A obra de Godard revela o esforço mais tenaz, consequente e influente de todo o cinema do segundo pós-guerra para redefinir as bases da representação cinematográfica do mundo, cujo horizonte ele nunca abandona. Ela instaura uma dialética sui generis entre a desconstrução da representação do mundo promovida pelo cinema narrativo clássico (com seu sistema de gêneros, suas convenções e seus horizontes de expectativa) e a construção de uma nova modalidade de representação, em que a narração vai sendo progressivamente atravessada pelo pensamento. Vários dos seus filmes nos aparecem, assim, como verdadeiros exercícios de pensamento sobre o mundo, regidos menos pela narração do que pela argumentação por meio de imagens e sons.
No desfecho do momento talvez mais alto deste esforço de pensamento, presente na série das História(s) do Cinema (1988-98), Godard associa pela montagem a imagem do seu rosto com um letreiro em que se lê o nome de Jorge Luís Borges, e com um plano de uma rosa, que remete à flor de Coleridge, de que falava o escritor argentino em suas Otras Inquisiciones, num texto célebre que o cineasta diz em over. Assim fazendo, Godard assimila sua figura à de Borges, como se atribuísse à sua persona a função de guardião da memória do sonho edênico (ou da usina de sonhos) do cinema inteiro, assim como Borges parece ter atribuído à sua a função de guardião da memória da literatura inteira.
Pensamento do mundo e memória do cinema se conjugam, pois, no trabalho de Godard. Mas, depois de dar Adeus à linguagem, eis que o guardião sai de cena, num momento grave em que o próprio mundo parece, ele também, cambalear.