Um dos fantasmas da modernidade consiste em atribuir aos povos indígenas e outras populações racializadas o estatuto de pertencimento ao passado a partir de uma concepção linear e evolutiva de uma suposta temporalidade universal, que depende, por sua vez, de uma relação de emancipação do homem branco sobre a natureza, tendo em vista a apropriação de paisagens e territórios objetivando sua exploração e acumulação de capital. Outros povos, humanos e mais que humanos, foram, em favor dessa emancipação, quando não eliminados, despossuídos de suas terras e sobre-vivem, no liberalismo tardio (Povinelli, 2016), sob ocupação, intervenção, extrativismo e vigilância contínuas.
O Território do Norte, na Austrália, é uma destas terras fissuradas pelos efeitos devastadores da ocupação colonial, pelos britânicos, desde 1869. Habitantes milenares daquela região, uma miríade de povos indígenas falantes de mais de uma centena de línguas tiveram o seu território progressivamente invadido e suas vidas intimamente reguladas pela burocracia estatal ali implantada. Ali, suas vidas antes permeadas pelo incessante fluxo dos seus corpos por “países” de fronteiras nada rígidas e caminhos tecidos pelas marcas de uma contínua “presença ancestral” foram submetidas a uma cartografia catastrófica, traçada com o firme objetivo de eliminar a sua diferença ou assimilá-la aos ditames do poder colonial. Campos de concentração, trabalhos forçados, deslocamentos compulsórios, encarceramento em massa, adoecimento e morte… tudo isso passou a fazer parte do cotidiano daqueles povos a partir da chegada dos primeiros invasores europeus.
Mais de um século após a invasão, o estado australiano reconheceu, pela primeira vez, o direito dos povos aborígenes às suas terras ancestrais, através do Aboriginal Lands Rights (Northern Territory) Act (Ato de Direito às Terras Aborígenes), de 1976. O ato inaugura um novo “tempo de direitos” para os povos da região. Entretanto, na prática, ajudou a reificar aquela multiplicidade de povos e tradições enquanto unidades discretas, pequenos “estados-nações”, congelando fluxos milenares que desde o tempo dos sonhos caracterizaram a ocupação daquelas terras. É mais ou menos na esteira da promulgação do ato que a jovem estadunidense Elizabeth Povinelli, recém-graduada em filosofia, desembarca na região e conhece uma série de famílias interconectadas vivendo na comunidade de Belyuen, no Território do Norte. Surge das famílias a demanda para que ela se tornasse antropóloga e retornasse para a região, a fim de ajudá-los com suas demandas territoriais. Em 2007, entretanto, na esteira da promulgação de um novo ato, conhecido como The Intervention (A intervenção), centenas de moradores de Belyuen se revoltaram e abandonaram o assentamento, indo viver na região de Bulgul, na foz do rio Daly, mais próximo dos seus países ancestrais. Como uma resposta aos acontecimentos daquele ano, as famílias, junto de Povinelli, decidem criar o Karrabing Indigenous Corporation, de cujo o Karrabing Film Collective, apresentado nesta mostra, é um dos braços principais.
