É difícil falar de um filme cuja perplexidade da primeira assistência provocou um debate fecundo na época, principalmente entre as feministas, e a complexidade ensejou uma gama de análises rigorosas durante muito tempo. Jeanne Dielman 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, é um filme seco, que não se deixa habitar inteiramente. A estrutura parece simples, graças ao minimalismo da composição e a serialidade das sequências, no entanto, sua relação com a narrativa, e a maneira como separa e ao mesmo tempo amalgama cineasta, personagem e espectador, instiga o olhar analítico a descamá-la.
Dentre as várias camadas de possibilidades de exploração da obra, a que compartilho aqui é aquela que não cessa de me inquietar: a da espectatorialidade. Lanço, então, ao mesmo tempo um convite e um desafio, especialmente, às espectadoras, de quebrar a aridez que Jeanne Dielman, em seu regime de visibilidade, oferece e persistir no olhar. De sofrer a impossibilidade de ser levada pelo filme, e não sucumbir à fadiga da atenção focada, mas realizar esse exercício do ver tão preciso e controlado quanto as ações da diretora e da personagem. A ideia é se deixar aprisionar para se apaixonar pelo ato de ver. Ao lançar esse desafio, o meu é o de tentar explicar que contrato de visibilidade é esse no qual a espectatorialidade exigiria ressalvas e regras?
Três dias da rotina de uma viúva transcorridos em grande parte no apartamento onde mora com seu filho adolescente são acompanhados por uma câmera que mantém quase sempre a mesma distância (a de um plano médio) e que oferece os mesmos, pouquíssimos, pontos de vista. Trata-se de um enquadramento primordial, como diria Ishagpour, aquelas grades rigorosas que emolduram um modo de ver, muito geométrico e perspectivista, que contamina não só as cenas, mas todo o filme, gerando uma ambiência que poderia ser resumida por um fotograma a se reproduzir em abismo. Típico gesto de Chantal Akerman, expressão de um cinema estrutural e corpóreo, profundamente contaminado pelo serialismo de Robert Bresson, o minimalismo de Michael Snow, o hiper-realismo de Andy Warhol, e o anti-ilusionismo de Godard, no qual o plano formal é instituinte do sentido do qual depende toda a narrativa.
Durante três horas as muitas e mesmas tarefas, e ações domésticas, que Jeanne executa são escrutinadas por uma câmera sem piedade, que fixa a cena na moldura retangular da tela, e concede tempo mais que necessário para que cada uma delas se desenvolva por inteiro, para que cada gesto seja minuciosamente executado. Arrumar a cama, lavar os pratos, preparar a comida, escovar os cabelos, dobrar as roupas, guardar as vasilhas, tomar banho, colocar a mesa, limpar a banheira, engraxar os sapatos do filho... cenas corriqueiras, repetidas, e orquestradas de tal maneira que em sua semelhança definem o primo enquadramento, ditam o ritmo do filme, bem como uma duração comum. Jeanne executa essas tarefas meticulosa e sistematicamente, de forma que padrões recorrentes são percebidos – a força, o tempo e a precisão empregada, por exemplo, no modo de enfileirar os talheres, dispor os guardanapos, enxugar os pratos, abotoar a camisa, esfregar o corpo no banho. Revelados juntos pelo olhar direto, frontal e imóvel da câmera que esquadrinha atos e espaços, esses padrões definem um impressionante controle sobre o corpo, de forma a aproximar a personagem estética e fisicamente de um autômato.
