De costas, se afastando da câmera, uma mulher jovem de cabelo afro preto curto, calça jeans e blusa amarela caminha descalça na praia em direção ao mar, enquanto ouvimos a voz off da repórter, Beth Salgueiro, dizer: “a gente sabe que o aborto, de uma forma ou de outra, faz parte da vida de cada uma de nós, é uma questão que precisa ser encarada de frente pela sociedade”. A tomada se aproxima rapidamente, a jovem se vira com a feição semicerrada pela claridade, as sobrancelhas proeminentes, e nos interpela de 1986, com um olhar receoso. Interpela a nós, mulheres de hoje, que estamos no contracampo, enquanto o off continua: “se não começarmos essa discussão com toda nossa energia, quem é que vai começar?”.
Não fosse pela materialidade do vídeo, sua conformação técnica, por seu estilo de entrevistas bem próximas, o microfone bolota na mão da repórter, pela trilha sonora da época, algo de ruidoso e um colorido embaçado, a interrogação de Por que não? – filme de Angela Freitas, feito no Recife, junto ao Instituto Feminista para a Democracia (SOS Corpo) – não viria do passado. Poderia vir de um mês atrás, quando a ministra Rosa Weber, prestes a se aposentar, defendeu o julgamento pela descriminalização do aborto até 12 semanas e a votação foi suspensa pelo ministro Luís Roberto Barroso, que alegou, entre outras, a necessidade justamente de um debate maior da sociedade sobre a matéria em questão.
De um ano antes (1985), em Lei dentro, lei fora, de Vik Birkbeck, acompanhamos, do lado de fora, na rua, uma mobilização de mulheres a favor da descriminalização do aborto, e, do lado de dento, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o esforço da deputada petista Lúcia Arruda em esclarecer o projeto de lei que prevê a garantia do aborto seguro pela rede de saúde pública nos casos já previstos no código penal: risco de vida e estupro. Se em 1985, como vemos no video de Birkbeck, a tentativa de Arruda, após muita confusão e debate, logrou êxito, logo depois a lei foi revogada pelo então governador do Rio, Leonel Brizola, que cedeu às pressões da Igreja.
Por que não? e Lei dentro, lei fora se complementam.
No primeiro, ouvimos as vozes de mulheres pobres, das periferias, a testemunharem suas experiências violentas em relação ao aborto, ou o depoimento de profissionais a atestar o risco dos danos corporais e da morte por conta das tentativas rudimentares e perigosas de provocar o próprio aborto. Apesar da indignação causada pelo relato dessas mulheres que não podem optar por um destino que não seja o do trabalho reprodutivo, Angela Freitas deposita esperança nas mais jovens que, diferente de outras abordadas na rua, entendem o aborto não como crime, ou pecado, mas como uma possibilidade de ação quando não há outro caminho. Elas, porém, muito antes, pretendem conversar, esclarecer e instruir a filhas que terão um dia sobre as responsabilidades do sexo e os métodos anticoncepcionais. É essa crença no futuro que, no final, vai reverberar no desejo do filme de que de fato comece o debate sobre a maternidade como escolha.
