Meu corpo quer fazer morada na liberdade. O oceano – sempre ele – surge redundante, se faz presente. Realiza o elo entre as florestas de conchas plantadas em cabelos com barro e sementes. O que dizer da liberdade? Liberdade para quando? Entre vielas, uma criança corre, faz careta, brinca. Seria ela livre? Qual o futuro para ela? O vermelho queimado com o azul petróleo lançam água no mar meio que dizendo: “Sonho!” Sonho porque meu corpo oceânico quer fazer morada no mar.
Solmatalua é um filme-sonho. Sons, imagens, cores. Tudo isso parece um sonho em que a busca pela morada-mãe é gramática. O traslado Atlântico foi (é) um crime. Crime que se atualiza na precariedade da morada nas favelas; na migração contemporânea de africanos; no fato de que a diáspora segue vagando, procurando de onde vem. Talvez nos sonhos também estejamos em busca. Busca de respostas, busca de respiro. Esse filme parece ser uma grande busca.
Aqui, o filme Orí (Raquel Gerber, 1989), a partir da presença doce da voz de Beatriz Nascimento, é convocado. Não apenas intertexto, mas também citação. São trinta e três anos de distância, ou de aproximação? O que nos remete à reflexão sobre o tempo para a diáspora negra: nosso tempo é roubado, sempre atualizado, e não caminha em linha reta. Mais uma vez, Beatriz Nascimento vem ao nosso encontro e mostra como o tempo é um espiral que se atualiza mais uma vez e mais uma vez. Vai, vem e volta. O tempo, este que revela que algo foi e é arrancado de nós. Talvez uma das buscas seja esta, do tempo.
Se Solmatalua é sonho, Nenhuma Fantasia é assombro. Assistir ao filme me pôs em contato com a loucura, com o trauma, com a perturbação. Temas também caros à diáspora negra. O mundo se despedaça e nós aqui, assistindo a tudo isso como espectadores. A máscara sufocante, a guerra. O confinamento, a televisão. As telas. E se somos espectadores, o personagem principal também o é. Mas ele, ao contrário de nós, também fala. Fala insistentemente, canta, conclama. Se ele é também espectador, a perturbação também nos atinge. E o quadro da tela vai se multiplicando, se multiplicando. E multiplicam-se os espectadores. Quem é o espectador? A qual filme estamos assistindo?
E ainda: se há fala, quem escuta?
Ali, vê-se o desmanche do mundo. A presença neste território é perturbadora, densa. Quem irá filmar o fim do mundo? Nenhuma fantasia é a distopia. Talvez a humanidade não seja excepcional. Talvez ela nem sequer precise sobreviver a esse caos. Mas o corpo do filme-assombro é um corpo negro. Então dizer que: “No fundo você só quer chegar na velhice com netos, bisnetos, filhos... quem tem um, não tem nenhum... (...) Cresceis e multiplicai-vos!”, é dizer sobre como nossos corpos almejam sobreviver em território para onde fomos arrancados. Onde somos mortos, sempre. Insistentemente.
Assim como Solmatalua, Nenhuma fantasia especula sobre o futuro. Um futuro no qual há mesclas de vida humana e não-humana. Tudo cantado em tom de brincadeira ao som dos tapas no piano. O tom jocoso brinca com o desespero. Com a aflição. O tempo aqui também é verbo. E se o tempo é verbo, no primeiro minuto do filme Diários de uma Paisagem já anuncia o seu tempo. Tempo de banzo, tempo de trabalho, tempo de frio, tempo. O banzo dura o tempo que tem que durar. Melancolia. Cotidiano. O filme Diários de uma paisagem traz o tempo como narrador. Em vários momentos, é possível acompanhar o desenhar do artista Tantão, que escuta música e desenha com muito foco. Acompanhá-lo é lidar com o tempo arrastado e melancólico.
Tempo também de estar na intimidade do artista que o filme acompanha. Seja falando, seja escutando rádio, cantando ou bradando. Assim como Solmatalua, o mote da liberdade emerge no filme. Qual a mobilidade que se pode ter? Qual liberdade se pode almejar? O tempo em suas variabilidades se mostram marcantes nestes três filmes. Tempo espiral, tempo do fim, tempo do tempo.
Currículo
Denise da Costa
é antropóloga, professora da UNILAB/CE, ensaísta. Amante da estética negra e dos penteados afro, pesquisa sobre cabelos e a capilaridade do tema, desembocando na moda, estética e consumo. Sempre negra, sempre afro.