Quando situados dentro de um cômodo, os filmes de Akerman adquirem o caráter cru e direto do teatro. Uma sequência de ações ritualizadas são encenadas e repetidas. Planos simétricos e distendidos impõem uma qualidade marcante sobre os objetos e as pessoas. Suas personagens nos encaram com uma atenção oblíqua, suas falas são quase-monólogos, seus gestos cotidianos, redesenhados, ganham uma intensidade cerimonial.
A imagem central desse cinema contido, feito de sobras, consiste num espaço vazio e quadrilateral¹, onde umas poucas pessoas são vistas executando tarefas simples. Na maioria das situações é uma mulher sozinha, nas mais raras e surpreendentes, a própria cineasta – ela limpa, come, cozinha, troca os móveis de lugar, se enrola num cobertor e escreve.
Claro que o interesse de Akerman pelo cotidiano emerge de uma quantidade de diferentes discursos que conformaram práticas políticas e artísticas nos anos 70. A figura da mãe, as discussões sobre a autonomia feminina e os filmes avant-garde da década de 1970 foram elementos que inescapavelmente deram forma a sua produção. Como resultado, seu trabalho obteve uma repercussão profunda entre os mais variados grupos. Por exemplo, a materialidade ampliada dos afazeres domésticos em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles foi de tal forma impressionante que inspirou Luce Giard, um dos coautores de The Practice of Everyday Life, a evitar a generalidade típica dos relatos etnográficos em suas coletâneas de narrativas orais “na cozinha”². As lições de Jeanne Dielman..., para a cientista social, residem na maneira como ela desfamiliariza o cotidiano, tornando-o mais singular e concreto. Com sua instrumentalidade positivista, tal honrosa menção deixa escapar as consequências do foco excessivo no cotidiano, custo que Akerman dramatiza ao substituir a cozinha por um quarto de portas fechadas.
O cotidiano de ambas, mãe e artista, aparecem com frequência nos filmes de Akerman. De fato, o desejo de libertar o dia-a-dia da artista da banalidade maternal é, talvez, uma das forças motrizes da transmutação da vida diária em Akerman³. Apesar da relação mãe filha ser carregada de psicologismos, a representação de Akerman não é, definindo de saída, o ponto de distinção. Ao bloquear projeções psicológicas, ela cria personagens opacos. A orquestrada atenção com que executam suas tarefas são depoimentos firmes, às vezes mesmo maníacos contra tal fusão.
A problemática relação entre a rotina diária de uma mulher e a criatividade de seu cotidiano é iluminada através de um voo sobre um quarto isolado no qual se experimentará sua arte sem disfarces. É nesse quarto isolado que Akerman realiza suas performances, seus rituais de ordem e desordem, como que levando à cabo um contínuo experimento estético. Esse quarto, sugiro eu, é especialmente carregado com uma obsessividade que aponta para a problemática central de seus filmes – a de uma pessoa autônoma.
Um espaço meta-teatral como esse é característico das performances contemporâneas que querem comunicar, entre os vagos contornos da arte e da vida, as qualidades expressivas da obra. Akerman fez, principalmente, filmes, vídeos e instalações com projeção de imagens. Esse quarto como uma partição, um lugar e tempo adjacentes, e ainda destacado do resto, é similar, em sua função aos espaços celulares das experimentações da body art⁴. Pode então o “quarto Akerman” servir de caminho para repensar a relação de seus filmes com seu trabalho artístico?
Podemos nos aprofundar no estudo da teatralidade de Akerman através da figura da artista, persona que mais nitidamente encontramos em seus filmes exibida de frente, dentro de um quarto lacrado. Essa configuração espacial – o quarto Akerman – torna-se mais evidente a partir do momento em que a cineasta começa a fazer vídeo instalações com um ou múltiplos canais. A cineasta reutiliza longos planos de seus filmes em instalações como D’Est: Au bord de la fiction (1995); Self-portrait-autobiography in progress (1998); Woman sitting after Killing (2001); e From the Other Side (2002)⁵. Tais excertos-como-auto-citações são especialmente expressivos no contexto de sua mudança do universo da sala de cinema para a galeria de arte, pois relevam um elemento distintivo da identidade artística de Akerman – espaços autocontidos.