As cenas corriqueiras são intercaladas por duas outras atividades que diferem e ao mesmo tempo contribuem para a textura homogênea do filme: uma que parece infinita, de natureza ainda mais automática – a de acender e apagar as luzes –; e outra mais esparsa, também automatizada por sua inserção nessa orquestração – a de se prostituir a tarde e guardar o dinheiro na sopeira da sala. No primeiro caso, a frequência do acender e apagar de luzes institui um micro mecanismo que reproduz, em um ritmo mais veloz, a redundância e a meticulosidade das tarefas ordinárias, que por sua vez reproduzem a própria serialidade do modo de filmar de Akerman. Essa estratégia bressoniana de fazer com que o filme ele mesmo expresse o mecanismo de corte, enquadramento e reprodução mecânica do cinema, em Jeanne Dielman faz coincidir artifício e mise-en-scène, esqueleto e carne, estrutura e narrativa. É exatamente um aparato artificial de reprodução mecânica que, como queria Benjamin, se revela ao deflagrar um outro tipo de reprodução, a que se dá na vida cotidiana: a do trabalho doméstico. E é nessa composição maquínica, da qual obviamente fazemos parte, que a subjetividade daquela mulher dos anos 70 configura-se ao modo de um autômato, ou seja, um ente ou dispositivo, sem consciência, que executa funções imitando um ser animado.
O ato sexual não é mostrado. Vemos Jeanne receber o cliente num plano médio que os enquadra de perfil cortando a cabeça da protagonista e exibindo apenas parte dos braços do estranho, e depois a porta do quarto se fechar. Durante um tempo estamos do lado de fora observando uma parte do pequeno corredor escuro e a porta fechada ao fundo. Ao homogeneizar as tomadas, através dos padrões nas atividades e nos modos de filmar e cortar, Akerman cria, como diz Margulies, uma equivalência entre as cenas que o espectador vê e as que são sonegadas, que só podem ser presumidas como parte do repertório já mapeado dos tempos, cadências, métodos empregados nas outras atividades. Isso quer dizer que o extracampo mais forte do filme – a relação de Jeanne com os homens, o momento do sexo, do orgasmo que poderia levá-la ao descontrole, do prazer que enfim se manifestaria naquele corpo disciplinado – é incapaz de retirar o espectador da prisão visual que ele ocupa junto com a personagem e a diretora. Nesse sentido, o sexo não pode senão entrar nessa cadeia de atividades controladas, contaminado que está pela frontalidade, repetição e angulação das outras cenas, e portanto ser tomado como reprodução mecânica, mais uma tarefa, que Jeanne executa de maneira disciplinada como um títere que não pode ser afetado.
Ao construir um esquema perceptivo para o espectador através do enquadramento primordial que concede essa textura homogênea ao filme e faz equivaler todas as ações da personagem, Akerman iguala dois lugares femininos a princípio opostos: o da mulher do lar que cuida dos afazeres domésticos e se dedica à família; e o da mulher da rua, que vende seu corpo para “fazer a vida”. Essa equivalência se dá às custas de um aparato seco e aprisionante que ao revelar uma vida asséptica, monótona e sem afetos, acaba através da reprodução formal da disciplinarização, denunciando os lugares femininos como lugares de opressão. A rotina e a prostituição são formas de confinamento, que retiram do corpo da mulher as potências da vida, e a tornam um corpo frio que apenas cumpre os protocolos e roteiros diários como se cumprisse uma ordem cujo mandatário está oculto. A escolha de Akerman pelo efeito de mise-en-abyme do filme, de orquestração das cenas que parecem se espelhar ao infinito, de forma a refazer as grades próprias ao cinema e aprisionar o espectador, coloca as ações nesse plano no qual o controle, ou a disciplina, como já dissera Foucault, não tem mandatários. Talvez daí a dificuldade de ler o filme por um viés exclusivamente feminista, e/ou psicanalítico (que a própria Akerman admite se esquivar), uma vez que as causas, os responsáveis, os culpados – o falo, o homem, a estrutura social – nada disso pode ser inferido numa perspectiva que concede ao gesto formal da diretora a justa implicação narrativa e dramática na construção dos olhares e, portanto, dos sentidos. Porém se o olhar esquadrinhador de Chantal e os gestos automáticos de Jeanne compõem uma mesma máquina, poderíamos acreditar que a diretora em sua estrutura rigorosa corrobora com a disciplinarização da personagem. Mais que isso, ao lançar mão desse mecanismo, Akerman conduz o espectador, sobretudo a espectadora, a desenvolver uma cumplicidade com a ordem ali existente, que passa a ser o único lugar de conforto perceptivo para lidar com um filme no qual nada de significativo acontece. Ou seja, a diretora faria a espectadora corroborar também com o lugar de Jeanne. Contudo, ao confinar o confinamento que o dia a dia de Jeanne a submete, o resultado é o inverso, o olhar que deflagra a disciplinarização não poderia compactuar com ela, mas sim afirmar sua existência na pura materialidade cinematográfica. Apesar de ambas, Chantal e Jeanne, procurarem o controle, a primeira no rigor dos procedimentos cinematográficos e a segunda no rigor dos procedimentos domésticos, a diretora tem o poder que institui o mecanismo de reprodução e Jeanne é refém desse mecanismo.