Em Lei Dentro, lei fora, a deputada Lúcia Arruda luta de dentro de uma instituição androcêntrica, justamente para que, mesmo com a proibição e com a falta de assistência, se façam representar legalmente as muitas vozes que Por que não? reúne: “Esses abortos, já estão sendo feitos nas piores condições em clínicas clandestinas, com agulhas de tricô com permanganato de potássio. Estão matando as mulheres. Então eu gostaria de uma coerência daqueles que falam em nome da vida, daqueles que falam em nome de Cristo. Pois é isso... sobre o aborto tudo vem para confundir e nunca simplificar né? Por isso não se sai do lugar?”. Apesar do diagnóstico preciso, Lúcia nos ensina muito mais do que seu discurso do lado de dentro da lei. Grávida à época, é do lado das outras, de fora da lei, quando entrevistada por Vik, que ela nos lembra o modo como a maternidade está ligada ao tempo e às condições de vida daquela que será mãe, e se mostra confiante de que “uma maternidade alegre, pois mais integrada à vida da mulher”, ainda virá. Nesse momento, a deputada ecoa a esperança das mobilizações feministas pela justiça social e a legalização do aborto, contra o sexismo, o fascismo e a maternidade compulsória, que o curta apanha em seu entusiasmo e monta ao som de um reggae contagiante. Ali o video parece encarnar e endereçar a todas nós uma ambiência dos anos 80 ligada à promessa de um futuro mais feminino:
Do ponto de vista do direito das mulheres, na década de 1980 muitos países já haviam legalizado a interrupção voluntária da gravidez ou estavam em vias de legalização, direito conquistado após intensas mobilizações, que contaram com a participação massiva das mulheres, a exemplo do Reino Unido, em 1967, da Suécia e da França, em 1975, e da Itália, em 1978, entre tantos outros. Por força dessa referência internacional, da abertura política e da constituição de movimentos feministas, nos anos 1980 a pauta da legalização e da descriminalização torna-se incontornável e, por vezes, ganha centralidade entre os movimentos de mulheres no Brasil. (COSTA, 2023, p. 27)
O que ambos os vídeos, agora filmes-arquivos, nos lembram, com seu frescor ainda do início do processo de apropriação das câmeras pelas mulheres, é da possibilidade de escolha. Nesse caso, do quê, do como e do para quê, e para quem filmar. Frescor também da luta conjunta que aparece estampada no rosto convicto; nos gestos libertos das muitas mulheres, brancas, negras, com seus cartazes, filhos no colo, flores nos cabelos; no sorriso imenso da jovem Benedita da Silva; em uma das várias manifestações que se multiplicaram pelo mundo nos anos 80.
Como arquivos que nos olham do passado, esses filmes no lembram que começamos em algum momento a trilhar um caminho para conquistar a autonomia de nossos corpos, uma lei nossa, e não a lei do outro – Estado, Igreja, moral machista – que regula nossas decisões de fórum íntimo ao controlarem nossa vida pessoal e o modo como queremos ou devemos conduzi-la. Essa lei, falocêntrica e capitalista, não quer saber se estamos preparadas para ser mães ou não, ou melhor, se podemos, mediante toda falta de apoio estatal e uma vida super dificil (muitas vezes de extrema pobreza), continuar parindo quatro, cinco, seis filhos. Mas sim que nossos corpos sejam regulados pelo mercado, pela biopolítica, pelos dogmas da igreja, pelo confinamento ao casamento heteronormativo e à reprodução sexual.
É contra a lei de fora do nosso corpo que esses dois filmes se fazem câmeras-corpos-femininos, às vezes pedagógicas demais para explicar o que ainda era muito pouco discutido e sabido, principalmente entre a população de mulheres mais carentes. Outras vezes, duras demais, pois se colocam diante de depoimentos difíceis como os daquelas que não podem pagar quatro salários-mínimos por uma curetagem higiênica numa clínica clandestina, e quando chegam, ainda com “pedaços do bebê” dentro delas, para o atendimento de urgência no hospital, são mal atendidas. Essas câmeras-corpos-femininos, outras vezes, devem ser companheiras, se abrindo aos testemunhos nas sombras de mulheres que não querem ser reconhecidas, mas precisam dizer, conversar, debater, justamente, sobre o aborto que praticaram por uma extrema necessidade. São aquelas que não têm como ou com quem partilhar a experiência, pois se veem tingidas de criminosas pela sociedade patriarcal. Ao durarem nessas mulheres, essas câmeras autônomas nos mostram o paradoxo: o quanto a mesma lógica falocêntrica que toma conta, limita e se apropria dos corpos das mulheres as responsabiliza e as culpabiliza durante todo o processo de cuidado em relação ao sexo que, obviamente, acontece com a participação igual e, muitas vezes até, assimétrica dos homens (aqui os perpetradores dessa lógica).
