Notas sobre arquivos e encontros em Me Kukrodjo Tum: O Conhecimento dos Antigos e Curupira e a Máquina do Destino

    Me Kukrodjo Tum: O Conhecimento dos Antigos (2021) e Curupira e a Máquina do Destino (2021), cada um de maneira muito singular, realizam um esforço de resgate da memória através das imagens de arquivo. No primeiro caso, em uma imersão no Museu de Arqueologia e Etnografia da USP, no acervo Lux Vidal. No segundo, os arquivos da construção da Transamazônica são retomados de maneira pontual e precisa, mas remete, ainda, a um arquivo filmográfico que fica no fora de campo: IracemaUma Transa Amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1974).

    Pedro Novaes e Pedro Guimarães, em Me Kukrodjo Tum: O Conhecimento dos Antigos, registram o encontro do povo indígena Xikrin do Cateté com a antropóloga Lux Vidal no Museu de Arqueologia e Etnografia da USP para o Projeto Memória Xikrin. A antropóloga iniciou suas pesquisas de campo nos anos 1960, e, em 1977, publicou Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira, a primeira etnografia completa acerca dos Xikrin. Sobre o trabalho de Vidal, Bruna Keese dos Santos (2019, p. 21) afirma: “Sua contribuição é marcada pelo compromisso com os índios e pela compreensão da relevância das manifestações artísticas produzidas por eles, promovendo a afirmação de suas culturas”. 

    Me Kukrodjo Tum é um filme de encontro, de partilha de histórias e memórias, mas, principalmente, de encontro com este acervo composto por imagens, objetos, registros de pinturas corporais e desenhos. A visita dos Xikrin possibilita um reencontro com sua memória. O que vemos é o momento futuro ao qual o arquivo se destina quando é produzido (DERRIDA, 2001), ao ser acessado, para evitar o esquecimento. Cada objeto e cada fotografia despertam lembranças, tornando vivos o arquivo e a memória de um povo. O registro desse encontro faz reverberar a pesquisa de Lux Vidal, mas, particularmente, os relatos dos Xikrin em contato com as fotografias e objetos, suas texturas e cheiros. O gesto do filme explicita o caráter coletivo da preservação ao articular os relatos às imagens, desenhos e animações que remontam a tradição do povo Xikrin. Assim, não apenas há um encontro entre um povo e sua memória, mas ela ganha visibilidade. Das fotografias em p&b às coloridas, percorremos a história dos Xikrin através dos anos, o que ressalta também o enorme esforço de registrá-la. 

    O depoimento de Pai-Nhotire Xikrin, segurando a fotografia do avô nas mãos, ressalta a importância de não esquecer sua tradição e seu modo de viver. Ela diz: “Isso é a foto do meu avô. É ele que conta toda a história”. Afirma ainda que os jovens que vão estudar na cidade precisam voltar para a aldeia para ficarem indígenas. As imagens despertam um desejo de resgate da memória, porém é a vivência da aldeia, o contato com a terra e a proximidade dos parentes que possibilitam, de fato, o “ser indígena”. Os arquivos guardam vestígios desse ser indígena, mas sozinhos não fazem com que a tradição sobreviva. Eles precisam ser vistos e manipulados por seu povo para que o cheiro de urucum e fuligem nunca se dissipe do maracá. 

    Já em Curupira e a Máquina do Destino, de Janaina Wagner, reencontramos o fantasma da personagem Iracema, de Iracema – Uma Transa Amazônica, em um encontro com uma curupira. Enquanto a figura de Iracema nos remete à destruição da floresta ao ser cortada pela rodovia, a Curupira representa a proteção da floresta. Os dois seres, ao longo do filme, desaparecem e reaparecem na tela de maneira intermitente, na Estrada Fantasma, no Amazonas. O projeto desenvolvimentista da década de 1970, nos informa a legenda, pregava o desaparecimento de curupiras e macunaímas. O filme, porém, recupera as figuras míticas, colocando Iracema, por sua inocência, ao lado delas. O filme de Bodansky e Senna, que foi censurado entre os anos de 1974 e 1980 por contrariar a propaganda oficial da ditadura militar, reaparece agora evocado como um arquivo que está no fora de campo. 

    Enquanto Iracema observa as fotografias da região da Transamazônica, como se estivesse em um velório, as vozes ao fundo indagam sobre a existência da curupira, após uma reportagem na televisão anunciar que uma delas teria sido vista. Enquanto escutamos as histórias de curupira, a câmera se aproxima da imagem de arquivo da Transamazônica do período de sua construção, até que, após a frase “curupira existe”, há um corte e vemos a tela preta. Em seguida uma luz de farol e outra de vela aparecem na tela, junto com um canto sussurrado. Após imagens recentes da rodovia, vemos o fantasma de Iracema entrar na floresta e, como que num retorno ao passado, o filme retoma, na montagem, imagens em p&b da construção da Transamazônica, remetendo à violência e à destruição causadas pelas obras. Em seguida, acompanhamos Iracema, que nada mais pode fazer, a não ser vagar pela floresta, até que finalmente se encontra com Curupira, com chamas em seus cabelos, que diz que aqueles que se salvaram trazem a notícia de que o mundo é grande e cresce todos os dias entre o fogo e o amor e, assim, seu coração também pode crescer, entre o amor e o fogo, a vida e o fogo. O filme termina com a inscrição na tela: “Curupira tudo existe”, nos lembrando que a floresta existe e resiste.

    De modo muito singular, cada um dos filmes ressalta a importância da história para se pensar e viver o presente; da memória para reconhecer e reparar injustiças, para fazer sobreviver a tradição, ainda que de maneira intermitente. As sobrevivências, como afirmou Georges Didi-Huberman (2011, p. 84), dizem respeito à imanência do tempo histórico, elas são lampejos passeando nas trevas: “Porque elas nos ensinam que a destruição nunca é absoluta – mesmo que fosse ela contínua”. Assim, uma política das sobrevivências dispensaria o fim dos tempos e, para isso, as imagens podem nos oferecer pequenos lampejos.

Currículo

Julia Fagioli

é professora, pesquisadora e curadora. Mestra e doutora em Comunicação Social pela UFMG. Atuou como professora substituta no curso de Comunicação Social da UFMG. Atualmente, realiza pesquisa de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFJF.

Referências

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
KEESE DOS SANTOS, Bruna. Corpo-papel: um estudo imagético sobre o acervo Lux Vidal de pinturas kayapó-xikrin. Dissertação (Mestrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). São Paulo: FAU-USP, 2019.