No final do primeiro ano da pandemia de Covid-19, em novembro de 2020, o forumdoc.bh foi obrigado a apresentar sua 24ª edição de modo integralmente online tendo em vista que, naquele momento, já se registravam quase 200 mil mortes e o início da vacinação só se daria em janeiro de 2021. Assim, a Mostra Contemporânea Brasileira de 2020 não contou com nenhuma sessão de cinema presencial, os encontros com os realizadores e realizadoras acabaram acontecendo por meio de lives e a exibição dos filmes foi feita via streaming. O baque desse distanciamento, a despeito dos excelentes filmes e belos encontros virtuais ocorridos naquele ano, foi sentido por todos.
Por isso mesmo, em 2021, após muita hesitação, optamos por não realizar nossa tradicional Mostra Contemporânea Brasileira, tendo em vista a impossibilidade de retomarmos o festival de modo integralmente presencial. Em novembro de 2021, já ultrapassávamos o número de 600 mil mortes por Covid-19 e, embora os casos estivessem em declínio e a vacinação em alta, a programação do forumdoc.bh.2021 permaneceu, em sua maioria, online.
É com satisfação que, em sua 26ª edição, finalmente de modo integralmente presencial, anunciamos a retomada da Mostra Contemporânea Brasileira em 2022, em uma edição especial, ocupando um espaço grande da programação, compondo um total de 15 sessões.
A fim de contornar a impossibilidade de cada membro da equipe curatorial assistir todos os filmes, decidimos dividir o montante total de filmes em dois e compusemos duas subequipes, cada uma formada por duas pessoas, que tiveram, por sua vez, a tarefa inicial de visionar, discutir e selecionar metade dos filmes inscritos. Após alguns ajustes, cumprimos essa primeira etapa de trabalho e partimos para o visionamento dos filmes selecionados pelas duplas na primeira etapa do trabalho. Ao mesmo tempo, iniciamos uma discussão, demorada, por vezes acalorada, sobre os filmes selecionados pelas duplas e, agora, visto por toda equipe curatorial. Assim fomos compondo uma “lista pequena” (shortlist) dos filmes que de alguma maneira foram se impondo no recorte da presente mostra. Sabíamos que tínhamos um limite de sessões e, portanto, tínhamos de lidar com uma seleção que, querendo ou não, deixaria de fora filmes que havíamos gostado muito e que dialogavam com nosso recorte.
Dos mais de 400 filmes recebidos, acabamos por selecionar 35 filmes, sendo 16 curtas, 10 médias e 9 longas metragens. Se, por um lado, encontramos uma grande diversidade no montante de filmes inscritos, por outro, nos deparamos com muitos filmes jornalísticos, institucionais, de entrevista, biográficos, de cunho denunciatório extremamente roteirizados e pouco instigantes. Assim, saímos em busca de filmes que de alguma maneira haviam nos desestabilizado, seja pela inventividade formal ou por termos sido interpelados por suas personagens de um modo especial, ou ainda pelo aprofundamento e abordagem de questões urgentes para o momento cosmopolítico em que vivemos. Percebemos o aumento da presença de filmes de autoria negra, indígena e periférica, filmes que vêm propondo novas formas plásticas e narrativas que têm abalado e transformado a produção contemporânea brasileira. Ao mesmo tempo, notamos que a maioria de filmes inscritos continua sendo assinado e produzido por homens cis brancos e que, ainda hoje, recebemos poucos filmes realizados por mulheres. Esse é um cenário que se evidencia sobretudo na metragem longa, dado que alguns dos novos sujeitos sociais que emergiram no audiovisual brasileiro ao longo dos últimos anos não tiveram acesso ao fomento público, considerando o ataque que a produção cultural brasileira vem sofrendo desde o golpe de 2016, a consequente precarização e privatização das instâncias de investimento e a destruição programada de acervos e salas de exibição públicos.
