera daquele que saberá desvendá-los e interpretá-los. Em função do contexto histórico, da memória, mas também da nova atenção dada ao retorno para a imagem, nós voltamos, de repente, o olhar para alguma coisa que jazia na imagem e que não havia ainda chegado até nós. Como isto se articula com a questão da inteligibilidade do acontecimento e da elucidação do sentido? É uma questão que eu não me havia colocado quando eu escrevi Cléo, e menos ainda Les écrans de l’ombre. Nesse sentido, o que você enuncia em seu artigo sobre Bergen-Belsen me parece absolutamente fundamental.

J.-L.C.: A gravação das visibilidades e das temporalidades pela máquina cinematográfica “capta” ou revela relações, ligações que não havíamos necessariamente visto ou compreendido no momento da tomada. O arbitrário ou a contingência ligados às gravações podem se definir como uma forma “automática” ou “involuntária”. A natureza analógica da imagem cinematográfica supõe e acarreta a impressão de elementos do mundo que não havíamos notado ou, menos ainda, calculado: alguma coisa de um “real” ainda ilegível, em gestação, em devir, portador de uma leitura e de um sentido futuros. Algo da dimensão do latente revela-se então. É a potência do cinema que está em jogo aqui. Um certo estado do mundo, do movimento do mundo, é ao mesmo tempo suscitado e gravado pelo cinema. Existe um momento onde é difícil de se perceber onde mundo e cinema formam uma coisa só. O arquivo é a marca desse “enunciado” (no sentido de Foucault).

S.L.: A questão dupla da narrativa e do tempo também pode entrar em jogo. Nós falávamos da história, da fotografia e do cinema. A relação com o tempo e com a narrativa não é a mesma nesses três casos. O historiador escreve, necessariamente, no “depois” do acontecimento, que ele deve tornar inteligível através de uma narrativa, mesmo que suas hipóteses e demonstrações sejam falsas. Com o cinema, a narrativa se constrói primeiro no instante, no tempo do acontecimento – que é também o do plano–depois no agenciamento de diferentes planos que se opera no desenrolar do filme. Com a fotografia, o tempo é fixado de uma vez por todas como o que foi e não voltará a ser; a narrativa é sobretudo produzida por aquele que verá aquela imagem. Claro, no caso do álbum de Auschwitz, há narrativa, colocação de uma intriga, porque há uma série fotográfica que recorta o evento em sequências. A partir daí, a imagem da jovem mulher na plataforma aparece como singular: a força da imagem vem, talvez, da relação entre o primeiro e o segundo plano da fotografia e que remete a duas temporalidades diferentes, o antes e o durante o evento trágico que se desenrola na rampa de Birkenau.

A dimensão temporal desse evento (a destruição dos judeus da Europa e, particularmente, o extermínio nas câmaras de gás) continua perturbadora já que esse último conduz a uma espécie de suspensão do tempo. É o que explica Annette Wieviorka quando ela ressalta que esse momento de extermínio não pode ser objeto de uma narrativa.

Michel Deguy expressa a mesma ideia¹⁰ quando ele escreve que, para os judeus enviados para a câmara de gás desde a descida do comboio, “o incrível não teve tempo de acontecer”. Esse acontecimento brutal conduz a uma profunda crise do tempo. No filme de Jaubert, uma das deportadas lembra que o destino podia mudar radicalmente num milésimo de segundo.

Hoje, sofremos uma outra forma de destruição da duração e da percepção temporal. O “presentismo” do qual fala François Hartog é a perda da articulação entre passado, presente e futuro, que leva a viver num presente eterno em permanente dilatação. Ora, parece-me que os meios de comunicação inscrevem-se no cerne desse novo processo temporal e que eles são o principal operador dele.

J.-L.C.: O olhar para a câmera, do qual já falamos muito, permanece um olhar em direção ao futuro, um olhar que reinstala o futuro a partir do presente. O presente só não basta, o corpo filmado volta-se para o futuro. É isso que está em jogo. Esse olhar para a câmera só tem sentido se visto pelo espectador. Ele não é destinado ao que está na frente dele, mas sim para quem estará diante dele.