Nos filmes, Akerman explora as implicações do direcionamento em favor do “ao vivo” que começa no anos 60 com a performance e a body art. Ela adota um formato presencial e investe suas ações no quarto com uma postura de declaração. A duração de sua presença é instância de um mundo contido, experiencial. Um pequeno quarto torna-se cenário de transformação das ações cotidianas em imagens de uma atenção obsessiva.
Cenas num quarto com o artista entre quatro paredes reinventando sua própria versão de uma casa é uma estratégia familiar para a performance e a vídeo arte. Viagens existenciais, bem como novas formas de escrever com o próprio corpo, encontram seu melhor formato de exibição no conciso espaço de um quarto e de um monitor de vídeo, ao final dos 60 e 70. Room Piece de [Vito] Acconci, performance na qual ele desloca objetos pessoais para um espaço neutro, foi um exemplo dessa tentativa de redesenhar a linha divisória entre arte e vida ao fazer de objetos diários objetos de cena. O quadro “encaixotado” foi usado como um análogo da televisão em Semiotics of the Kitchen em que Martha Rosler brande seus utensílios domésticos ao ironicamente dar escape à sua frustação. O espaço apertado pode também ocasionar um giro acrobático ao redor das paredes, tentativa de andar pelo cubo⁶. Esse é o mote de Wall Floor, de Bruce Nauman, em que ele tenta pousar sobre as paredes e cai com um som retumbante e recorrente. Com frequência, o monitor é usado ao vivo como um espelho para guiar e garantir que os cantos da parede caibam nos cantos do quadro. O contraste entre a solidez fixa das paredes e o fracasso do corpo ao desafiar a gravidade é um instrumento que dá a ver o principal objeto da performance – a marcação rítmica de um propósito obsessivo, a repetida e patética insistência de quem o agencia.
Proponho, portanto, ler o quarto de Akerman como uma espécie de instalação da artista, um palco miniatura no qual a cineasta reencena seu agenciamento como artista. Apesar da afinidade desse quarto com outros vídeos e a performance, o que eu denomino “La chambre Akerman” pode ser encontrado apenas em seus próprios filmes. Isso porque esse quarto adquire sua raison d’etre performativa para ela por sua relação com outros espaços. O ímpeto primeiro em relação ao quarto é erigi-lo como um espaço separado, rigorosamente demarcado, para o self.
Tanto quando todo o filme se passa num cômodo, como em La chambre I ou Saute ma ville, como quando ele delimita, como em Je Tu Il Elle ou Demain on déménage (2004), uma necessidade de isolamento, o quarto Akerman opera como revelador do conflito entre autonomia artística e as tentações de outras formas menos produtivas e obsessivas. Enquanto tal embate pode ser experienciado por todos, em seus esforços de moldar o cotidiano e fugir de sua indeterminação, em Akerman a temática da polaridade entre as rotinas domésticas e uma criatividade livre, solta, incita tanto ao rigor formal quanto às suas frenéticas descargas de energia.
Em meu tour por alguns dos cômodos de Akerman – em Saute ma ville, Je Tu Il Elle e L’homme à la valise – darei atenção aos modos como o cotidiano da artista é afirmado, representado e performado.
A autonomia espacial dos cômodos de Akerman é sempre relacional. Pode traduzir uma sensibilidade fóbica a intrusões externas, como em L’homme à la valise ou pode ser, como em J’ai Faim J’ai Froid, resultado de uma acurada representação de desejos fragmentados: uma jovem mulher tem sua primeira experiência sexual fora do quadro enquanto vemos sua amiga satisfazendo seu próprio desejo ao comer um ovo cozido. Eis o foco preciso das temáticas e estéticas de Akerman – sempre o ato de isolamento de um outro lugar.