Contudo, seria um clichê insistir sobre o caráter diverso da programação que apresentamos. Mais do que heterogênea, a mostra contemporânea do ano de 2022 é fortemente contraditória, e sinaliza para caminhos e possibilidades contrastantes. De certo modo, apresentamos um esboço para um possível retrato da produção brasileira dos dias de hoje, um passo para um diagnóstico ainda imperfeito. Optamos por não elidir conflitos e não evitar a vertigem, preservando os contrastes marcantes entre as soluções apresentadas pelos diferentes filmes. Nesse sentido, o campo agônico no qual se transformou o audiovisual brasileiro está presente nesta seleção, na qual não apenas os filmes, mas também realizadores e realizadoras trazem a marca desse pluralismo não-reconciliado: os lugares sociais e de classe, étnicos e raciais, de gênero e de orientação e etários que constituem hoje o documentário brasileiro estão apresentados de algum modo nesses programas. A mostra contemporânea de 2022 apresenta sobretudo este tensionamento dos modos, poéticas e territórios existenciais de realização; tensionamento que busca escapar de todas as formas de determinação histórica e antecipar novos estados de mundo por vir.
O processo de 2022 registra ainda, em suas ausências, algumas inflexões importantes: há uma clara deflação nas hibridações do documentário com a ficção, que foi um dos principais lugares de inovação do audiovisual brasileiro nos últimos anos; a produção etnográfica passa por uma clara metamorfose interna, com o cruzamento do registro de práticas ancestrais com novas agendas raciais, de gênero e de orientação sexual.
Dentre os inscritos, encontramos excelentes filmes de viés ensaístico que se voltam para uma investigação das propriedades e possibilidades inventivas do cinema e do vídeo, lançando mão de locução em primeira pessoa, do uso de arquivos, fotografia still, grafismos e imagens filmadas em diferentes suportes e dispositivos (película, digital celular, desktop) em busca de novas formas plásticas e narrativas em diálogo com as interrogações que nos interpelam hoje. Encontramos também diversos filmes performáticos, realizados majoritariamente por realizadoras negras ou transgênero, que mobilizam camadas históricas seculares em recusa às formas de dominação e controle dos corpos, das formas de existência, da ordem social e da ordem do discurso. Em diálogo com esses filmes, nos quais a performance ritual ocupa uma posição central e descentralizadora, destacamos ainda uma quantidade expressiva de filmes que se interessam por questões relacionadas às religiões de matriz afrodescendentes; obras que constroem a sua poética e exploram aspectos da linguagem cinematográfica em diálogo com formas ancestrais de ritualidade e de dramaturgia. Por último, nos deparamos com um conjunto de filmes que se debruçam sobre uma única personagem sem se tornarem, no entanto, filmes-retrato no sentido mais clássico. São obras que encontram o motor de sua poética na relação que estabelecem com suas personagens, mobilizando-se em sentido contrário à busca ilusória por uma pretensa transparência, distanciamento ou neutralidade.
A presente seleção reúne os principais filmes que nos desestabilizaram enquanto espectadores, que nos jogaram para dentro deles e nos implicaram numa relação conturbada marcada pela diferença e inventividade estéticas. Privilegiamos filmes-processo, que são construídos na medida em que são filmados, filmes vivos, muitas vezes feitos ao longo de anos e que acabam trazendo para dentro de suas narrativas a relação inesperada e turbulenta de quem filma com aquele ou aquilo que é filmado.
Houve inúmeras dificuldades para que o forumdoc.bh continuasse existindo, sem prestar serviços ao onipresente mercado do audiovisual brasileiro, e resistindo às múltiplas formas de destruição, não apenas da cultura, que emergiram ao longo dos últimos anos. Ainda assim, seguimos oferecendo uma programação inteiramente gratuita, em aliança com inúmeros movimentos que resistem à pulsão necrófila que parece ter tomado o Brasil de assalto. O forumdoc.bh foi desde sempre uma ocasião para encontros: com os filmes; do público com os realizadores; com o Cine Humberto Mauro (e ainda com o MIS/Cine Santa Teresa, duas salas públicas de exibição); da crítica com a produção contemporânea – presente nos inúmeros ensaios do catálogo desta edição. Finalmente, gostaríamos de saudar os realizadores e as realizadoras que enviaram seus filmes para nossa apreciação, bem como a presença da maioria dos selecionados ao longo das sessões do festival, dado que, mais que nunca, fazer cinema no Brasil é um ato de fúria e resistência.