S.L.: O que você diz me faz pensar de novo nas fotografias do gueto de Lodz. Ao lado de Genewein, fotógrafos judeus trabalham no gueto, sobretudo Mendel Grossman e Henryk Ross, que eram empregados no serviço fotográfico. Fora das suas “horas de serviço”,eles fizeram inúmeras imagens. O olhar que eles colocam sobre a realidade se revela, claro, diferente do olhar de Genewein. Grossman tira fotos clandestinamente, escondendo sua câmera sob seu casaco, somente a lente da câmera aparece. Mas, em outros momentos, os habitantes do gueto sabem que são fotografados por Grossman e, até mesmo, pedem isso a ele. Quando se olha essas imagens, percebe-se que eles oferecem seus rostos a Grossman como quem deixa um testamento. Acontece algo na relação com o fotógrafo que deve transmitir a última imagem dos condenados. Depois da destruição do gueto, Grossman foi deportado e morreu durante as “marchas da morte”. Ele havia distribuído imagens e escondido suas películas. Essas imagens e películas chegaram a Israel e foram conservadas em um kibutz antes de serem destruídas em 1948 durante o ataque dos soldados egípcios. Ao olhar as imagens salvas, temos o sentimento de que as pessoas fotografadas se entregam à câmera como última instância de conservação, com o socorro derradeiro. Isso tem a ver com o que você dizia sobre o futuro. A marca testemunhal depositada para o futuro passa pelo fotógrafo que tem um elo de cumplicidade com essas pessoas. Na urgência, Grossman sabe o que ele tem que fotografar e eles querem se oferecer à sua câmera. Eles sabem o que fazem juntos. E não é exatamente o olhar da mulher na plataforma dirigido ao fotógrafo nazista que pertence àqueles que vão matá-la. As imagens do gueto diferem pois a relação com as pessoas fotografadas simplesmente não é a mesma.

J.-L.C.: Para entender as coordenadas de um plano ou de uma fotografia, parece-me que é preciso levar em conta não somente suas condições espaço-temporais e político-históricas, mas também o que acontece entre filmadores e filmados. Eu diria que, se algo é documentador, é essa relação. O documento sobre a relação entre fotógrafo e fotografados torna-se extremamente precioso. São relações realmente ligadas a um momento, a um instante, a um acontecimento preciso.

S.L.: No meu trabalho de historiadora, essa dimensão adquire uma importância inédita. Sendo incuravelmente historiadora, eu me pergunto se essa história pode ser historizada, se essa relação evoluiu no tempo.

J.-L.C.: Parece-me que não, pela simples razão de que se trata do mito fundador do cinema e da fotografia. A imagem sobrevive ao corpo figurado. Isso é verdade hoje para todos os filmes, todas as “atualidades” etc. A aparição do cinema, suas evoluções são históricas, como o é, sem dúvida, o lugar do espectador, mas no fundo de tudo isso, está a estrutura imóvel do mito. Eu me pergunto se a invenção do cinema não leva consigo o sonho ou a fantasia de uma “anulação” do tempo histórico. A plasticidade das imagens, seu caráter migratório, sua resistência, que você ressaltou, não constituem uma espécie de esfera que estaria protegida da história? O historiador, o crítico, deve trazer nas imagens do passado um comentário referencial que foi, precisamente, ejetado. Talvez o cinema tenha sido inventado, adotado, desenvolvido, justamente para nos livrar dessas ligações referenciais, para liberar as representações de suas condições históricas de possibilidade e de fabricação. Uma libertação? Eu penso nos filmes de Gianikian dizendo isso. Quase sempre, as imagens ou as sequências que eles reciclam estão inscritas em uma história (os filmes mussolinianos, por exemplo), mas o tratamento que lhes é dado as vaporiza, de alguma maneira, as torna irreais; na verdade, justamente, lhes torna cinema.

S.L.: Nós não abordamos o momento em que as imagens tornam-se arquivos. Nos filmes de Gianikian, é a forma dessas imagens perdidas, exumadas e retrabalhadas que produz uma nova inscrição. No entanto, uma pergunta fica no ar: a do estatuto da imagem de arquivo. Eu dizia que, com Goebbels, estava explicitamente expressa a vontade de filmar para conservar e arquivar. Não é a mesma coisa de tomar consciência, mais tarde, que as imagens do passado tornaram-se arquivos e de gravar imagens para produzir arquivos do futuro.

Vejamos os exemplos dos julgamentos filmados. A lei Badinter de 1985 que autoriza a filmagem de certos julgamentos inscreve-se, explicitamente, nessa vontade de produzir arquivos para os pesquisadores e as próximas gerações. Quando, em 1961, o estado de Israel autoriza a gravação em vídeo e na integralidade do julgamento Eichmann, trata-se de disponibilizar as imagens de atualidades para que as redes de televisão possam cobrir o evento. Atualmente, eu trabalho sobre esse julgamento com Annette Wieviorka e nós estudamos o contrato entre o estado de Israel e a companhia americana responsável pela gravação. Ali, está mencionado que as gravações deverão ser conservadas três meses por causa da importância histórica do processo.

A constituição de uma imagem em documento de arquivo coloca uma outra questão que tem a ver com o fato de que uma imagem que não foi produzida com essa intenção e que estabeleça uma relação distendida com o real torne-se arquivo pelo uso que se faz dela.

