1. Uma certa tendência do cinema moderno se define: nos filmes “de ficção”, o uso cada vez mais manifesto de técnicas e modos do cinema direto.
Claro: Amor Louco (Rivette), mas também Partner (Bertolucci), A colecionadora (Rohmer); e os filmes do Godard, Garrel; A infância nua (Pialat) e Faces (Cassavetes), também, claro; mas também, no limite do paradoxo Crônica de Anna Magdalena Bach (Straub) e Silêncio e grito ( Jancso)... Enquanto que, de maneira complementar, outros filmes oriundos do cinema direto constituem-se narrativas e flertam, em parte ou inteiramente, com a ficção – ficções que eles produzem e organizam. Le règne du jour (Perrault), por exemplo; mas também – e já – todos os filmes de Rouch; alguns do Warhol; e até, limite do paradoxo, La rosière de Pessac (Eustache) e La rentrée des usines Wonder (filme de maio).
No lado estético, parece acontecer como se, para uma certa categoria do cinema contemporâneo (o da experimentação), os campos tradicionalmente separados, e até mesmo opostos, do “documentário” e do “ficcional” interpenetrassem-se cada vez mais, misturassem-se de mil maneiras, engajadas em e engajando um vasto processo de troca, um sistema de reciprocidade onde reportagem e ficção, alternados ou conjugados no mesmo filme, reagem-se um sobre o outro, alteram-se, transformam-se e terminam por se valerem um pelo outro.
2. Esse jogo impõe redefinir o cinema direto: ele pode englobar o ficcional como também estar implicado nele; ele pode ser instrumento e efeito de uma narração; o cinema direto transborda de todos os lados o espaço que lhe infligia a simples reportagem. É sobre essa redefinição e sobre a análise da função e da influência do cinema direto que falarei nesse primeiro artigo. No segundo, procurarei falar dos diferentes graus e modos de integração do direto nos filmes “de ficção” do cinema contemporâneo.
Sabemos onde começa o cinema direto, mas não onde ele termina.
Ele começa, na verdade, no mais elementar filme de reportagem (tipo atualidades), no mais simples documento fílmico-sonoro – nível, aliás, no qual ele é mais usado, pela televisão, pelos sociólogos e etnólogos, pelos educadores e detetives.
Mas esse fato (que se acha o direto em seu “estado puro” em qualquer entrevista filmada ou enquete, em qualquer pedaço de reportagem ou de jornais) não deve levar a considerar esses como exemplos daquele, como lugares e figuras ideais de seu absoluto estético. A reportagem só pode valer como definição mínima do direto e, mais que sua forma por excelência, que sua ilustração perfeita, que seu modelo, ela é seu grau zero, sua raiz primeira.
O direto está em estado bruto em todo fragmento de reportagem, como o cinema está em estado bruto em toda sequência de imagens.
3. Parece-me que, desse grau zero é oriunda a maior parte das reportagens que se dizem “objetivas”, modelos, não-intervencionistas (com algumas exceções, estudadas no parágrafo 7). Nessas reportagens muito boas (ou não tão boas) está em jogo o que Louis Marcorelles chama “magia do direto”; mas não me parece que elas possam preencher esse papel de modelo do cinema direto, é necessário comparar outros filmes.
Isso acontece não por falta de honestidade ou de “respeito da matéria filmada”, mas por ausência de audácia, excesso do dito respeito. Subemprego, de alguma maneira, das possibilidades e paradoxos do cinema direto; negligência do princípio da perversão que está na base do direto, de sua própria natureza.
4. A mentira fundamental do cinema direto é, na verdade, que pretende-se verdadeiramente transcrever a verdade da vida, que nos colocamos como testemunhas e colocamos o cinema como de gravação mecânica dos fatos e das coisas. Enquanto que, claro, o fato de filmar constitui uma intervenção produtora que altera e transforma a matéria gravada. A partir do momento que a câmera intervém começa uma manipulação; e cada operação – mesmo limitada a seu motivo mais técnico: ligar a câmera, desligá-la, mudar de ângulo ou de lente, escolher os rushes, montá-los –, constitui, queira-se ou não, uma manipulação do documento. Mesmo que se queira respeitar o documento, não se pode evitar de fabricá-lo. Ele não existe antes da reportagem, mas é produto dela.
Detectar que existe antinomia entre cinema direto e manipulação estética é, de certa maneira, hipocrisia.
E fazer cinema direto como se as inevitáveis intervenções e manipulações produtoras (de sentido, de efeito, de estrutura) não constassem e fossem somente práticas e não estéticas significa exigir somente o nível mais elementar do cinema direto. É também afastar todas as suas potencialidades, censurar em nome das ilusões da honestidade, da não-intervenção e da humildade, sua natural função criadora, a produtividade do cinema direto.
