O que se segue são notas feitas para uma sessão de teste do material filmado, ocorrida em algum momento entre 1978 e 1980, durante a edição de Diaries: (revisadas em Outubro/ 2010).
A produção de filmes não roteirizados com som sincronizado (cinema direto, cinema verdade) havia chegado a uma série de impasses ao final dos anos 60, deixando sem solução os muitos problemas desse modo de abordagem do mundo. O senso comum nos Estados Unidos era o de que tal abordagem havia nos dado acesso ao mundo independentemente da manipulação do cineasta. Assim, situações montadas, entrevistas e narração eram vistos como erros ou desvios não-cinematográficos. Além disso, os interesses tácitos dos cineastas e sua relação com os sujeitos eram escondidos sob a égide da “reportagem”.
Não obstante, o estilo em si parecia fechado em um tipo de subjetividade que Pennebaker chamou de “gramática de uma câmera”. Portanto, o ponto de vista, no sentido de ponto de vista privilegiado da câmera, era algo restrito à posição física da mesma. Os eventos possíveis para o filme eram apenas aqueles que haviam sido filmados. Eventos dos quais a equipe apenas ouviu falar ou nunca soube nada a respeito eram omitidos. As premissas deste estilo eram mais próximas da narrativa em primeira pessoa do que da tradição da reportagem à que os primeiros filmes de Drew pareciam aspirar. A equipe consistia em no mínimo duas pessoas (som e câmera). O mercado exigia temas e assuntos facilmente acessíveis – fossem celebridades (Jane Fonda, Marlon Brando, Stravinsky, Eddie Sachs) ou eventos com valor de notícia (como a disputa eleitoral entre Kennedy e Humphrey ou a integração racial da Universidadedo Alabama). A economia do cinema permitia apenas períodos de gravação relativamente breves – geralmente menos de três semanas. Os próprios cineastas tendiam a ser profissionais caseiros inseridos em estruturas hierárquicas ao invés de artistas independentes.
Ao filmar Black Natchez (1965, lançado em 1967), aceitei essa tradição. Nos meus filmes subsequentes, tentei criticá-la. Panola (1969) levanta a questão acerca do direito da câmera de ter acesso aos mundos de outras pessoas. One Step Away (1967) busca redefinir a edição como um processo mais subjetivo, que se contrapõe à objetividade da situação de filmagem.
No início dos anos 1970, novas tecnologias se tornaram disponíveis e mudaram as possibilidades oferecidas a mim pela tradição. O próprio cinema direto resultou de novas tecnologias que tornaram possível, pela primeira vez, a filmagem portátil com som sincronizado. Em 1970, Kudelski introduziu o Nagra SN. Com o acréscimo de um botão start/stop acessado por controle remoto, era possível filmar com verdadeiro som sincronizado e de modo portátil, com apenas uma pessoa – o cineasta. (Ver artigo de minha autoria, A New Approach to Cinema Vérité).
A economia do documentário havia mudado. Com apenas uma pessoa, o próprio cineasta, filmes podiam ser gravados por um longo período de tempo. A importância disso não pode ser subestimada. A tendência da tradição nos anos 60 era de definir os sujeitos pelos momentos de descuido. A estratégia do cineasta norteava a ideia: “Ele realmente se entregou quando disse...”. Os filmes tinham que ser gravados em poucas semanas, de modo que as revelações sobre a personalidade dos sujeitos filmados tendiam a ser tanto estáticas quanto estereotipadas. Períodos mais extensos de filmagem abriram a possibilidade de se ver mudanças ao longo do tempo.
Segundo as premissas do senso comum, o cineasta se escondia atrás da câmera. Essa era a pré-condição do cinema direto. Não importava como o acesso aos sujeitos filmados havia sido obtido ou como se deu a relação entre estes e a equipe. Em geral, a câmera permanecia afastada, com um irônico distanciamento. A filmagem individual passou a oferecer ao cineasta a chance de ao menos se inserir no contexto do mundo que estava a filmar. Abriu a possibilidade de negar à audiência identificação com o distante cineasta e permitir-lhe olhar para os sujeitos filmados como iguais, ao invés de vê-los como o outro longínquo.
Os primórdios do cinema direto pareciam condizentes com as visões políticas que eu tinha na época das filmagens de Black Natchez. A manipulação política foi evitada em favor do que era expresso pelo slogan “Deixem a população local decidir”. O cinema direto parecia oferecer uma abordagem isenta de manipulação. Ao longo dos anos 60, eu lutei pelo o que considerava que o cinema político deveria ser. No início dos anos 1970, o Movimento Feminista havia redefinido a política fazendo uma investigação da vida das pessoas, ao menos no âmbito político.
Tudo isso me levou a propor a diversas agências de financiamento a ideia de produzir um diário de cinco anos, o qual filmei de 1971 a 1976 e estou apresentando dois pequenos pedaços como work in progress.
Durante o inverno de 1977-1978, fui convidado pela Faculdade de Arte e Design de Minneapolis, como cineasta visitante, para fazer qualquer filme que quisesse. Este filme veio a ser Life and Other Anxieties. Embora tenha sido finalizado antes de qualquer outro que iria compor o diário [o qual mais tarde seria intitulado Diaries (1971-76)], e não fosse inicialmente destinado a fazer parte do mesmo, ele deve ser considerado, em alguns aspectos, como um acréscimo a ele (Diaries). O filme tenta definir a vulnerabilidade subjacente a todos nós tal como ela se revela na vida cotidiana.
Filmar Diaries e começar o processo de edição me transformou como cineasta. Life and Other Anxieties é uma expressão dessa mudança.
Diaries me forçou a ver o mundo de uma forma diferente, sem a superposição da narrativa convencional (isto é, procurar por história nos eventos tal como acontecem); sem uma política sobreposta; sem uma subversão de conteúdo para se ajustar a um noção purista de estilo. Ao passo que, antes, o que não era filmado – ou por que algo era filmado – eram questões que não importavam, agora ambos se tornaram importantes. O que foi filmado e o que não foi filmado têm a mesma importância.
[Nota acrescida em 2008. A estrutura de Diaries tentou reproduzir os originais. O filme final parece bastante com eles: a justaposição e o término do rolo do filme têm um sentido bem diferente da intencionalidade da montagem tradicional.]
Currículo
Ed Pincus
Diretor e produtor de cinema. Estudou filosofia e fotografia em Harvard. Autor de Guide to Filmmaking (1968) e co-autor do The Filmmaker's Handbook (1984 e 1999).
Como citar este artigo
PINCUS, Ed. Notas. Tradução de Débora Braun. In: forumdoc.bh.2010: 14º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2010. p. 290-293.