Penso nos dois planos de ficção do filme de Wanda Jakubowska montado em Noite e neblina. A reciclagem do curta metragem de Alain Resnais em outros documentários de montagem vai acentuar ainda mais esse processo até nivelar todos os estratos e regimes de imagens montados pelo cineasta. No programa de televisão americana Remember us¸ que é, basicamente, uma remontagem de Noite e neblina, os planos a cores rodados por Resnais são reproduzidos em branco e preto e tornam-se imagens de arquivo do período nazista. A historicidade da imagem é aqui destruída na medida que o filme torna-se um grande arquivo, reciclável como tal em um outro documentário. A partir dos anos 1960, Noite e neblina é utilizado como um catálogo de planos indistintos onde todas as imagens têm, a partir de então, o mesmo estatuto. A reflexão de Resnais sobre a imagem, a relação dialética entre cor e preto e branco marcam a distância entre o passado e o presente, mas também o trabalho e o gesto do montador que junta e distingue, fazendo cortes e implantes para produzir o que eu chamo no meu livro um arquivo “terciário”; tudo isso desaparece em favor de uma reciclagem indistinta que rebaixa o documentário ao nível de arquivo primário.

A historiadora Judith Keilbach mostrou bem que, na Alemanha, Noite e neblina e Mein Kampf, de Leiser, serviram durante décadas de catálogos de planos para os documentários de cinema e de televisão sobre o período nazista.

J.-L.C.: Verdadeiros bancos de imagens.

S.L.: Exatamente. Até nos anos 1990, essas imagens, qualquer que seja seu estatuto, eram recicladas de maneira a dar um efeito de reconhecimento que validava e autentificava a narrativa sobre o passado. Ao confrontar a cultura visual existente, esses filmes produziam um efeito de real que validava a crença na verdade da narrativa cinematográfica. Até que surja uma demanda, um desejo de imagens novas. Judith Keilbach situa esse momento decisivo na década de 90, num momento onde a economia da televisão vai usar da novidade e ressaltar o argumento do “jamais visto”. Seria interessante pensar no que foi produzido então. Passa-se progressivamente de um efeito de reconhecimento visual que produz um discurso de autoridade a uma nova política do visível que modifica nosso comércio (nossa relação) com as imagens e faz do argumento do “jamais visto” um chamariz.

J.-L.C.: Isso supõe também um desgaste das imagens de arquivo pela reciclagem. A milésima visão do plano das retroescavadeiras de Bergen-Belsen reduz a imagem ao clichê, fazendo-a perder algo do seu poder inerente.

S.L.: Sim, essa evolução nos ensina também sobre nossa própria relação com a História e, de maneira mais fundamental, sobre nossa relação com a política. O interesse pelos álbuns e filmes de família, as produções televisivas recentes que usam as imagens rodadas por Eva Braun “na intimidade do Fuhrer” são bastante reveladoras da privatização da relação com a História e da nova natureza das demandas endereçadas às imagens.

J.-L.C.: Os filmes de família do período nazista, dos quais vimos vários exemplos, revertem o ponto de vista. A história desemboca na História. Ao mesmo tempo, o fato de que se trata de planos, de imagens cinematográficas, convida a essa espécie de “desterritorialização”: desde Vertov, o cinema joga com suas imagens cinematográficas como num jogo de cartas. Como se o cinema armasse um campo onde todos os jogos são permitidos e tentadores. Tomemos o exemplo do filme de Pelechian, Nosso século. Teria um funcionamento autônomo, específico, da “bolha” cinematográfica onde poderíamos nos liberar das obrigações e pressões do tempo histórico e da dimensão política.

S.L.: A narrativa se cria também na relação de uma imagem à outra, na maneira que uma tem de invocar a outra para construir uma outra coisa que não está mais em ligação com o evento. A montagem pode também gerar uma perda da qualidade histórica da imagem no sentido que conhecíamos, ou seja, a relação com a tomada que o raccord aniquila em uma elipse temporal, por exemplo.

J.-L.C.: O que nos descrevíamos poderia resumir-se pelo fato de que cada plano de cinema é composto por duas faces. Uma delas, oriunda da análise histórica: a imagem foi produzida a tal momento, em tais condições, com tal propósito. Todos esses elementos podem ser encontrados, reconstituídos e analisados como você o fez. A outra face diz respeito à função narrativa ou imaginária do filme: a montagem, os planos que se invocam uns aos outros, a cadeia de planos subentendidos em um plano... etc. Os dois aspectos mantêm-se indissociáveis: eles intervém ao mesmo tempo, pelo menos, nos filmes importantes.