5. Consequência desse princípio produtivo do cinema direto, e consequência automática das manipulações que anulam o documento filmado: um certo coeficiente de “irrealidade”, um tipo de aura ficcional agarra-se aos acontecimentos e fatos filmados. Todo documento, toda gravação bruta de acontecimento, a partir do momento em que constituídos em filme, colocados na perspectiva cinematográfica, adquirem uma realidade fílmica que se acrescenta/ou se subtrai à realidade inicial própria deles (de seu valor “vivido”), desrealizando-a ou superrealizando-a, mas, nos dois casos, “falseando-a” levemente, colocando-a do lado da ficção.
Todo um jogo de trocas, de inversões, instaura-se no cinema direto entre o que chamamos de efeito de realidade (impressão do vivido, do verdadeiro etc.) e o efeito de ficção (sensível, por exemplo, no patamar da asserção corriqueira: “bonito demais para ser verdade” etc.).
E, para ir ao fundo do paradoxo do direto, poderíamos dizer que ele só começa a valer enquanto tal a partir do momento em que se abre na reportagem uma falha por onde penetra ficção, por onde também se trai – ou se confessa – a mentira fundamental que comanda a reportagem: que, no âmago mesmo da não-intervenção, reina a manipulação.
6. Um princípio existe em todo filme de reportagem, dependendo da natureza e do grau de manipulações que o cercam e o fabricam: quanto mais houver manipulação, mais se garante o aparecimento da ficção, mais se dá um recuo (crítico e estético) que modifica a leitura (e a natureza) do acontecimento gravado.
Assim, assegura-se a passagem do testemunho ao comentário, do comentário à reflexão, da imagem-som à ideia. Mas uma notável consequência dessa perversão do direto por si mesmo é que o ultrapassar do documento desse princípio em que a ficção o afeta produz um efeito de contraste de maneira que, ao mesmo tempo que ele se cerca de ficção – e, portanto, desnaturaliza-se –, o documento se revaloriza, reage a essa fuga de realidade através de um reganhar de sentido, de coerência que, ao final dessa dialética, confere-lhe finalmente um poder talvez maior de convicção, reforça sua “verdade” depois do – e por causa do – passeio pelo “fictício”.
7. Inversamente, no caso da maior ausência possível de manipulação (quando a intervenção limita-se a estar lá para filmar), a passagem para a ficção pode ser total e sem volta.
La rentrée des usines Wonder conta com somente um plano, que dura o tempo do rolo de 120 metros. Não há nenhuma outra montagem ou manipulação: o acontecimento absolutamente bruto. Uma operária, no dia da retomada do trabalho nas usines Wonder, é levada pelo patrão, pelo responsável sindical e pelos colegas, a renunciar aos objetivos da greve. Ela resiste, chora. Em torno dela, alguns a consolam e a encorajam: não, a greve não foi inútil, a retomada do trabalho é uma vitória dos trabalhadores, etc. Em um plano, e “quase por milagre”, existe cristalização e simbolização da situação geral das relações entre operários-patrões-sindicalistas nos meses de maio e junho. Cada personagem interpreta seu próprio papel e diz palavras que são frases-chave dessa greve. Uma irresistível impressão de mal estar se instala. Sabemos claramente que nada foi “traficado”. No entanto, tudo é tão exemplar, “mais verdadeiro que a verdade”, que só podemos evocar o mais brechtiano dos roteiros, o documento valendo como produto da mais controlada das ficções.
A mesma coisa acontece com La rosière de Pessac: aí há também as garantias mais seguras da hiperobjetividade, da total não-intervenção: três câmeras filmam a sequência da escolha da Rosière¹, a montagem obedece à cronologia dos discursos e dos atos. E esse extremo efeito de realidade, pouco a pouco, transforma-se em impressão de sonho. O comportamento exemplar dos personagens e de suas linguagens lembra o dos heróis de fábulas, mitos ou parábolas. A ficção triunfa sobre o real, ou melhor, ela lhe confere sua verdadeira dimensão que é de evocar arquétipos, de solicitar constantemente a moral das fábulas. É naturalmente que se dá a passagem do particular ao geral.
8. O papel da manipulação no cinema direto é de controlar tais escorregadelas e transformações abruptas: quer dizer, de provocá-las medindo a amplitude e o efeito.
A ausência (sempre relativa) de manipulação leva a consequências imprevisíveis e incontroláveis e a efeitos que podem ser (raramente) prodigiosos (Wonder, Pessac) ou (frequentemente) nulos: o ordinário das reportagens, platitude desértica, reino da insignificância e do informe.