Na língua Emmiyengal, a palavra Karrabing se refere ao período da maré baixa, quando as famílias da região se encontram para realizar uma série de atividades favorecidas pela estação seca. Como definiu um dos seus fundadores, Rex Edmonds: “Karrabing significa maré baixa. E quando chega, vem junto.” (LEA; POVINELLI, 2018) Não se trata, portanto, do nome de uma etnia, de um clã, de um “grupo de descendência”, muito menos de uma nação. Nas palavras de Povinelli:
“Karrabing” foi proposto tanto por seu conteúdo semântico quanto por sua pragmática conceitual. [...] Karrabing se tornaria a estrutura por meio da qual um conjunto de práticas cinematográficas voltadas para a terra incorporaria uma resistência contínua aos esforços do estado para dividir e colocar os indígenas e suas terras uns contra os outros. Em outras palavras, fazer filmes não representaria apenas as opiniões dos membros de Karrabing sobre a condição irredutível de conectividade entre os diferentes países. Também é uma prática deste contra-discurso intergeracional. (POVINELLI, 2020)
A retrospectiva
É com imenso prazer que, nos 25 anos do forumdoc.bh, apresentamos a primeira retrospectiva, no Brasil, dos filmes do Karrabing Film Collective produzidos entre os anos de 2014 e 2020. A mostra está organizada em três momentos, o primeiro focado na chamada Trilogia da intervenção. Trata-se de filmes feitos na esteira da vergonhosa Northern Territory National Emergency Response (Resposta de Emergência Nacional do Território do Norte), em 2007, e em boa medida contra ela. A lei do governo australiano inaugurou uma nova fase de intervenção e controle das vidas indígenas em todo o Norte da Austrália. As medidas incluíam a proibição de álcool e pornografia nas comunidades indígenas, o aumento do policiamento na região, a intervenção do exército em assuntos indígenas, além de políticas habitacionais que estabeleceram aluguéis baseados no mercado para habitações públicas. Todos estes temas atravessam os filmes da trilogia inaugural karrabing.
Em When the Dogs Talked (Quando os cães falavam, 2014), o dilema entre manter as casas no conjunto habitacional do governo e recuperar o seu território sagrado é fruto de debate entre as gerações. O filme inaugura o estilo de “realismo improvisado” (improvised realism) que caracteriza toda a produção do coletivo. Inspirada no “teatro do oprimido”, de Augusto Boal, a técnica permite a permanente atualização da memória indígena a partir dos constantes deslocamentos pelo território ancestral que, como sublinha Kênia Freitas (2021), permite também o “acesso a uma tecnologia karrabing do tempo - o tempo em sua amplitude de versões e possibilidades simultâneas”. No segundo filme da trilogia, Windjarrameru, The Stealing C•nt$ (Windjarrameru, Os Ladrões Filhos da P*t@, 2015), o consumo de bebida alcoólica por um grupo de jovens é o mote inicial para uma série de eventos que, mais uma vez, se desdobram e se sobrepõem, reorientando as coordenadas do tempo-espaço. Por fim, em Wutharr, Saltwater Dreams (Wutharr, Sonhos de Água Salgada, 2016), já exibido na mostra “Mortos e a Câmera”, no forumdoc.bh.2019, o tempo novamente se fragmenta conforme a espectadora acompanha três versões co-possíveis de um mesmo evento: um barco quebrado durante uma visita à terra dos seus ancestrais. Note-se aqui uma importante revolução na filmografia karrabing: se nos dois primeiros filmes a câmera ainda se apoiava em tripés e a decupagem seguia um estilo mais convencional, aqui todo o registro passa a ser feito com uso de Iphone, o que só aprofunda uma certa estética da mobilidade e da sobreposição perseguida em todos os filmes que se sucedem.
Num segundo momento, a mostra apresenta dois filmes que endereçam de forma mais direta os efeitos perversos do colonialismo de ocupação nas chamadas colônias de povoamento e retomam as próprias origens do Karrabing Film Collective, profundamente assentadas nas reivindicações territoriais daqueles povos. Em The Riot (A rebelião, 2017), Povinelli entrevista diversos membros da família karrabing, remontando às diferentes razões a respeito dos eventos de 2007, quando aquelas famílias abandonam a comunidade de Belyuen, após a explosão de conflitos internos, e retornam para a região mais próxima dos países dos seus ancestrais, na foz do rio Daly. O filme inicia com Povinelli indagando diretamente aos seus interlocutores a seguinte questão: “O que vocês acham que causou a rebelião (the riot)?” O que se segue é a alternância de depoimentos de pessoas que, apesar de estarem presentes no mesmo acontecimento, apresentam diferentes versões das “razões” que estariam na raiz dos conflitos parcialmente articuladas entre si. Organizadas já na montagem a partir de três grandes eixos temáticos: ciúme entre vizinhos e famílias confinados e amontoados em habitações públicas (jealousy), desespero (despair) e frustração diante das condições impostas por estes cercamentos e, finalmente, o estado de abandono (the state of disrepair) gerado, dentre outros, pela Lei de Direito às Terras do Território Norte (1976) apoiada em modelos antropológicos colonizadores que dividiu os territórios aborígenes em territórios e grupos clânicos radicalmente separados, bem como pela Intervenção em 2007, quando a intensidade e vigilância da polícia nos territórios e casas aborígenes foi redobrada pelo aparato estatal. Como afirma uma das fundadoras do coletivo, Linda Yarrowin, em franca oposição à perspectiva essencialista dos modelos antropológicos instrumentalizados por governos e estados, “Todos têm os seus próprios países e todos eles estão conectados.”