S.L.: Seria preciso acrescentar um parâmetro. Na verdade, alguma coisa mantém-se indexada à nossa relação com o acontecimento. Por exemplo, a sequência de Noite e neblina dedicada aos fatos de 1942 da qual eu falei suscita, hoje, críticas não somente porque o conhecimento da imagem e da história progrediu, mas também porque a destruição dos judeus na Europa – oculta da grande mente na memória e no imaginário francês de meados dos anos 50 – ocupa, há várias décadas, um lugar central. Esse acontecimento não perdeu sua força e encontra-se ressaltado pela atualidade que o alimenta, indefinidamente, à medida que as polêmicas se repetem. Em nome do encantatório e problemático “dever de memória”, desenham-se novos desafios que têm menos a ver com a memória – e ainda menos com a história –, que com questões políticas, ideológicas e morais. No entanto, pode-se imaginar que virá uma época onde a distância temporal com o acontecimento será tal que ele se tornará um objeto frio, deslocado de sua base histórica. Quando a ligação se distende e se rompe, a imagem começa a flutuar e essa flutuação a torna a-histórica, disponível para novos usos.

J.-L.C.: Um filme de Gianikian intitulado Homens, anos, vida¹¹ apresenta uma sequência de um massacre de turcos na Armênia. É preciso se perguntar, mas eu acho que, para os Gianikian, eu não acho que seja uma coisa que se esfriou. Para mim, é admiravelmente bem filmado. É isso que me admira, mais do que a marca histórica. Ou então, seria uma história a se construir sobre a maneira de filmar dos operadores de câmera dos cine-jornais.

S.L.: Encontramos o mesmo tipo de exemplo na obra de Pelechian. Quando a relação com a história se distende, os recursos próprios às imagens, a qualidade intrínseca delas, saem ganhando. As imagens que só têm como qualidade a inscrição na história apagam-se enquanto que outras resistem no tempo, sobrevivem ao evento que lhes deu vida.

J.-L.C.: É geralmente a qualidade cinematográfica que permite isso.

S.L.: No que diz respeito às imagens de Sonderkommando, a força delas vem da qualidade de testemunho histórico e não da qualidade formal.

J.-L.C.: E das condições extremas de filmagem.

S.L.: São essas condições de gravação que as tornam tão preciosas hoje, que nos convidam a olhá-las de outra maneira, a ver nelas a marca de um gesto de resistência heroica à política da invisibilidade. As imagens são investidas por esse conhecimento. Mas se esse conhecimento desaparecesse, não é certo que essas fotografias, deslocadas do seu contexto de gravação, achariam nelas próprias a força suficiente para existir de maneira autônoma. Pois essas imagens são sem olhar, contrárias àquela da criança de Westerbork da qual podemos imaginar que ela traz consigo a capacidade de resistir a esse apagamento progressivo.

Currículo

Jean-Louis Comolli

Escritor e diretor de cinema francês. Foi editor-chefe da Cahiers du cinéma de 1966 a 1978, publicou, entre outros, Ver e Poder - A Inocência Perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário (UFMG, 2006).

Sylvie Lindeperg

Historiadora, professora da Universidade de Paris I - Panthéon Sorbonne. Autora de Nuit et Brouillard. Un film dans l’histoire (Odile Jacob, 2007); entre outros. Correalizadora, ao lado de Jean-Louis Comolli, do filme Face aux fantômes (2009).

Como citar este artigo

COMOLLI, Jean-Louis. Imagens de arquivos: imbricamento de olhares Entrevista com Sylvie Lindeperg. Tradução: Pedro Maciel Guimarães. In: forumdoc.bh.2010: 14º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2010. p. 318-345 (Impresso).

Notas

[1] Outras grafias: Esfir Shub e Esther Schub.

[2] Filme de Agnès Varda, 1961.

[3] Harun Farocki, Imagens do mundo e inscrições da guerra, 1988, 75min.

[4] Adam Czerniakov, presidente do Conselho judeu (Judenrat) do gueto de Varsóvia.

[5] O filme foi realizado e estreou em 1940; ele dura 62 minutos.

[6] Alain Jaubert, Auschwitz, album de la mémoire, 1984, 42 min.

[7] Laurence Rees e Catherine Tatge, Auschwitz, les nazis et la solution finale, 2005, 6 episódios realizados segundo o livro homônimo de Laurence Rees.

[8] George Stevens, Nazi concentration camps, 1945, 59 min.

[9] Jean-Louis Comolli, “Fatal rendez-vous”. In: Le cinéma et la shoah, Jean-Michel Frodon (Org.), 2007.

[10] Michel Deguy, “Une oeuvre après Auschwitz”. In: Au sujet de la Shoah, Berlin, 1990.

[11] Yervant Gianikiane AngelaRicci-Lucchi, Hommes, années, vie, 1990.