Mas, agora, quando essas mulheres nos olham do passado, vemos conquistas? Ou ainda estamos próximas da diferença entre aquela que para assumir o emprego dos sonhos pôde decidir interromper a gravidez – e, para tanto, pôde também pagar uma clínica sofisticada –, e aquela que, desesperada, prepara o chá para tentar um aborto, pois não tem como criar mais um filho, além dos cinco que já tem? Ou ainda estamos próximas de ver de um lado as instituições patriarcais e de outro os movimentos feministas? Cisão que a montagem dialética de Birkbeck acentua quando faz com que os cânticos e rituais católicos atravessem a assembleia legislativa, emudecendo a voz de Lúcia Arruda que, grávida em cima do palanque, reivindica sua palavra cassada pelo presidente da Assembleia Legislativa, a quem não interessa que o debate sobre o aborto avance entre as mulheres. Seu argumento lógico e ponderado sobre as dificuldades e os direitos das brasileiras em relação às suas experiências privadas é barrado pela tradição obscurantista, que deposita em Deus e no pecado seu pendor machista. Seu argumento, extremamente consciente, aponta a irracionalidade do Estado que, sob alegação de proteger a violência contra uma vida (a do feto), leva a mulher, paradoxal e ironicamente, a praticar uma violência contra ela mesma. E ainda mais pelas condições de culpabilização, induzidas pela construção do ato de abortar como situação punitiva. A lei de fora emudece a lei de dentro, por isso esses videos precisam falar, começar o debate que deverá se engrandecer.
Mas, desses filmes para cá, o que aconteceu? Vamos assumir que do século XX ao XXI, de Lúcia Arruda a Rosa Weber, de Brizola ao Ministro Barroso, ainda estamos presas numa lei dinossáurica que data de 1940? Que aquele debate não se ampliou? Para quem não? Para os homens que ecoam as opiniões dos entrevistados nas ruas por Beth, em Por que não?? Não apenas daqueles que tratam o aborto como crime, mas que destilam seu juízo moral conservador e machista sobre as mulheres. Como um que diz que mandaria sua esposa para a delegacia caso ela abortasse e outro que, com expressão de repulsa, explica: “engravidar é um erro da qualidade da mulher, a mulher de classe (...) ela não concebe (...) agora a mulher cadela, a mulher do povo, ela entrou no cio aí acontece isso”.
Não debatemos ainda sobre nossos corpos, nossas regras, nossas complexas, difíceis, muitas vezes miseráveis, maternidades, continuando a roda de conversa que esse filmes-arquivos nos legaram? Ou não adiantou debatermos?
Hoje talvez seja pior. Talvez temamos debater tais assuntos sob o risco de mais um ataque da direita fascista e machista, que discursando pela pauta moral multiplicou seu poder nos últimos anos e conseguiu colocar em trâmite na câmera e no senado um sem-número de propostas que não apenas retrocede as poucas conquistas em relação ao aborto, como introduz mais restrições. Talvez o que esses filmes-arquivos nos mostrem hoje é que, apesar dos esforços dessas câmeras-corpos-femininos, do cinema feito por mulheres, do ponto de vista dos direitos sobre nossos corpos e nossos desejos reprodutivos, não conseguimos continuar na esperança feminina dos anos 80, e estamos cada vez mais enredadas, cada vez de forma diferente, num passado que não passa, cujo nome é patriarcado.
Currículo
Roberta Veiga
é professora adjunta do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação (PPGCOM-UFMG) e coordenadora do grupo de pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feminista (UFMG-Cnpq). Tradutora do livro Nothing Happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday, de Ivone Margulies; autora de capítulos nos livros: Feminismo e Plural: mulheres no cinema brasileiro; Corpo e Cultura Digital: diálogos interdisciplinares; Afectos, historia y cultura visual. Una aproximación (in)disciplinada; e Mulheres de Cinema.
Referências
COSTA, Larissa F. S. Experimentações videodocumentais feministas: aborto e prostituição na produção audiovisual de mulheres dos anos 1980. Dissertação (mestrado), UFMG, Belo Horizonte, 2023.