Queremos que o mundo veja nossa vida, nossa cultura. Queremos ser cineastas.
É com esses filmes que lutamos também, para defender a nossa cultura, o nosso território e para mostrar a nossa realidade. Por que se a gente não mostrar, como vocês vão acreditar? Por isso temos que mostrar, para os napë [não-indígenas] acreditarem que nós existimos mesmo, para saberem como estamos vivendo e o que está acontecendo com a nossa terra-floresta.
2022, 100 anos de Nanook de Robert Flaherty! Este filme marca, sem dúvida, o nascimento não só do filme etnográfico, mas da experiência fílmica compartilhada, como dizia Jean Rouch, já há muito tempo, ao incluir Nanook junto ao Homem com a Câmera (1929) de Vertov como as duas obras fundantes do cinema documentário-etnográfico. Em sua 26ª edição, o forumdoc.bh traz novamente essa obra para o diálogo e contraponto com realizações contemporâneas. Podemos considerar Nanook atual em vários aspectos: na forma, na ética, na cumplicidade necessária entre quem filma e quem é filmado, no olhar (e no riso) que atravessa a câmera e cativa o espectador! Sem dúvida, muita coisa mudou de lá pra cá, sobretudo o fato de que os Inuit (o povo ao qual pertencia o principal personagem, Nanook, do filme de Flaherty) passaram também a fazer seus próprios filmes, assim como vários outros coletivos indígenas situados no Grande Norte (dentro do Círculo Polar Ártico). Então, nesta edição, queríamos apresentar, discutir e debater a atualidade de Nanook em face a esta nova constelação de filmes do Grande Norte. Portanto, para nós, faz-se necessária uma dupla pergunta: por que este filme se tornou uma referência e, ao mesmo tempo, uma obra precursora-fundadora do filme etnográfico e, em segundo lugar, qual exatamente a sua atualidade? Por fim, para os Inuit, quais são os dilemas atuais para salvar seu modo de vida, com ou sem o cinema? Quais são os temas de seus filmes atuais – mito e história, relação com o mundo dos brancos, cristianização?
Sem dúvida, a grande questão – que hoje afeta toda a humanidade, mas de forma especial os povos do Ártico – vem das mudanças climáticas e do aquecimento global. Se, no início do século XX, o Grande Norte podia ser lido como a última grande fronteira desconhecida do Ocidente, junto à maior parte da Amazônia, estas duas regiões etnográficas estão hoje em pauta tanto pela ameaça de sua destruição pelo avanço do capitalismo quanto pela possibilidade de cura da Terra (por meio de suas florestas e/ou recursos e modos de vida de grupos humanos baseados no respeito e na escuta da natureza). Ficamos tentados a fazer uma mostra comparativa de cinemas Inuit-Yanomami, ou Norte-Sul ou Ártico-Amazônia. Mas a tarefa é grande demais! Pois, só para dar exemplos, teríamos de discutir e debater – a partir de Flaherty – a imensidão da obra de Asen Balick (Netsilik Eskimo), ou da cineasta do povo abenaki Alanis Obomsawin, além do coletivo inuit Isuma (que mereceria, cada um, uma mostra inteira). Fica para os próximos anos, alguns destes mergulhos necessários no cinema do Grande Norte. E, para dar início, o forumdoc.bh.2022 propõe uma reflexão em torno de alguns dos filmes-coletivos yanomami-inuit.
100 anos depois de Nanook e quase 50 anos depois do primeiro documentário realizado entre os Yanomami da região do rio Marauiá, Meu Caminho é um Rio (1975), da Escola Salesiana de Aplicações Fotográficas da Itália, a mostra Imagens Indígenas do Sul e do Norte: cinemas yanomami-inuit propõe uma confluência entre os cinemas destes dois povos que têm trabalhado pela retomada da produção e circulação de suas imagens.
Muitos imaginários foram criados acerca dos povos “indígenas” ou “originários” (para o caso do Brasil, é esta a denominação usual do ponto de vista do movimento indígena) ou dos povos “autóctones” (do ponto de vista dos povos do norte) através da visão e das lentes do colonizador ocidental. Porém, o que se vê nos cinemas feitos pelos próprios indígenas na atualidade é a inversão ou recriação daquelas representações, incluindo uma crítica ao lugar da autoria não-indígena: eles imprimem em seus cinemas os saberes e as cosmologias tradicionais, a relação com seus territórios e suas lutas, enfim, são produtores e “atores” de suas imagens.
Um exemplo profícuo desta rearticulação é o Núcleo Audiovisual Xapono - NAX, que, desde 2016, vem produzindo filmes dentro das aldeias da região do rio Marauiá no Território Yanomami de forma autônoma. Este trabalho culminou na mostra “Nossa Imagem é Nossa Defesa” – curada por Sérgio Yanomami e Maurício Yanomami – que o forumdoc.bh convidou para compor o corpo da Mostra Imagens Indígenas do Sul e do Norte. De acordo com Sergio Yanomami:
[...] essa mostra de filmes é para nossa defesa. Esses filmes que os Yanomami e nossos parceiros napë fizeram é para vocês ouvirem as nossas falas e verem a nossa realidade. É para vocês acreditarem e ajudarem a defender nosso povo e nossa floresta. Para aqueles que não nos conhecem ainda ouvirem e verem como os Yanomami querem viver, como nós queremos viver tranquilos na nossa própria terra. Por isso eu agradeço muito os nossos parceiros que nos ajudam a ensinar a filmar e a mostrar nossos filmes, nossa realidade, para todos. Agora nós já aprendemos a filmar, e isso é muito importante!