A prova (pelo absurdo) que o cinema direto, fora da manipulação, limita-se a um grau zero é dada pelo “filme” de Warhol sobre o Empire State Building. Durante um dia, a câmera fica plantada frente ao edifício e filma o que há na frente dela, sem nenhuma outra intervenção a não ser a troca das bobinas. Mecanicamente, então, a um grau de pureza total, o acontecimento é gravado e restituído como tal. O resultado é um filme absolutamente não-significante e absolutamente não-formal, onde a confusão entre a dimensão documentária e ficcional é total, o conjunto flertando, além do “vivido” e do “fictício”, como onírico puro.
9. Mais um paradoxo e não é dos menores: o ultrapassar da linha que separa o que é recebido como “vivido”, “real”, “acontecimento bruto”, do que é ficcional, fábula, parábola; que essa passagem, que inverte perspectivas e valores, reproduz-se comumente e mais facilmente no cinema direto do que nos filmes majoritariamente ficcionais.
Como se a ficção somente estivesse mais disponível, mais próxima, quando ela não está inscrita como parte integrante do filme, nem previsto em seu programa; somente quando o filme, de alguma maneira, desemboque nela, seja brusca e acidentalmente em certas reportagens “puras” (La rosière, Wonder), seja no fato de que o filme fabrique essa ficção a medida que ele se fabrique a si mesmo (o caso dos filmes de direto altamente manipulados: Perrault, Rouch).
Chegamos assim à definição do cinema direto que tem uma relação de proporção entre a manipulação do documento (do acontecimento filmado) e sua significação (sua leitura). Essa última ganha em riqueza, coerência e força de convicção à medida que a impressão de realidade produzida pelo documento é contrariada, falsificada pela primeira. Ou ainda, levada à exemplaridade da ficção ou à generalidade da fábula. Isso são evidências, sem dúvida, mas esquecidas e, precisamente, “teóricas”, atuais do cinema direto, na medida em que estiveram esquecidas no fundo da história do cinema.
10. Voltemos às origens, à “história” do desenvolvimento do cinema direto. Origem sufocada pela revolução do cinema falado, mascarada pelo seu reinado.
Será preciso apenas três anos (1929-1931) para que o cinema inteiro mude de natureza, sofra uma mutação radical: brutalidade da mudança mas também da vitória do cinema falado, fulgurante, universal. Sob a pressão da multidão (do dinheiro), em três anos, ou seja, instantaneamente, desaparece o cinema mudo, que passa do estatuto superior de arte completa ao estágio inferior de desenvolvimento técnico. Suas várias conquistas estéticas e técnicas (montagem, decupagem, movimentos) são bruscamente ocultados por um único defeito: a falta da palavra.
Houve, claro, vários cineastas refratários à tal mudança. Mas os mais “dotados” deles (no sentido darwinista) adaptam-se o mais rápido possível à nova condição. E não é por acaso que os retardatários sejamos cineastas soviéticos (Boule de Suif, mudo, de Mikhail Room, data de 1934; no mesmo ano, somente 722 das 26.000 salas da União Soviética estão equipadas para o cinema falado – Sadoul): patentes e aparelhos são dos americanos. Mas foi também da União Soviética que vieram (a partir de 1927), os mais vigorosos protestos contra o cinema falado: Manifesto, de Pudovkine, Eisenstein e Alexandrov. Pois o cinema mudo russo, com Vertov e Eisenstein, conseguiu levar mais longe que as outras “avant-gardes” do cinema mudo² a pesquisa fundamental (ao mesmo tempo teórica e prática, casamento perfeito, a partir de então suspenso) sobre os poderes e meios do cinema, seus pontos formais e seus resultados no que se refere às significações e às emoções.
11. O impressionante (mas lógico) é que então o cinema direto (Kino-Pravda = cinema verdade) e o cinema de montagem sejam experimentados de maneira conjunta. Com Vertov, claro, mas também Eisenstein, que experimentava algumas ideias: nada de atores, nada de heróis, mas simplesmente homens, ou massas; nada de ficção e sim reportagem ou (Outubro, Encouraçado Potemkin) reconstituições como as atualidades filmadas; e, inseparável da utilização desses elementos da “vida verdadeira” do documentário e do direto, a manipulação pela montagem, a procura de rimas formais e de ritmo. Ambos os aspectos (direto/manipulação) explorados nesses modos de um cinema político, de uma arte revolucionária que não deveria mais nada às formas instaladas sob o capitalismo, às artes burguesas.