O crítico de cinema Jacques Polet aponta que a pan de 360 graus em La Chambre, um filme experimental feito em 1971, mapeia um movimento literal de circularidade que se completa com a reversão da pan, como se a câmera houvesse delimitado o espaço minimamente necessário para a performance⁷. De maneira similar, em Hotel Monterey, quando a câmera se dirige aos exteriores uma mesma fobia de exteriores do espaço fílmico é registrada pela extrema cautela do seu movimento⁸. A ambivalência que Akerman confere ao mundo exterior possui um significativo paralelo na facilidade com que ela filma os apartamentos e as marcantes geometrias da cidade.
Ao ser indagada sobre o porquê de haver retornado, em La Captive, para suas rigorosas composições de apartamentos, Akerman disse que não seria preciso ir tão longe: “é a mãe”, ela diz sorrindo⁹. A sentença de abertura de Molloy “I am in my mother’s room” transforma-se na obra de Akerman – “I am in a room by my mother’s”. Tomando conhecimento de como as imagens domésticas de sua mãe e de sua tia na cozinha estão marcadas em sua memória, entende-se que o protegido embora sufocante espaço de sua casa é o primeiro objeto para se testar sua autonomia criativa.
Em Saute ma ville, primeiro filme de Akerman realizado em 1968, uma Chantal Akerman dinâmica e cheia de energia sobe os degraus que vão dar num minúsculo apartamento, ocupado basicamente por uma cozinha. Sua determinação e precisão são evidentes, mas as ações seguem um padrão que não fica de todo esclarecido. Ao engraxar seus sapatos energeticamente, a personagem de Akerman prossegue com o mesmo gestual obsessivo até engraxar suas pernas e manchar de preto o chão ao seu redor. O mesmo gesto parece produzir de uma só vez desordem e organização.
Por um momento, somos capturados pela tentativa de diferenciar uma da outra. O prazer que se obtém por testemunhar tais ações sendo levadas a cabo deriva da rapidez com que bagunça e organização, uma em forte contraste com outra, parecem se substituir reciprocamente.
O enquadramento de tais gestos sem explicação pode ser comparado, por seu olhar restrito, aos filmes minimalistas, que com seus planos gravados de uma só vez, acompanham uma única ação sendo completamente executada. Mas se a ação em Hands Scraping (1968), de Richard Serra, chega ao final com uma tela branca e limpa, o espaço de Akerman não é neutro. A cozinha imediatamente define um espaço doméstico, e outros indicativos sociais se fazem marginalmente presentes.
Com a cozinha totalmente em ordem, Chantal come espaguete, derrama vinho e comida sobre ela mesma. Ela então apoia a cabeça sobre o fogão e acende um fósforo. A explosão acontece sobre um plano fixo, e é apenas um som. Aqui, ela nos oferece uma imagem literal de uma câmara de compressão, consequência implícita desta louca química realizada por ela em todos os seus espaços de quatro paredes.
O filme anuncia, literalmente e com um estrondo, a entrada de Akerman na maturidade artística. É um fato conhecido entre professores de cinema que o suicídio é um dos assuntos favoritos nos primeiros filmes de adolescentes. E de fato seria interessante checar se estes que persistem em viver criativamente declaram tão alto, como Akerman nesse ritual de passagem fílmico, suas futuras ferramentas, elementos, gêneros.
Escovas, espaguete, água e sabão dançam como que investidos de anima em Akerman. Neste primeiro filme-quarto passeiam humor e tragédia, o espalhafatoso e as ações rigorosamente regidas se alternam numa indistinção desconcertante. Saute ma ville apresenta em rápida sucessão, e como se pertencessem à mesma ordem de acontecimentos, os atos de limpar, cozinhar e cometer suicídio. Essa perversão das categorias, do banal ao dramático, da ação encenada literalmente à ação apenas sugerida da morte, é apresentada de frente, enfatizando a paradoxal equivalência dessas ações.
Com Jeanne Dielman chega uma lição estrutural: a crua e dura separação entre a cena e o obsceno, define, como uma preocupação excessiva com o dever doméstico, substitui o desejo relegado ao quarto oculto. Em Akerman, cada espaço singular observado por um período longo de tempo será evidência do custo dessa economia. Exigirá uma testemunha, como consequência de tal economia. Numa exposição didática da fragilidade da ordem, o quadro permanece o mesmo ao cair de um garfo, ao permanecerem sujos os pratos, e ao derrubar da escova de engraxar sapatos. Essa intrusão dos objetos que se movem por conta própria dá plasticidade ao inesperado, ao indesejado, pensamentos recorrentes que personagens obsessivo-compulsivos tentam suprimir.