Currículo
Ewerton Belico
é roteirista, programador e diretor. Foi co-roteirista do longa-metragem Subybaya, dirigido por Leonardo Gama, e co-roteirista e co-diretor do longa-metragem Baixo Centro, vencedor da XXI Mostra de Tiradentes. Dirigiu ainda os curtas Vira a volta que faz o nó (em co-direção com Luiz Pretti, Ricardo Aleixo e Marco Scarassatti) e A memória sitiada da noite. Atualmente desenvolve o roteiro da série documental Hip Hop, velho amigo na estrada, e faz a produção de cópias das salas de cinema do Centro Cultural Unimed - Minas Tênis.
Paulo Maia
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999), doutorado em Antropologia Social pelo PPGAS / Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009) e estágio pós-doutoral (2018) no Performance Department e Hemispheric Institute of Performance and Politics da New York University. Atualmente é professor associado do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação (DECAE) da Faculdade de Educação (FaE-UFMG). Também é um dos idealizadores do forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico - Fórum de Antropologia e Cinema realizado anualmente desde 1997 pela Associação Filmes de Quintal em parceria com a UFMG em Belo Horizonte (MG), tendo coordenado inúmeras curadorias, destacando-se, "Animal e a Câmera" (2011), "Queer e a câmera" (2016), "Mortos e a Câmera" (2019) e, recentemente, "Retrospectiva Karrabing Film Collective" (2021).
Milena Manfredini Cineasta
é antropóloga e curadora independente. Dirigiu e roteirizou os filmes Eu Preciso Destas Palavras Escrita (2017); Camelôs (2018); Guardião dos Caminhos (2019); Cais e Mãe Celina de Xangô (ambos em processo de finalização). Graduou-se em Antropologia pela PUC-Rio e em Cinema pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Atualmente realiza sua pesquisa de mestrado no programa de Cultura e Territorialidades da UFF, na linha Fronteiras e Produção de Sentidos. É idealizadora e curadora da Mostra de Cinema Narrativas Negras. Projeto voltado à pesquisa e visibilização das filmografias negras. Também exerce as funções de pesquisadora, professora e consultora no campo audiovisual.
Maya Da-Rin
é diretora, roteirista, produtora e sócia fundadora da Tamanduá Vermelho, produtora audiovisual sediada no Rio de Janeiro. É mestre em Cinema e História da Arte pela Sorbonne Nouvelle - Paris III e foi aluna da Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba. Participou das residências Cinéfondation do Festival de Cannes, Le Fresnoy e Centro de Arte LABoral, dentre outras. Seus filmes e instalações em vídeo foram exibidos em importantes festivais e centros de arte, tendo recebido inúmeros prêmios.
OBSERVADORXS
Carla Maia
Educadora e pesquisadora. Doutora em Comunicação Social pela UFMG, com período sanduíche em Tulane University/New Orleans. Professora dos cursos de Cinema e Audiovisual e de Jornalismo do Centro Universitário UNA e do curso de Jornalismo do Unibh. É curadora e programadora de mostras e festivais de cinema. Integra o Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine).
Fábio Costa Menezes
Cineasta, é colaborador do Vídeo nas Aldeias e de outros projetos de formação audiovisual. Desde 2010, atua como coordenador de oficinas, montador e finalizador de diversos filmes produzidos em parceria com realizadoras e realizadores indígenas.
Gabriel Araújo
Jornalista, crítico e curador de cinema. Co-fundador da INDETERMINAÇÕES, plataforma de crítica e cinema negro brasileiro, e do Cineclube Mocambo. Integra os coletivos Zanza, de crítica, e Lena Santos, de jornalistas negras e negros de Minas Gerais.