E com isso, tais pesquisas eram prejudicadas pelo triunfo do cinema falado. Na América e na Europa, de um lado, já que ele foi o triunfo da linguagem da ideologia dominante; na URSS, por outro lado, já que a palavra aí também podia ser suficiente para garantir (e controlar) a difusão da doutrina comunista e de seus ideais pelo cinema.
O sufocamento iria durar 13 anos. Justamente, por um lado, até as primeiras manifestações da revolução do direto; por outro lado, até o renascimento da montagem – uma não era necessariamente ligada à outra – no cinema moderno (Resnais, Godard, Straub).
12. No oposto da revolução do cinema falado, a revolução do direto não é profundamente bruta e irreversível, mas operação difusa, retorno de situação sutil, mudança insidiosa. Suas primeiras e discretas aparições não inauguram um reino exclusivo; suas primeiras manifestações não tornam caducas as modalidades anteriores do cinema – elas passam até mesmo despercebidas, a não ser de alguns especialistas: cineastas, críticos, utilizadores privilegiados (televisão, sociólogos, polícia).
Trata-se então de determinar em que o cinema direto marca bem, apesar das aparências, que há revolução, que uma ruptura foi consumada, uma diferença inscrita na concepção/fabricação do cinema.
13. A colocação em órbita do direto é, primeiro, produto de um progresso da técnica. O formato 16mm se propaga e se aperfeiçoa, graças ao mercado do cinema amador e, depois, da televisão. Essa (com as atualidades e as guerras) forma técnicos mais rápidos, polivalentes e audaciosos. Simultaneamente, a sensibilidade das películas progride, tornando cada vez menos necessários os dispendiosos e pouco práticos meios de produção de luz artificial. As câmeras ficam consideravelmente mais leves e com menos volume, o que facilita o uso. Pode-se filmar em todos os lugares, rapidamente, de maneira mais discreta e mais pessoas podem operar as câmeras sem um formação muito aprofundada. Além disso, essas câmeras tornam-se sincronizadas e silenciosas, eliminando a necessidade do estúdio e da pós-sincronização, que custam caro e incitam à reconstituição (a re-presentação).
Trinta anos depois, os preceitos de Dziga Vertov podem ser aplicados sem que haja perda da ideia (tudo filmar, tudo gravar, estar na vida sem a perturbar ou a falsear) ou da realização (Vertov se limitou a filmar somente as manifestações públicas, multidões, cerimônias etc., e só não podia apreender a vida quotidiana a partir do momento que seu aparelho não passava despercebido).
No que diz respeito à gravação da imagem, realiza-se um verdadeiro cine-olho, mas auxiliado por uma orelha, pois, pela primeira vez, a palavra torna-se inseparável dos lábios e da vida. Ela não é mais o laborioso produto de uma reconstituição, de uma refabricação aproximativa (e necessariamente teatral, já que escrita e recriada), mas sim, ao mesmo título do visível, o primeiro grau do filmável. Com o cinema falado, era a linguagem da classe no poder e das ideologias dominantes que conquistava o cinema. Enquanto que com o som sincronizado, é o cinema que conquista a palavra, toda a palavra, a de uns e de outros, a dos operários e a dos patrões.
14. Mas esse progresso técnico não tornava por si só inutilizáveis ou fora de moda os outros procedimentos (ao contrário do que se deu com o cinema mudo/falado). Ele não só não os anulava como não podia substituí-los, nem completa nem parcialmente. As técnicas do direto não convêm nem à indústria nem à estética do cinema de re-presentação. O direto não permite filmar as mesmas coisas que o não- direto de uma melhor e nova maneira. Ele permite filmar outra coisa. Ele abre ao cinema um novo horizonte e o faz mudar de objeto – e, consequentemente, de função e de natureza.
O direto deixa, então, o cinema no lugar onde ele estava e estará desde o advento do cinema falado. Suas técnicas não são especialmente adaptadas nem aos objetivos, nem às práticas, nem aos conteúdos do cinema clássico (chamado assim para simplificar), não interessam muito a ele e nem, consequentemente, à indústria que o alimenta.
O cinema clássico marginaliza o cinema direto, o faz servir a seus subprodutos: os primórdios da televisão, cinema documentário e educativo, cinema publicitário etc.
15. A difusão do cinema direto encontra um grande número de resistências da parte de todas as instâncias que detêm o poder no cinema. A indústria do espetáculo não encoraja as técnicas mais econômicas que as habituais: fabricantes de películas e de câmeras, laboratórios etc.; sindicatos de técnicos, hostis a uma diminuição das equipes; as castas técnicas, assustadas com a facilidade de utilização dos novos instrumentos, que os coloca ao alcance de mais pessoas e tornam inúteis os sistemas de iniciação, de formação, de hierarquização e de controle dos técnicos do cinema; e, enfim, os poderes públicos, que temem – com razão – de não poderem mais controlar facilmente o cinema enquanto agente ideológico, a partir do momento em que ele se torna independente do dinheiro, podendo ir a todo canto, filmar tudo, a preços menores e mais discretamente.