O excesso de dúvida é o fenômeno mais comum de tal condição. Em Monomania: the Flight from Everyday Life in Literature and Art, Marina Van Zuylen explora brilhantemente como o pânico do “mutável” está engendrado na ideia fixa e no comportamento obsessivo¹⁰. Ainda que os rituais sejam uma parte importante do dia-a-dia e pessoas normais se concentrem para afastar o que é irrelevante, para o obsessivo-compulsivo a manifestação da ambivalência é insuportável. A submissão a ordens e horários impostos sempre parece melhor do que ter que decidir por conta própria. A atividade maníaca é uma tentativa de se desviar de um senso de autonomia deprimido através de uma competência restrita e específica.
A fuga de situações consideradas contingentes por demais, muito confusas para tolerar, é encenada através de ordens inventadas, séries ou sequências imaginárias e uma falha de raciocínio, principalmente o raciocínio lógico. Em suas descrições das sinapses típicas resultantes do comportamento obsessivo, Freud declara que: “a repressão é efetuada não por meio da amnésia, mas por uma série de conexões causais, que surgem devido a uma abstinência de afetos”¹¹. “Atos compulsivos, dois estágios diferentes, no qual o segundo ato ou pensamento neutraliza o primeiro” são para Freud outra expressão da inabilidade de lidar com o conflito¹². Akerman mimetiza essa causalidade severa com ações e palavras que se seguem uma após a outra em contínua e auto-anuladora sucessão.
Há uma regra não declarada no cinema de Akerman que supõe que, caso ela se retire para um quarto, uma perversão de categorias e registros certamente irá acontecer. A energia oscilatória mantida no quarto experimental trancado é inspirada nas dinâmicas de indecisão e dúvida da neurose obsessivo-compulsiva. O cálculo de medidas, contagem e catalogação tornam-se inválidos, em suas tentativas frustradas de alcançar a certeza absoluta. E ainda, ao retratar essa impossibilidade, Akerman reafirma sua própria independência expressiva.
É importante observar como em seu trabalho a indecisão associada ao pensamento obsessivo é imediatamente transposta para o espaço de alguém. Em Le Déménagement (1992), um monólogo feito para a TV francesa, a personagem interpretada por Sammy Frey começa por medir as dimensões de seu novo apartamento. Com passos medidos, ele caminha duas vezes pelo comprimento e depois pela largura, obtendo diferentes resultados. A racionalidade é negada pela necessidade de repetir a ação, e esse primeiro traço físico da dúvida é acompanhado por uma enunciação verbal de uma gama de permutações entre as possíveis escolhas amorosas da personagem.
“Juliette, Beatrice, Elisabeth – amei a todas com imenso amor... Elisabeth era de Toulose, Beatrice era de Toulose, Juliette era de Toulose, e nenhuma delas tinha um cão. Cada uma tinha um quarto. Elisabeth tinha um quarto, Juliette tinha um quarto, Beatrice tinha um quarto. Nenhuma tinha um cão. Havia uma forte concentração de toulosianas num apartamento em Paris”. A recusa de Akerman em resumir sua lista a uma categoria, e sua insistência, ao contrário, de nomear cada um dos termos em sua série, faz eco a escritores e artistas como Beckett, Sol LeWitt e Robbe Grillet, que desafiaram a lógica clássica através de sequências absurdamente extensas de pensamento obsessivo¹³.
Tais permutações ilógicas são melhor demonstradas dentro de um cômodo de mobílias esparsas, cercado por três paredes rígidas entre as quais o recital do personagem é revelado em toda sua crueza. Desse olhar, Je Tu Il Elle é exemplar, por sua consistência estrutural que se desdobra em três sequências autônomas. Discutirei aqui a primeira dessas sequências de quarto.