Nas palavras de Rex Edmonds: “Os brancos querem nos enfraquecer, dizendo que dois ou três são os donos tradicionais (traditional owners), então, os outros indígenas da região vão discutir com os donos tradicionais e os brancos falam: ‘vamos deixá-los lutarem entre si’.” The Riot (2017) é um filme fenomenal por apresentar de modo radical e sofisticado as condições de existência do próprio coletivo, criado em 2009 pelas famílias deslocadas pela rebelião, sempre ameaçadas pela cultura racista branca aliada às formas de controle, exploração e extração capitalista no liberalismo tardio. Vale transcrever aqui o texto de uma das cartelas textuais presentes no filme: “Karrabing também é um conceito e uma esperança de uma forma de relacionamento entre povos e suas terras: separada-separada, mas conectada.
Já em Night Time Go (Tempo da noite vamos!, 2017), o coletivo revisita o arquivo colonial australiano em busca de registros dos deslocamentos forçados e da fuga dos campos de guerra para aborígenes criados durante a Segunda Guerra Mundial. No filme somos informados que nenhuma gravação, com exceção de poucas fotos, foi encontrada nos arquivos coloniais, a fim de esclarecer como tantos indígenas foram forçados a mudarem para campos de guerra e, diante da inexistência dessas imagens, restam os relatos de testemunhas oculares que passamos a escutar em off no decorrer do filme: “Eu era pequena quando isto aconteceu; o exército estava aqui. A guerra chegou aqui. E o exército retirou todos os povos daqui e nos levou para longe. Eu fui para Katherine [campo de guerra] em um trem.” Destaca-se a escolha do coletivo por re-encenar estes acontecimentos criando seu próprio arquivo do passado no presente, mirando o futuro. Assim, tanto o deslocamento forçado em trens, orgulho maior da civilização branca, quanto a fuga de Katherine quando atravessam mais de 300 km a pé, de volta à região costeira, são encenados e sobrepostos contra os materiais de arquivo, como aponta Kenia Freitas (2021), “Feitos da perspectiva do estado colonial australiano menos como documentos e mais como ficções perversas elaboradas pelo projeto imperialista eurocêntrico: de uma Austrália branca, civilizada, pacífica e benevolente com os seus habitantes originais desprotegidos.”
Por fim, a mostra reúne três das produções mais recentes do coletivo, que retomam e aprofundam temas e abordagens forjadas ao longo das primeiras. Em The Jealous One (O ciumento, 2017), um homem indígena transita pelo excesso de burocracias para chegar até um funeral em seu país natal, enquanto uma briga eclode quando outro homem é consumido por ciúmes da esposa. As duas narrativas se cruzam num encontro final que reintroduz o tema mítico, por assim dizer, do “ciumento” aos dilemas atuais, vivido pelo grupo sob impacto da vigilância colonial. Vale recordar que a figura do “ciúmes” e do “ciumento” também é destacada entre as “razões” da rebelião no filme anterior. Em ambos os filmes, portanto, é uma força motriz mobilizada por diferentes agentes, humanos e além de humanos, que acabam por desvelar uma rede de relações contraditórias que são atualizadas pela própria trama do filme. Em certa altura de The Riot (2017), Povinelli questiona seus interlocutores como os diversos povos e Dreamings estão conectados uns aos outros e Rex Edmonds, a fim de se fazer compreendido, mobiliza justamente a história contada em The Jealous One (2017), que, segundo ele, através dos ancestrais Therrawin, Águia, Caranguejo e Lagarto da Língua Azul, entre outros, mostra “como nosso povo se junta e se relaciona” ao encontrarmos uns aos outros nos lugares onde estes animais ancestrais vivem e agem. Contudo, sem querer dar spoiler, a espectadora deve ficar atenta ao depoimento de Natasha Lewis (em off) no final de The Jealous One, em resposta a outra questão pontual e certeira proposta por Povinelli: “Natasha, o que estamos fazendo aqui?” Em sua voz que se revela ser a de uma menina jovem do coletivo, Natasha inicia sua resposta com a seguinte afirmação: “Viemos aqui para queimar um carro velho para o nosso novo filme.” O que se segue é todo o desvelamento de um subtexto presente no filme, certamente, de difícil acesso para um espectador não familiarizado com essa paisagem repleta de Dreamings e regimes temporais e atemporais sobrepostos. Imperdível!