Libertado das cadeias capitalistas, libertado da dupla precaução do roteiro e do estúdio, como do controle suplementar a posteriori da estreia nas salas comerciais, o cinema torna-se perigoso. Ao menos, ele pode sê-lo.
Assim, o cinema direto permite considerar o sistema industrial/comercial do cinema como um sistema repressivo: o ciclo econômico tem uma função política, o controle ideológico do cinema mascara-se e exerce-se através de pressões econômicas. O direto escapa a um tal círculo vicioso. Nada mais condizente então que a pesquisa estética valha politicamente.
16. Essas censuras econômicas/ideológicas contribuem para manter o direto nas margens do cinema. Mas, colocar o cinema direto fora do jogo comercial, afastá-lo do circuito das salas não basta para matá-lo. Isso o força a se desenvolver numa certa clandestinidade. Sufocá-lo por razões políticas só lhe dará mais razões para ser político. Com isso, os cineastas pioneiros que o praticam são levados, e forçados, a se perguntar sobre a natureza política do cinema direto.
Condições de trabalho e pressões econômicas fazem com que o cinema direto tenha uma situação política, mesmo que a maioria dos filmes que o pratica não seja, a princípio, político.
Com o direto, o cinema se volta para a função política que lhe atribuía Eisenstein e Vertov. O hiato chega ao fim. Com o direto, a alienação deixa de ser, ao mesmo tempo, a condição do cinema e a sua função.
17. Privado pelo sistema de sucumbir à tentação burguesa, o direto desenvolve-se, assim, de maneira selvagem. Ele é um cinema que se inventa à medida que é feito, os cineastas se tornam câmeras e os câmeras, cineastas; a bricolagem técnico-estética remedia as lacunas da indústria e a ausência de tradições; a experimentação acarreta, como em nenhum outro lugar, relações imagem/som, documento/ficção, palavra/montagem; renuncia-se aos atores e inicia-se uma das maiores aventuras do cinema moderno (recomeça a aventura do cinema mudo): devida a essa ascensão dos não-atores, desse triunfo dos não-profissionais (demonstração, aliás, da invalidade das estrelas devido a predominância de desconhecidos). Resta somente personagens: de filme e de vida, de “real” e de “ficção. Uma nova e forte ligação une o cinema ao vivido, reúne-os e articula-os em uma só e mesma linguagem. A vida não é mais representada pelo cinema, este não é mais a imagem – o modelo – daquela. Juntos, eles dialogam e se produzem por e nessa palavra.
Várias rupturas em vários planos (técnico, estético, econômico, político) e com os modos de fabricação e de utilização do cinema clássico confirmam que há, nesse momento, uma revolução pelo direto. Mas, podemos falar de uma revolução igual a do cinema falado, por se tratar de um cinema marginal, hiper-especializado, praticado quase clandestinamente por, finalmente, poucos cineastas “verdadeiros”?
18. A existência do cinema direto força o cinema a se redefinir. Tudo acontece como se o direto tivesse agido sobre o conjunto do cinema como um revelador. Na particularidade do direto está inscrito para o cinema, de maneira geral, uma dupla mudança: de natureza e de função.
A partir do momento em que, pelo direto, o cinema articula-se à vida segundo um sistema não de reprodução, mas de produção recíproca, o filme (Perrault, Rouch), ao mesmo tempo, é produzido e produz os acontecimentos e situações. Essa dupla articulação constitui a reflexão e a crítica desses filmes, a linguagem deles. A partir daí, a outra parte do cinema (a maior), onde mil definições e contradições parecem inextricavelmente imbricadas, junta-se e sela-se em uma definição única, reduz-se a uma só dimensão: representação. Jogo socialmente codificado em vista da constituição de um espetáculo paralelo à vida que, através dessa superposição, obstrui a vida, substituindo à coisa sua reconstituição.
Mas essa re-presentação é sempre (mais ou menos) manipulada pela ideologia dominante, tanto no que se refere à fabricação (e não somente econômica, mas através do jogo das convenções sociais que caracteriza toda narrativa) quanto à utilização, como espetáculo.
Pelo menos em parte, o cinema direto escapa à tripla dependência ideológica (economia, convenção, espetáculo). E mais, ele manipula a ideologia, ele é produtor de sentido político.