A primeira declaração do filme – E eu parti – é pronunciada sobre uma imagem de Akerman sentada ao lado de uma pequena mesa de cabeceira, de costas para nós. O quarto está totalmente mobiliado. Vemos uma cadeira, uma pequena mesa, uma mesa de cabeceira, uma cômoda e uma cama. Num filme em preto e branco, ela dá início a futuros deslocamentos de referência, ao anunciar que, no primeiro dia, ela pintou a mobília de azul e no segundo, de verde.
O uso feito por Akerman da descrição verbal com referências esporádicas ao que vemos na tela cria uma indicialidade erodida. Desde o começo, seus indicadores temporais são desvinculados por uma inexplicada elipse de dias. Essa instabilidade descritiva gradualmente localiza a personagem e a cena num estado limite. O momento limite em um rito de passagem é frequentemente acompanhado de um “desfacelamento” de posição e status, a perda de algo que se possuía, e um estranho estado de identidade não-formada. E, com efeito, por esse processo não ser investido de psicologismos, tal categoria originalmente antropológica descreve bem, aqui, a estética de desnudamento de Akerman, enquanto ela desordenadamente cobre seu corpo com roupas. Nesse olhar não-psicológico sobre a indeterminação, personagem e espaço precisam coincidir.
Das muitas peças de mobília na sequência inicial de Je Tu Il Elle, vemos apenas duas serem empurradas, não para fora do quarto, mas para fora do quadro. Ela move um colchão para cada canto do quarto, catalogando todas as posições possíveis de vez em vez. Esses planos iniciais mapeiam os limites da clausura da personagem. Filmando em eixos perpendiculares às paredes, Akerman encena um tour descritivo de cada uma das quatro paredes do quarto. Posicionando o colchão e ela própria em relação à câmera, ela registra a si mesma no processo da construção da mise-en-scène: fisicamente e opticamente, ela está mapeando o quarto. Seu único objeto de cena, o colchão, torna-se um elemento de composição – ela deita nele, ou senta-se sob suas sombras enquanto ele se apoia contra a porta.
Seja olhando para a câmera, seja se enquadrando com perfeição, esses planos confirmam sua maestria de mise-en-scène. O prolongamento de suas posturas após cada movimento a reduz a um objeto móvel. O artista de performance Joan Jonas descreve um processo similar em seus próprios vídeos coreografados: “a princípio eu tratei meu corpo como material para ser movido ou carregado por outros, rígido como um espelho – para ser movido por ou mover objetos de cena, para ser parte da pintura para fazer a pintura”. A simplicidade de seus movimentos e de sua relação com seu objeto cênico também pode ser comparada à “concentração proposital” com a qual Yvonne Rainer manuseia os objetos em suas apresentações de dança¹⁴. Esse movimento foi essencial na trajetória da coreógrafa em direção a sua reconfiguração minimalista do cotidiano. Se as ações de Akerman se assemelham ao palco e à coreografia da dançarina, é porque no cinema a desestabilização do cotidiano começa com uma manobra abstrata: a teatralização do espaço. Os objetos perdem suas pretensas funções e a cena se desnuda para o começo do ato.
Em The Stage life of objects, Andrew Sofer declara que “o objeto de cena não é definido pelo tamanho ou por potencial portabilidade... o objeto deve surgir como resultado da intervenção do ator... um objeto de cena é algo que o objeto se torna, não algo que o objeto 锹⁵. Akerman abre seu espaço e introduz novos objetos cênicos, fazendo malabarismos com eles, como o fez Beckett antes dela. São folhas de papel, uma caneta, uma colher e um saco de papel.
Ela agora escreve uma carta furiosamente, e come açúcar de um saco. Não é por acaso que, nesse segundo momento de encenação da indeterminação, da posição limiar da personagem de Akerman, ela inicia uma sequência de “desfazeres” obsessivos. Cartas são os instrumentos perfeitos para o exercício de suspensão da narrativa pelo realizador, uma vez que no drama convencional, cartas e documentos são marcadores centrais de tempo e local. Mesmo antes, há cartas lidas que indicam uma mudança de direção à audiência, satisfazendo a necessidade de explicação e de mudanças do roteiro. Aqui, a folha de papel assinala simplesmente o começo de outro ciclo de trabalho. Mas não importa que as folhas de papel escritas se multipliquem. Nos filmes de Akerman, ver a personagem em ação é também testemunhar sua indecisão.