Já Mermaids, or Aiden in the Wonderlandin the Wonderland (Sereias, ou Aiden no País das Maravilhas, 2018), se passa num presente-futuro distópico, onde uma grave contaminação provocada pelas atividades extrativistas praticadas em todo o território passa a envenenar somente os perragut (brancos). Ao modo dos filmes anteriores, este também se divide em quatro momentos: Dentro (Inside), Fora (Outside), Aiden no País das Maravilhas (Aiden in Wonderland) e O lugar da lama (The mud place). Logo nos primeiros minutos do filme, uma cartela anuncia: “Estrelando: as Sereias. Aqueles que as veem e aqueles que não”. A sequência inicial se passa dentro de um laboratório que conduz experimentos científicos em cobaias aborígenes. Em diálogo com a mãe, que convalesce num leito no corredor da instituição, o jovem Aiden, sequestrado ainda bebê para servir de cobaia aos experimentos, afirma: “Eles dizem que não está funcionando e que vão me levar de volta.” Nos corredores da instituição, uma mulher transporta uma pilha de papéis até o escritório de outra “mulher que se veste como homem” e que, num telefonema, se revela intrigada: “Deve ter alguma razão para a lama estar intoxicando a gente e não eles.” A “razão” procurada pela chefe dos experimentos denuncia, claro, sua real preocupação. Afinal, o problema é porque a intoxicação atinge agora só “a gente” e não “eles” – como “deveria ser”... Esta inversão, com efeito, é um dos principais motes do filme. Do lado de fora, o jovem Aiden reencontra seus parentes indígenas, que o acolhem e o conduzem por uma visita ao seu país ancestral, habitado por Dreamings como os das sereias, da vespa, do pelicano e do pássaro cockatoo. Ali, o jovem se vê confrontado com dois passados e futuros co-possíveis que cabe a ele alterar. Como assinalou Juliana Fausto: “Alianças com o presente ancestral mudam de modo imprevisto, para os colonizadores, nas histórias, o curso da História. A maré sempre retorna. Dreamings e Karrabing se ativando, iscas sendo lançadas, corpos-arquivo em processo. Longe de derrotado, o presente ancestral se ergue. Ao final de Mermaids, ouve-se: ‘Tentamos advertir os brancos. Eles não compreendem as consequências de se violar a lei negra.’” (FAUSTO, 2021). Pouco adiante, enquanto ainda sobem os créditos finais, ouve-se a voz de uma criança que ressoa como um enigma: “No princípio, só existiam filmes karrabing… as sereias… e a lama!”