19. A separação entre direto e não-direto divide, então, estética e ideologicamente, produção de re-presentação, transformação de transposição. Mas esse abismo, embora categórico, aparece, curiosamente, à medida que nos aproximamos do cinema contemporâneo. Como se ele associasse o que ele separa, misturasse o que distingue. O cinema direto (conta)minou o cinema de representação, modificou-o por influência e contato e foi graças a essa proximidade que se deu a revolução do direto.
20. Vejamos, primeiramente, o aspecto econômico. Os cineastas “independentes” (de maneira geral, os “autores”, os jovens cineastas), mais ou menos rejeitados (ou não aceitos) pelo sistema comercial, recorrem cada vez mais às técnicas menos onerosas do direto. Ou seja, eles rodam em 16mm (ainda raro) ou filmam com pequenas equipes (mais comum), material de reportagem, em cenários naturais e sem estrelas – até sem “atores”. A utilização dos procedimentos do direto pelo cinema de ficção, no caso, não desvirtuam aquele em favor deste, mas força este no sentido daquele. No lado estético, as técnicas do direto abrem uma nova dimensão formal (e temática, já vimos), uma zona franca de experimentação e de invenção, de manipulação das relações som/imagem, vivido-documento/ficcional, acaso/estrutura, dos quais as possibilidades aparentemente infinitas de variação e combinação (das quais tratarei num próximo artigo) atraem cada vez mais os cineastas.
No lado estético, o problema do papel do cinema na sociedade, da sua função política, ocultada durante muito tempo, é, de novo, colocada como essencial.
A revolução do direto transformou as perspectivas já transformadas pelo aparecimento do cinema falado. Um primeiro sentido de revolução é o de rotação completa, no caso, volta completa do cinema em volta de si mesmo, para encontrar, ao final dessa transformação, que foi também desvio e desvirtuamento, certos avanços na prática e na teoria do cinema mudo (sobretudo quanto ao papel do montador, à importância da manipulação e à visão política do cinema).
21. O que quer dizer o uso que os cineastas modernos, cada vez mais numerosos, fazem do cinema direto? De que maneira e por que o direto vem, hoje, não somente surgir no seio de certos filmes “de ficção”, mas coloca-se a serviço da própria ficção, fazendo dela um instrumento e, talvez, o instrumento privilegiado? Na primeira parte desse estudo, nós partíamos de uma simples constatação: que alguns dos filmes-chave do cinema contemporâneo, de Amor Louco a Partner, de A colecionadora a Faces, de maneiras diferentes, pegam emprestado (e fazem mais do que pegar emprestado: usam com o objetivo de uma produção) técnicas e métodos do cinema direto. Com esse recurso ao direto, experimentam, diferentemente, as condições e possibilidades de uma “ultrapassagem” (ou de uma modificação, de um questionamento, de uma alteração mais ou menos grandes) do sistema de re-presentação tal como ele determina tradicionalmente todo cinema de ficção.
Tal constatação levava a um certo número de questões:
1) quanto à definição do cinema direto e a diferença (ou as diferenças) entre direto e não-direto; 2) quanto ao papel de revelador que teria o direto em relação às contradições e limites do não-direto (função teórica do cinema direto); 3) quanto às condições de aparição, de constituição, de desenvolvimento, de prática do direto na história e o movimento do cinema (função política do direto).
Notava-se, aliás, que o cinema direto é sempre um cinema de manipulação, e que em certos casos limites (Usines Wonder, Rosière de Pessac) a acidental ou voluntária quase supressão da redução da manipulação encadeava efeitos surpreendentes, opostos ao princípio documental desses filmes: uma irresistível escorregadela do documento – quando ela não é controlada por uma manipulação – em direção ao ficcional, uma transformação do “vivido” em “fictício”, tal qual parece que, no cinema direto, não é o simples fato de filmar acontecimentos reais que é, automaticamente, produtor da impressão de “realismo”, mas, ao contrário, são todas as operações estéticas (mais ou menos “desrealizantes” já que portam sobre a matéria fílmica), todo o jogo da manipulação, que produzem a impressão do “puro documento” – como efeito, a partir de então, e força do artifício.