Ela escreve 3,6 e então 8 páginas. Ela depois enriquece sua coreografia ao adicionar outro movimento rítmico: uma distraída, embora determinada, colherada vertical em direção a um saco de papel. Tais ações comuns, mundanas, em Akerman são carregadas de ritmo e estilo. Concentração e distração se alternam como afetos enquanto a colher e a caneta quase trocam de função.
A colher mergulha mecanicamente no saco de papel minimizando os gestos laterais de apagamento. Riscar é outra mise-en-scène do escrever, uma mudança na direção do lápis. Cada movimento torna-se, nesse espaço rarefeito, o da escrita. Sua absorção na própria escrita e nos arranjos do chão chama nossa atenção para o trabalho da mise-en-scène. Divididas entre o formato padrão e pistas de um rascunho de roteiro, as páginas tornam-se marcadores espaciais para a estética de Akerman, para sua particular interseção nas narrativas e séries¹⁶
A declaração de Carl Andre, que diz que “um trabalho não está localizado num lugar, ele é aquele lugar. E quando um corpo é usado como lugar ele é marcado”¹⁷ faz ressonância à demarcação territorial de Akerman. Sua relação objeto/tema é atravessada por marcas dessa forma. Com uma fisicalidade mais próxima da performance que da narrativa cinematográfica convencional, esse cenário suspende a própria noção de personagem, substituindo o self por uma necessidade de atualização da pessoa do discurso.
Ao posicionar as páginas cuidadosamente sobre o chão, preenchendo o espaço entre sua cama (inatividade) e a câmera (sua atividade criativa), ela demarca as narrativas seriais como seu território artístico. Sua repentina aparição pela lateral da câmera depois de engatinhar sobre as páginas é o primeiro sinal que obtemos desta transversalidade. Visualmente ela produz uma imagem de concentração intencional, mas também uma superfície carregada de potencial narrativo.
Fade outs e pausas sustentam uma demarcação nítida do tempo, nos fazendo respirar com Akerman enquanto ela e a narrativa são mantidas em suspenso. Quando ela se despe deitada na cama para não desperdiçar sua energia, notamos a qualidade de alguém que ocupa ao mesmo tempo a posição de pai e filho. Uma Akerman na horizontal conclui um dos muitos ciclos de atividade e performances na primeira parte do filme. A cama é reafirmada como um lugar crucial na iconografia de Akerman. Nesse filme, mais que em qualquer outro, o pêndulo entre a cama e o trabalho assinala o ritual de comprometimento de Akerman com a questão do fazer artístico.
Em Lettre de cinéaste, Akerman nos espia de debaixo de suas cobertas. “Se você quer fazer um filme”, ela diz, “você precisa acordar. Então vamos acordar!”, ela diz se espreguiçando. Entre a passividade preguiçosa da cama e fazer um filme, um primeiro passo, o de se levantar, é necessário.
Em Saute Ma ville, Je tu il elle, The Man with the suitcase, Tomorrow we move o preâmbulo para um filme, seu primeiro movimento, é uma cena na qual a personagem chega num apartamento e mapeia seu domínio.
The Man with the suitcase começa no mesmo ponto em que Meeting with Ana termina: com a protagonista voltando e reivindicando seu espaço após algum tempo fora. Ela abre as janelas, checa a geladeira, joga fora a comida vencida. Após descobrir que seu hóspede, um amigo de um amigo, não havia deixado o apartamento ainda, ela vê frustrados seus planos de começar a escrever. Num sussurro pré-verbal ela se retira, com cadeira e máquina de escrever debaixo do braço, para seu quarto. Daí em diante, Akerman mapeia obsessivamente as ações e a presença do intruso desenhando cronogramas elaborados de suas idas e vindas.
O filme descreve uma armadilha doméstica paradoxal. No ponto máximo de seu exílio em seu quarto, Akerman segue o invasor através de uma câmera de vigilância. Esse emblema do controle autoritário é, claro, uma imagem condensada de todo o filme.