Se, como vimos, os primeiros três filmes karrabing são reconhecidos como uma Trilogia da intervenção, é bem possível afirmarmos que a “condição interventora" imposta aos territórios indígenas é um limite incessantemente desfeito pela filmografia karrabing. A Day in the Life (Um dia na vida, 2020), filme que encerra nossa retrospectiva, leva adiante, mobilizando estratégias fílmicas inéditas, outra reflexão sobre a dramática intervenção governamental sobre corpos e habitações. Dividido por cinco vinhetas que ironicamente comentam um dos modos de divisão e controle do tempo imposto pela perversa “sociedade envolvente” ao cotidiano indígena: Café da manhã (Breakfast), Lanche da manhã (Play Break), Almoço (Lunch Run), Lanche da tarde (Cocktail Hour), Jantar (Takeout Dinner) funcionam como blocos espaço-temporais atravessados por uma trilha sonora da qual se destacam os hip hop dreamings escritos e cantados pela juventude karrabing, que dialogam de forma direta ou transversal com o “realismo improvisado”, agora duplamente performado seja diante das câmeras ou para a banda sonora. “Siga para o mato. Mas para onde ele vai? / Tem algo engraçado aqui, alguém fazendo dinheiro aqui / Tem algo engraçado aqui, as pessoas realmente não dão a mínima” são alguns dos refrões repetidos alternadamente ao longo do filme, que questionam, tal como as imagens, as condições precárias de vida em casas superlotadas, nas quais mulheres são constantemente ameaçadas de perderem seus filhos para as agências controladoras estatais, de modo que estão o tempo todo planejando uma escapada, a fim de esconder os próprios filhos destes agentes. A escritora maori Matariki Williams, em excelente ensaio para a revista Art in America (2020), esclarece: “O medo da mãe é herdado, evidente em um refrão repetido ao longo do filme: ‘Vamos fazer o que nossos velhos fizeram, vamos esconder nossos filhos.’ Essa é uma das muitas referências que os Karrabing fazem às Gerações Roubadas (Stolen Generations), as milhares de crianças aborígenes e das ilhas do Estreito de Torres que foram removidas à força de suas famílias entre aproximadamente 1905 e 1970.”
Vale ainda chamar atenção para a rápida performance de Povinelli neste filme, na posição de um garimpeiro (miner) expulsando indígenas de seus próprios territórios. A posição de “estrangeira” parece se manter em suas participações como atriz neste e em outros filmes, por exemplo Wutharr, Saltwater Dreams, juntamente com o respeitoso tratamento que recebe de suas amigas do coletivo, que, diante da câmera, não hesitam em chamá-la de irmã Beth. Povinelli também assina a edição, direção e fotografia, por vezes compartilhada, da maioria dos filmes do coletivo.
Como dito anteriormente, ainda que a “condição interventora" imposta aos territórios indígenas seja um limite incessantemente desfeito pela filmografia karrabing, gostaríamos de destacar o que Matariki Williams (2020) identifica como o aspecto mais atraente do trabalho do coletivo: “A maneira como contam suas histórias, sem vergonha de suas próprias perspectivas. Eles têm o que eu chamaria de mana motuhake em sua abordagem, mana motuhake sendo a autodeterminação de seu futuro.” (Grifo nosso.)
A marca atemporal
A saga karrabing e a luta incessante por suas vidas e terras junto dos ancestrais, sem dúvida, possui profundas conexões e ressonâncias com as experiências de cinema realizadas por indígenas no Brasil há mais de três décadas. Se há algum tempo já acompanhamos com grande entusiasmo os filmes do coletivo, o recente encontro entre a antropóloga Elizabeth A. Povinelli e o casal de cineastas Sueli e Isael Maxakali, durante a programação do Sheffield DocFest 2021, certamente abriu caminhos para a realização desta retrospectiva no ano em que celebramos vinte e cinco edições consecutivas deste festival. Em junho deste ano, quando o encontro aconteceu, o casal e sua comunidade de mais de cem famílias viviam numa terra provisória – a segunda para onde se mudaram em menos de um ano –, após a saída do grupo da reserva onde viveram a última década, uma área sem rio, muito montanhosa, sem espaço para que os grupos pudessem se espalhar e garantir a boa convivência. Na conversa, Povinelli aplaudia o casal que, no dia anterior, havia recebido o prêmio de melhor filme internacional por Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa terra é nossa! Ela contou que havia compartilhado o link do filme com os seus amigos karrabing e que todos vibraram ao assistir. Por fim, comentou: “Igualzinho! Os fez lembrar deles há não muito tempo atrás e hoje também de uma forma ‘mais legal’, você sabe...”