22. Essa observação indica o quão arbitrário seria a definição de uma fronteira nítida entre direto e não-direto. O que, no plano dos conceitos, facilmente opõe-se, distingue-se e estabelece-se como diferenças comparáveis, pode, nas obras, não exatamente se confundir, mas existir simultaneamente, interagir, estabelecer troca sem um processo de reciprocidade que relativiza e, de alguma maneira, perverte os termos da dualidade. “Ficcional” e “documentário” não são antagonistas, nem impermeáveis. E o filme, que ele seja direto ou não, é sempre cinema, tudo o que ele mostra é ficção, ficção da ficção, ficção do documento. “A obra é um tecido de ficções. Ela não contém, propriamente, nada de verdade. No entanto, na medida em que ela não é ilusão pura, mas uma mentira confessa, ela pede para ser tomada por verídica: ela não é uma ilusão qualquer, mas uma ilusão determinada” (Macherey). No filme, também, a ficção é tão verdadeira quanto o documento; reciprocamente, este é, ao mesmo tempo, tão “verdadeiro” e tão “falso” que aquela: por direito, eles valem a mesma coisa no filme. Na verdade, eles valem conforme seu uso, o que lhe faz a “ilusão determinada” que é o filme. Convém também precisar que, se distinguirmos num mesmo filme ficção e documentário, também é sem perder de vista que um e outro são oriundos de uma mesma “realidade” (ou “irrealidade”) fílmica. Por outro lado, devemos levar em conta não a verdade ou a falsidade de suas naturezas (já que essa natureza, na ficção e no documentário, é cinematográfica), mas o efeito que eles produzem, a impressão que eles geram e não, independentemente, um e outro (num absoluto que seria o da lógica e não do terreno da obra), mas precisamente a ligação entre eles, sua relação, seus valores de contraste e de troca.
É a função do documento para a ficção e da ficção para o documento que é preciso estudar; ou melhor, como eles se evocam, produzem-se um ao outro, como eles se repercutem e se esbarram na dupla dimensão – mentirosa e verídica – do filme.
***
29. Ora, na primeira parte deste texto, nós falávamos desse fenômeno de interprodução do acontecimento e do filme, um pelo outro, como uma das principais contribuições (estéticas, teóricas, políticas) do cinema direto. Que se trate aqui mais do que de uma convergência, no aspecto da concepção/fabricação do filme, de elementos do cinema de ficção e do cinema direto, é provado pelo fato de Jancso, justamente, não utilizar nenhuma das técnicas específicas do cinema direto. Trata-se então de uma certa prática do cinema de ficção equivalente a uma certa prática do cinema direto. Assiste-se, na verdade, à produção em direto³ de uma ficção cinematográfica.
O argumento segundo o qual o fato de Jancso não filmar com som sincronizado tornaria abusiva toda analogia entre seu sistema e o cinema direto cai por terra a partir do momento em que os diálogos do filme, como vimos, não são outra coisa que o eco, no plano, das ordens e indicações que compõem esse plano (ordens, essas, necessariamente sincronizadas ao plano).
Assim, vê-se como – mesmo quando, por razões estilístico-técnicas o direto parece “barrado” de um filme de ficção – pode acontecer de a ficção funcionar “como” o direto. Isso viria, de maneira decisiva, acabar com qualquer rastro de uma fronteira entre direto e não-direto, se não fosse que o direto é, simplesmente, uma das maneiras de ser do não-direto.
30. Pois, todo o cinema, se podemos assim dizer, é “não direto”. A imagem cinematográfica é precisamente uma “imagem”; projetada, ela é “espetáculo”. Seria preciso dizer, consequentemente, que só há cinema da re-presentação. Mas essa fatalidade da re-presentação é mais ou menos agravada ou atenuada pelas modalidades de fabricação do filme. Nos filmes que fazem parte do que chamei de “sistema da re-presentação ”(a grande maioria dos filmes feitos no modelo hollywoodiano), essa fatalidade é redobrada, quiçá multiplicada, pelas etapas sucessivas da fabricação do filme, cada etapa sendo re-presentação e reprodução da precedente. Assim, o projeto do filme é, uma primeira vez, repetido no roteiro; este pela decupagem; este mesmo reconduzido a repetições (o nome já indica); essas repetições reproduzidas durante a filmagem, da qual a montagem nada mais é que a reconstituição, a pós-sincronização que fecha, enfim, o ciclo das representações.
Um tal processo de desdobramentos, ao contrário de permitir (como se pode imaginar) novas e decisivas intervenções a cada etapa diferente, impõe a mais extrema autofidelidade (sob pena de se fazer desabar o edifício inteiro, exemplos: as remontagens dos produtores) e só autoriza os mais leves retoques e variações. Assim, cada nova operação será, na verdade, uma falsa operação, um quase-mecânico recomeço da precedente, imitadora e não produtiva. Cem vezes reiniciada, “a obra” não será cem vezes modificada, mas cem vezes reconduzida, cópia de si mesma.
Quer dizer, não somente a cópia desse mundo ou dessa “realidade” que lhe são preexistentes (mesmo que mundo e “realidade” sejam mediatizados por um roteiro, trata-se sempre do roteiro deles) e do qual ele garantirá quase automaticamente a ideologia, mas a cópia dessa cópia primeira, seu reforço e sua perpetuação lógicos.