Esta defesa fica mais urgente hoje. A TI Yanomami faz 30 anos em 2022. Ela foi homologada em 1992, depois de muita luta dos Yanomami, principalmente dos seus xamãs, liderados na figura de Davi Kopenawa, para mostrar aos brancos napë como eles queriam, mereciam e tinham direito de viver. Naquela época, os Yanomami tinham passado pela maior invasão garimpeira de sua história, que provocou epidemias, massacres e severa depopulação. Lá, por força da nossa retomada democrática, fizemos vigorar a (jovem) Constituição Federal. 30 anos depois, a mesma CF está tão ameaçada quanto a TI Yanomami, infestadas e corroídas por ilegalidades e crimes, como o garimpo nas terras indígenas. Saberemos ficar ao lado dos Yanomami e dos povos indígenas na defesa de sua terra-floresta? Saberemos nos unir a eles na defesa da nossa terra-planeta?
Os filmes do NAX nos ajudam a nos posicionar. Nos inspiram, nos deixam respirar fora do nosso mundo apequenado, cercado nas cidades de cimento quente. As sabedorias deles são frescas e renováveis. Estão compartilhando um pouquinho delas conosco nos seus filmes. Integrando o segmento yanomami, apresentaremos também filmes dos formadores-cineastas Vincent Carelli e Louise Botkay, que se dedicaram a colaborar com os Yanomami – e outros povos indígenas – na produção e circulação de suas imagens. Cada qual a seu modo, os dois filmes são joias raras. De uma perspectiva íntima, seguem a beleza doce e forte das mulheres, crianças e homens, donos originários dessa terra, em seus deslocamentos pela floresta, mergulhados nos igarapés de água límpida, até seus encontros nas aldeias. Contaremos com a presença da diretora e do diretor nesta mostra-seminário para enriquecer nossa defesa da TI Yanomami.
O elo intercontinental que buscamos apresentar se dá num momento em que o cinema – principalmente o documentário e o filme etnográfico – se vê interpelado por modos coletivos de produção. Se o cinema sempre contou com muitas mãos para se realizar, eis que agora parece precisar de um sentido comunitário. Seu maior respiro acontece quando enxergamos nas imagens uma elaboração vinda de dentro para fora, um desejo coletivo de produzir com e para a comunidade e se demorar nestas paisagens. Essa característica atravessa os filmes desta mostra, de Sul a Norte. Como escreve Nina Vincent, convidada para o seminário que acompanha esta mostra, em seu texto para o catálogo, “transformam ferramentas coloniais em armas de resistência para afirmação de suas identidades”.
Embora os Yanomami sejam um dos povos vivendo mais ao norte do país, em nossa intenção comparativa eles representam as terras baixas, ao sul da América, em conversa com este outro povo que vive tão ao norte, que parece tão distante, mas que através das imagens demonstram o mesmo anseio de salvaguardar e cultuar suas tradições, sua força ancestral e denunciar as ações perversas de quem coloniza.
O eixo Inuit da mostra apresenta uma instigante viagem às terras do Norte pelos olhos de suas e seus habitantes. Teremos, na mostra, os inéditos para o Brasil, Inuuvunga – I am Inuk I’m Alive, documentário que se tornou referência realizado por um coletivo de adolescentes Inuk sobre sua relação com a escola, as mais velhas e os mais velhos, os saberes tradicionais e modernos no assentamento de Igloolik; um curta documental sobre a pandemia, da jovem realizadora Carol Kunnuk, e um documentário-ficção mais recente de Zacharias Kunuk, expoente do cinema canadense e realizador do premiado Atanarjuat (já exibido em duas ocasiões no forumdoc.bh), One Day In Life of Noah Piugattuk, filme de abertura da Mostra. Aqui, o contraponto com Nanook se faz evidente. Se, em 1922, Flaherty nos apresenta o resultado de um encontro amistoso entre quem filma e é filmado – entre o povo branco e o povo inuit –, em 2019, Kunuk nos mostra o outro lado deste encontro, aquele onde as relações de poder e as visões de mundo de cada lado são colocadas em embate e parecem intraduzíveis um para o outro. O sorriso de Nanook, que ficou marcado na história do filme etnográfico, é substituído pela expressão de quem é convidado a se retirar de suas terras. Filmes que nos atualizam sobre o cinema que vem sendo constituído por esses coletivos e realizadores(as). Por último, a mostra apresenta a exibição comentada do pioneiro Nanook of the North – para uma discussão acerca dos contextos de sua realização e do que se atualiza, cem anos depois de sua produção. O filme será comentado por Marco Antônio Gonçalves, autor de publicações em torno das relações entre antropologia e cinema, entre as quais se destaca a publicação “O sorriso de Nanook e o cinema documental e etnográfico de Robert Flaherty”, artigo aqui também publicado, leitura que recomendamos. Ao lado de Sergio Yanomami e Divino Tserewahú, pesquisador e cineasta xavante, contaremos com a participação no seminário de Vincent Carelli (Vídeo nas Aldeias), Louise Botkay (formadora-cineasta), Daniel Jabra e Paula Berbert (pesquisadorxs atuantes em cinema e artes indígenas). Realizaremos, ainda, um encontro de cunho teórico sobre o tema da confluência Ártico/Amazônia ministrado pela pesquisadora Nina Vincent e pelo professor e curador desta mostra, Ruben Caixeta. Por fim, promoveremos o encontro entre as lideranças Angohó Pataxó, Sergio Yanomami e estudantes indígenas da UFMG (Dogllas Índio Xakriabá, Romário Pataxó, Marciane Yek'wana e Naraynan Pataxó) para discutir de forma mais ampla as questões contemporâneas em relação às violências, processos de genocídio e neocolonização que seguem assolando os povos originários, mas também apresentar suas contínuas ações de retomadas.