Poucos meses depois, na madrugada do dia 28 de setembro de 2021 – Night Time Go! –, mais de cem famílias se mudaram novamente e retomaram uma terra da União, no município de Teófilo Otoni, na região de Itamunheque. Hoje, enquanto preparamos esta apresentação, os Tikmũ’ũn se preparam novamente para reconstruir suas vidas, suas casas e seu futuro num lugar que nomearam de Aldeia-Escola-Floresta, um espaço de fortalecimento dos cantos, histórias e rituais yãmĩyxop, de formação de jovens pajés, artistas e cineastas, de troca de saberes, reflorestamento e recuperação da Mata Atlântica. Ainda naquela conversa virtual, Isael Maxakali afirmava: “Nós precisamos da terra! Tem que devolver o nosso território pra nós! Porque todo o território está enfraquecendo, está doente, porque os brancos desmataram a mata, destruíram o rio. A terra está gritando, mas os brancos não ouvem. Nós precisamos fazer rituais em cima da terra! Nós queremos terra para nós sobrevivermos com as nossas famílias. Porque sem terra, não tem indígena.” Na sequência, Povinelli acrescentou uma bela reflexão sobre por que os Karrabing fazem filmes. Em primeiro lugar, como ela já disse em outras ocasiões, porque se divertem fazendo. Mas, em seguida, ela emendou: “Nós fazemos filmes para os ancestrais saberem que ainda nos importamos. Nós fazemos filmes para a terra!”
Enquanto em 2007 os Karrabing e outros povos aborígenes do Território do Norte da Austrália sofriam com o “Ato de Intervenção”, no Brasil, começava a tramitar o Projeto de Lei 490 reforçando uma ofensiva contra os direitos constitucionais indígenas, a partir da famigerada tese do Marco temporal, como sabemos, outra “ficção perversa" da branquitude jurídica brasileira, em sua vertente ruralista. Segundo a tal “tese”, só deverão ser reconhecidas como terras indígenas aquelas que estavam ocupadas pelos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Na prática, a lei anistia todas as invasões de terras indígenas perpetradas até aquela data, grande parte delas, importante dizer, estimuladas e patrocinadas pelo próprio estado brasileiro, como aconteceu, por exemplo, com os Maxakali. O Marco temporal, portanto, é uma dessas tecnologias coloniais de controle do tempo cujo objetivo, no limite, é apagar a marca atemporal dos ancestrais indígenas sobre todo este território permanentemente invadido e saqueado. A decisão sobre a validade ou não da tese do Marco temporal caberá ao Supremo Tribunal Federal, onde o tema aguarda votação. Mas aqui também eles não compreendem as consequências de se violar a outra lei… Como avisam os xapiri yanomami, a partir das palavras do xamã Davi Kopenawa:
Se nosso sopro de vida se apagar, a floresta vai ficar vazia e silenciosa. Nossos fantasmas então irão juntar-se a muitos outros que já vivem nas costas do céu. Então o céu, tão doente quanto nós, por causa da fumaça dos brancos vai começar a gemer e se rasgar. Todos os espíritos órfãos dos antigos xamãs vão cortá-lo a machadadas. [...] Então o céu vai ficar escuro para sempre. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, pp. 493-4)
Posto isso, não seria a recusa dos Karrabing à "NTER" (Northern Territory National Emergency Response), também conhecida como A intervenção, bem como a recusa ao #PL490 [Não!], táticas correlatas na criação de contrafuturos, como sugere Kênia Freitas (2021), frente à corrosão diária de populações historicamente racializadas e subalternizadas pelo colonialismo contemporâneo, sendo este, portanto, um dos aspectos marcantes da filmografia indígena aqui e acolá? Tal recusa não estaria por sua vez intrinsecamente ligada à capacidade de sonhar(es), um cinema-dreamings? Afinal, como afirma Renato Sztutman (2021), “Um sonhar é a possibilidade de conceber a convivência de tempos diversos, que se entre-afetam. Nos filmes do coletivo Karrabing, o ancestral vive no presente, o futuro altera o passado.”