Ela não pode escrever mas ela usa seu corpo para dividir o tempo e o espaço. Ela também carrega uma bandeja, uma espécie de mala, carregando comida e um relógio pelo apartamento. Ela assim tematiza seu próprio exílio bem como sua própria obra (duração e cozinha sendo as imagens sumárias de Jeanne Dielman).
O corpo de Akerman cabe perfeitamente aos propósitos de contraste da brincadeira visual. O homem que não vai embora é muito alto e distraído, enquanto Akerman é muito baixa e super atenta. A corporalidade, os contrastes entre os corpos e a demora em se auto-expressar sugerem uma afinidade entre The Man with the suitcase e Je tu il elle. Para remeter à escrita adiada, ela exagera nos gestos ao invés de falar, tomando emprestado a expressividade da comédia silenciosa.
A presença de Akerman em seus filmes satisfazem uma necessidade profunda, pessoal. Seu movimento em direção ao musical e à comédia, gêneros que triunfam pela incongruência e pelo fracasso foram tentativas anunciadas de romper com a perfeição estruturalista de Jeanne Dielman. Especialmente quando ela aparece neles, uma animação excessiva, maníaca dá energia à sua mise-en-scène: em The Golden Eighties ela rege o canto de Magali Noel com frenética e coordenada gesticulação; ela embola e acelera suas falas em Lettre de Cinéaste, ela toma todas as suas vitaminas de uma vez para ganhar tempo em Sloth. Tais ações exageradas tornaram-se uma marca de Akerman, uma série de temas e estratégias exploradas por ela cada vez que sente a necessidade de se afastar de sua seca e minimalista sobriedade.
Dada sua motivação ritualística, em favor de uma quebra da rigidez na formulação, tais performances podem ser desencadeadas apenas pela diretora. Ao mesmo tempo em que o quarto Akerman não induz ao psicodrama, não está propício a uma exposição de si mesma como indivíduo. Antes de um propósito referencial, sua presença nos filmes tem um propósito performativo.
Se eu suponho que os filmes mais potentes de Akerman são motivados por seu interesse em reencenar os elementos de sua autonomia artística, como podemos ampliar essas considerações para além de sua presença literal?
Como comprova o sucesso de Jeanne Dielman, gostaria de sugerir que, para Akerman, qualquer personagem obsessivo basta. Como uma personagem, o obsessivo permite uma encenação de uma peculiar criatividade – uma revisita ao cotidiano como questão. A arte de Akerman reside em criar situações para que suas questões proliferem. Ela consegue fazer isso com maior sucesso quando o rigor de seus enquadramentos e a arquitetura do cenário unem forças com a compulsiva necessidade de certezas de uma personagem.
// (N.T.) A respeito do título deste ensaio, a autora faz referência a dois filmes de Akerman: La chamber (1972) e La captive (1999)
Currículo
Ivone Margulies
Professora de Cinema no Hunter College e no Graduate Center da Universidade da Cidade de Nova Iorque, autora de In Person: Reenactment in Postwar and Contemporary Cinema (OUP, 2018) e Her Nothing Happens: Chantal Akerman's Hyperreallist Everyday (Duke UP, 1996), no Brasil, Nada Acontece: O cinema hiper-realista de Chantal Akerman (Edusp, 2016).
Como citar este artigo
MARGULIES, Ivone. La Chambre Akerman: a cativa enquanto criadora. Tradução de Carla Maia. In: forumdoc.bh.2006: 10º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2006. p. 168-176 [Impresso].
Notas
1. Patterson, Patricia e Manny Farber. “Kitchen without Kitch: Beyond the New Wave” Film Comment 13:6 (November-December 1977): 47-50
2. Luce Giard cita Chantal Akerman e Delphine Seyrig em Jeanne Dielman, 23 Quai du commerce, 1080 Bruxelles, para justificar seu método de representação das relações femininas com o cozinhar e com o corpo. Ver de Certeau, Luce Giard e Pierre Mayol. The Practice of Everyday Life: Living and Cooking, vol.2. Ed. by Luce Giard. Trans. by Timothy J. Tomasik. (Minneapolis: Minnesota Press, 1998): pp.154-155, 199.