Após dois dias de repetição dessas tarefas meticulosas e insignificantes, algo de perturbador acontece: Jeanne queima as batatas que seriam o jantar daquela noite para ela e o filho. Se um fato tão banal surpreende por ser a força de desestruturação da ordem diária e cinematográfica, é justamente porque em Jeanne Dielman toda a narrativa se constrói através de acontecimentos miúdos, aqueles que seriam cortados dos filmes tradicionais, os restos, as entre-imagens que viram elipses nos melodramas domésticos, de onde Akerman rouba os clichês femininos que irá desconstruir. É nesse cotidiano desdramatizado, de ações corriqueiras desierarquizadas, que o ato de queimar as batatas ganha valor narrativo, e se compara, num grau infinitamente menor, a um turning point, o evento diegético a partir do qual o rumo da história e das personagens se transforma. Aqui a mudança – como todas as alterações de um filme no qual cada tomada parece um “jogo de sete erros” em relação a outra – é minimal. Uma vez que Jeanne se põe a andar pela casa como quem procura algo, a câmera se movimenta para acompanhá-la, uma vez que ela passa a ficar sentada no sofá ou na mesa da cozinha sem fazer nada, a câmera vai durar mais nessas cenas do que nas tarefas diárias.
Caso a espectadora não tenha cumprido a exigência da atenção focada, dificilmente terá chegado a esse momento do filme ou chegou de forma que prosseguirá sem notar as alterações sutis no comportamento de Jeanne e na escritura que daí decorre. Caso tenha enfrentado a resistência da obra, já sabe que, após as batatas, alguma coisa ficou fora da ordem: o cabelo de Jeanne está despenteado, a roupa desalinhada e as tarefas descontroladas. É como se houvesse, como diz Margulies, um animismo dos objetos que se colocam contra ela. O tempo parece sobrar, ela está adiantada na cena, e portanto na vida. Ela para, espera, se perde, esquece o que fazer, não tampa a sopeira após colocar o dinheiro do cliente, anda de um lado para o outro e depois desata a limpar estranhamente os bibelôs que estão guardados na cristaleira da sala de estar, pega e sacode várias vezes o bebê do qual toma conta recolocando-o no moisés sem conseguir fazê-lo parar de chorar. Pequenos movimentos fora do controle, irrisórias estranhezas, restos dos restos dos quais as sequências são feitas, importam enormemente para se ver um micro, porém intenso, transtorno no cotidiano limpo e organizado de Jeanne. Um mísero caos para começar, como numa vagarosa reação em cadeia, a mudar a cadência que fazia daquela estrutura uma ordem.