***
A retrospectiva karrabing tem o prazer de apresentar, em primeira mão, as traduções de um texto seminal de Tess Lea e Elizabeth Povinelli, publicado na revista Visual Anthropology Review, em 2018, e de um recente ensaio de Povinelli para a revista e-flux de 2020, além de três ensaios, escritos especialmente para a presente mostra, por Kênia Freitas, por Juliana Fausto e por Renato Sztutman, disponíveis no nosso catálogo. A programação ainda conta com uma mesa redonda a fim de explorar a filmografia karrabing, além da masterclass “Ecologias, herdabilidade e o presente ancestral” com Elizabeth Povinelli, tudo online direto de nosso canal forumdoc no YouTube.
Em 2008 realizamos no forumdoc.bh a Mostra melanésia, que apresentou um conjunto de filmes realizados na Papua-Nova Guiné por papuásios e estrangeiros. Naquela oportunidade tivemos a chance de convidar e receber, em Belo Horizonte, o cineasta papuásio Martin Maden, que esteve conosco por duas semanas em um encontro memorável com o público local. Com a Mostra melanésia tivemos a pior impressão a respeito dos colonizadores australianos, ainda que a maioria dos filmes da mostra tenham se concentrado no período pós-independência, a partir de 1975. O que mais nos chamou atenção nessa ocasião foi a inventividade do cinema papuásio, em especial a partir do trabalho e da presença de Martin Maden, de quem sentimos saudades. Com a retrospectiva de filmes karrabing, teremos a chance de complexificar nosso entendimento sobre a dinâmica colonial, em curso, no Território do Norte australiano, bem como de nos surpreender com a inventividade estética de seus filmes. Quiséramos contar com a presença do coletivo Karrabing nas sessões de cinema no Cine Humberto Mauro, mas diante das circunstâncias esperamos que, no futuro, quem sabe, possamos nos conectar para além das telas de nossos computadores, laptops e smartphones. Agradecemos nominalmente a Trevor Bianamu, Gavin Bianamu, Sheree Bianamu, Ricky Bianamu, Telish Bianamu, Danielle Bigfoot, Kelvin Bigfoot, Rex Edmunds, Linda Yarrowin, Chloe Gordon, Claudette Gordon, David Gordon, Michael “Miles” Gordon, Ryan Gordon, Claude Holtze, Ethan Jorrock, Marcus Jorrock, Melissa Jorrock, Patsy-Anne Jorrock, Peter Jorrock, Daryel Lane, Robyn Lane, Sharon Lane, Lorraine Lane, Tess Lea, Elizabeth Povinelli e outros parceiros do Karrabing Film Collective pela grande oportunidade de tê-los conosco nos 25 anos de forumdoc.bh.
Referências
FAUSTO, Juliana. “Pele e osso do cinema Karrabing”. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 - 25 anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021.
FREITAS, Kênia. “Sobreposições e rotas alternativas do espaço-rempo”. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 - 25 anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
LEA, Tess; POVINELLI, Elizabeth A. Karrabing: An Essay in Keywords. Visual Anthropology Review, v. 34, Issue 1, pp. 36–46, 2018. ISSN 1058-7187, online 1548-7458.
POVINELLI, Elizabeth A. Geontologies: A Requiem to Late Liberalism. Durham, NC e Londres: Duke University Press, 2016.
POVINELLI, Elizabeth A. “The Ancestral Present of Oceanic Illusions: Connected and Differentiated in Late Toxic Liberalism”. In: e-flux Journal, Issue 112, October 2020. Disponível em https://www.e-flux.com/journal/112/352823/the-ancestral-present-of-oceanic-illusions-connected-and-differentiated-in-late-toxic-liberalism/. Acesso em 13 out. 2021.
SZTUTMAN, Renato. O cinema como sonhar. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 - 25 anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021.