3. Variações múltiplas do trabalho e do cotidiano da artista são temas de seus filmes e vídeos: News from Home (1976); Meetings with Anna (1978); L'Homme à la valise (1983); Family Business (1984); Lettre d'une cineaste: Chantal Akerman (1984); Letters Home (1986) um filme de uma peça de teatro sobre as cartas de Sylvia Plath; Le Marteau (1986) sobre o escultor conceitual Jean-Luc Vilmouth; Portrait d'une Paresseuse (Sloth, 1986) no qual sua inércia tem um violoncelo como música de fundo; Les trios derni`eres Sonates de Franz Schubert (1989) um filme sobre Alfred Brendel tocando Schubert; Em Trois Strophes sur le nom de Sacher (1989) Sonia Wieder-Atherton executa um solo no violoncelo; Chantal Akerman par Chantal Akerman (1996); Le Jour où (1997) no qual ela endereça à câmera suas indecisões criativas; Avec Sonia Wieder - Atherton (2002); Demain on Deménage (2004).
4. Em “Personal Pronouncements in I…You…He…She and Portrait of a Young Girl at the End of the 1960s in Brussells”, Maureen Turim compara as performances de "tarefas domésticas" de Akerman à coreografia de Yvonne Rainer e a outros artistas americanos da performance. Ela compara a primeira cena de Je tu il elle com Thomas Lips de Marina Abramovic, no qual a artista nua come lentamente um quilo de mel com uma colher de prata, e “[progride]…através de uma série de autoflagelações violentas”. Turim, em Identity and Memory: The Films of Chantal Akerman. ed. Gwendolyn A. Foster (Trowbridge: Flicks Books, 1999): 24-25. Veja também Nothing Happens: Chantal Akerman's Hyperrealist Everyday (Duke U. Press, 1996), p. 48-50.
5. O fácil adentramento dos longos planos de Akerman no universo da arte mostra como o rigor dos filmes minimal-estruturalistas tem como filtro uma vaga sensibilidade pictórica. A natureza holística de um plano com ações simples que vão resultar num rol de mudanças sutis conforma-se, com desafios mínimos, à duração dispersa do olhar na galeria.
6. Numa versão mais recente de Sorry you guys Chantal Michel repete essa noção menor de pathos. Sua câmera gira, e se ela vence desafios comparáveis com os de Bruce Nauman através de seu próprio corpo é mais devido a sua habilidade cinematográfica que pró-fílmica.
7. Jacques Polet. “La problématique de l'enfermement dans l'univers filmique de Chantal Akerman” Chantal Akerman (Cahier # 1, Atelier des Arts,1982.), p. 171.
8. Ibid. p.173.
9. Akerman em entrevista com Dominique Paini gravada em DVD sobre La Captive, Artificial Eye.
10. Monomania: The Flight from Everyday Life in literature and Art (Ithaca: Cornell University Press, 2005) de Marina Van Zuylen foi leitura essencial ao convocar a principal ligação na estética de Akerman entre a obsessão e o problema da autonomia.
11. Sigmund Freud. “Notes upon a case of Obsessional Neurosis”. Collected Papers vol III (New York: Basic Books, 1959), p. 367.
12. Freud. “Notes upon a case of Obsessional Neurosis”, p. 330.
13. Rosalind Krauss, “LeWitt in Progress,” In: Originality of the Avant Garde and Other Modernist Myths (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985).
14. Sally Banes describes this particular transformation, in dance from everyday to art, Terpsichore in Sneakers (Middletown, Connecticut; Wesleyan University Press, 1987), p. 43.
15. Andrew Sofer. The Stage life of Props (Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2003), p. 12.
16. Ver Nothing Happens: Chantal Akerman's Hyperrealist Everyday (Durham:, Duke U. Press, 1996): p. 109-118. O ensaio de Jean Narboni "La quatrième personne du singulier(jet u il elle)” Cahiers du Cinéma 276 (May 1977), p. 5-13, chama atenção para a cosmogonia das estratégias de Akerman de dar nome e contar ao recriar seu mundo desde o princípio.
17. Willoughby Sharp. “Body Works,” in Avalanche (Fall 1970), p. 14.