A partir daí, já no terceiro dia, as expressões de Jeanne que dificilmente se via variar com os estados do corpo, começam a abrigar finos estados de ânimo: preocupação, certa melancolia, talvez um tédio ou uma dúvida se esboce. Quando a ordem é quebrada gradualmente uma consciência parece tomar conta do corpo autômato de Jeanne, ainda que debilmente. Até que o grande corte, o golpe cinematográfico, surge como que vindo do cansaço e da tensão acumulada ali: pela primeira vez vemos a cena de sexo de Jeanne, o homem sobre ela e seu rosto dando as pistas do orgasmo, ela levanta e calmamente abotoa a camisa em frente ao espelho, no mesmo ritmo ela pega um tesoura na penteadeira e de repente, a vemos golpeá-lo no pescoço. Corte seco, golpe seco... um movimento ainda que na mesma cadência dos demais, sobra no meio dos restos, uma imagem surge nas entre imagens e escapa ao enquadramento primordial. Aquele acontecimento narrativo, ainda que sem drama, pela volúpia que o caracteriza como ação, não se encaixa ao controle formal da diretora, é a erupção do insuportável da ordem.
A espectadora que chegou até o final, não teve outra opção senão se fazer cúmplice da personagem e portanto defensora da ordem como único locus existencial onde Jeanne era capaz de se mover. As batatas queimadas representaram a ameaça de aleatoriedade durante todo tempo temida por um olhar já enquadrado numa cadeia estruturada e controlada de eventos. Nesse sentido, a espectadora esteve no lugar disciplinado, não apenas o da cadeira do cinema, mas aquele onde Jeanne estava, o do autômato. Ou seja, era preciso fazer esse pacto de visibilidade, vencer a dificuldade da atenção focada, rever as formas de percepção e relação com a imagem, para estranhar e por isso se deixar marcar pelo lugar do feminino de Jeanne, e como diria Rolnik, produzir um outro corpo no desassossego. Não se trata de sofrer o pathos da heroína, mas sim de uma travessia visual, da difícil incorporação de um esquema perceptivo e do prenúncio de sua quebra. É portanto pela experiência estética e não pela ideológica que a espectadora vive uma opressão feminina, corporal e singular, que passa pelo grito abafado do corte, o golpe seco do enquadramento que mostra o assassinato, e chega à quietude, e novamente ao nada, quando a câmera enquadra Jeanne assentada, silenciosa, num longo plano de sete minutos. Mas o nada não é o mesmo que fazia da espectadora confinada refém da ordem, mas é um fora, uma potência, mais um estado de corpo daqueles que como diz Deleuze “segregam a lenta cerimônia que religa as atitudes correspondentes e desenvolvem um gestus feminino capaz de captar a história dos homens e a crise do mundo.” (1990, p. 235)
Currículo
Roberta Veiga
Professora adjunta do Departamento de Comunicação e do PPGCOM da FAFICH-UFMG. Editora da Revista Devires – Cinema e Humanidades. É coordenadora do grupo de pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas; a mulher está no cinema (UFMG). Tradutora do livro Nothing Happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday, de Ivone Margulies, autora de vários artigos em revistas sobre o tema “cinemas femininos em primeira pessoa: o pessoal é político”, e de capítulos nos livros Feminismo e Plural: mulheres no cinema brasileiro e Mulheres de Cinema.
Como citar este artigo
VEIGA, Roberta. Jeanne Dielman e a travessia visual da espectadora. In: forumdoc.bh.2012: 16º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2012. p. 207-212 [Impresso]; p. 209-214 [Online].
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.I. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERGSTRON, Janet. Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman. In: Devires – Cinema e Humanidades, v.7 n.1, jan./jun. 2010.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: a Imagem- tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução e organização MACHADO, Roberto. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
ISHAGHPOUR, Youssef. O fluxo e o quadro. In: Devires – Cinema e Humanidades, v.7 n.1, jan./jun. 2010.
MARGULIES, Ivone. Nothing Happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday. Duke University Press, Feb 13, 1996.
ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de Subjetividade, v.1 n.2: 241-251, PUC/SP. São Paulo, set./fev. 1993
VEIGA, Roberta. Quantos quadros cabem no enquadramento de uma janela? In: Devires – Cinema e Humanidades, v.7 n.1, jan./jun. 2010.