31. Concebe-se que o cinema (através de diversos cineastas) tenha tentado, em diversas circunstâncias, escapar a essa armadilha da re-presentação perpétua. Contra a difusão e a denominação universais do modelo hollywoodiano, houve uma espécie de tentação do “direto” (muito vaga, totalmente mal formulada) que se manifesta numa dupla dimensão: redução do número de operações de fabricação do filme (supressão do roteiro, improvisação etc., que deveria chegar às primeiras experiências do cinema direto ficcional, Shadows, Rouch) ou reinvestimento de uma certa produtividade nessas operações (ressureição da montagem) – e redução da falsa inocência da re-presentação pela ficção dessa re-presentação. Assim, vimos, em Hollywood e noutros lugares, uma quantidade de filmes que têm por objeto um espetáculo já constituído, teatro ou show, até mesmo filme.
Em muitos musicais (A roda da fortuna, The Bad wagon, Minelli, 1953), assim como em La carrosse d’or (Renoir, 1952), A regra do jogo (Renoir, 1939), muitos Bergmans, The Patsy (King Vidor, 1928) etc., o fenômeno da re-presentação torna-se parte da ficção do filme, um dos seus motores dramáticos. Essa dimensão suplementar (no princípio do filme, já há re-presentação da re-presentação) produz um efeito, se podemos assim dizer, de “franchise”. O filme designa-se (para não dizer, denuncia-se) aqui como ilusão, lá como reconstituição ou espetáculo: pelo que ele é. É a confissão de uma certa má consciência do espetáculo a ser espetáculo que nasce (de onde vem, sem dúvida, essa comum e aparentemente inesgotável fascinação pelo teatro etc.). Mas também a re-presentação se confessando como tal e tomando-se por tema explícito, filmando-se, a re-presentação dessa re-presentação (o filme) torna-se, de uma certa maneira, primeiro, direta. Filmar um espetáculo é, efetivamente, fazer ato de reportagem, reintroduzir documentário na ficção.
32. Se a ficção é ficção da representação, se essa última é filmada diretamente, se o espetáculo torna-se documento, os efeitos de inversão e de contraste que já havíamos encontrado com relação a certos filmes de cinema direto não podem deixar de contar. Designado como tal, revelado na sua contingência, o espetáculo na ficção tem um papel de suporte, que faz aparecer essa ficção como mais “verdadeira” que ele próprio, concedendo-lhe uma dose de autenticidade ainda maior que ele, apresentado mais como autêntico espetáculo.
Quanto mais o espetáculo é designado como espetáculo (a autenticidade, a “realidade” de um espetáculo sendo sua artificialidade) mais o resto do filme será tido como verídico. É nesse processo de contraste que os musicais devem poder emocionar pela fantasia, de continuar credíveis no meio de todos os delírios. É esse mesmo processo que é explorado por, e faz funcionar La carrosse d’or: a “vida” e o “teatro” trocam seus valores, tudo é re-presentação, o espetáculo sucessivamente se trai e triunfa.
33. O ponto máximo dessa dialética re-presentação/re-presentação da re-presentação, espetáculo ficcional e ficção do espetáculo está em Amor Louco, de Rivette. Ponto culminante pois, aqui, o espetáculo representado, a ficção de um espetáculo são, efetivamente, filmados em reportagem, em cinema direto. Todos os “ensaios” no palco de Andromaque, sabemos, são filmados por uma equipe de direto, dirigida por Labarthe. Essa é a ocasião de homenagear – para Rivette e para mim mesmo – aquele que mais praticou, sem dúvida, nos programas Cineastes de notre temps, a perversão mútua do documento e do ficcional, os trechos de filmes de ficção adquirem estatuto de “documentos” e as entrevistas dos cineastas, o de narrativas e ficções abertas a todos a todos fantasmas: Ford, Fuller, Sternberg, Cassavettes.
Essa equipe de direto é filmada pela câmera 35mm que assegura a ficção do filme. Opera-se, assim, uma sutil inversão: o espetáculo sendo filmado no direto, representado ao mesmo tempo como espetáculo “real” e documento bruto (por causa, sobretudo, do grão da imagem 16mm), carrega-se e descarrega-se, alternativamente, em “efeito de realidade”, é marcado, por fases, desse coeficiente de autenticidade do qual falávamos antes. O efeito de contraste aparece não somente entre o espetáculo-na-ficção e a própria ficção, mas, antes de tudo, no interior da re-presentação do espetáculo. De um lado, mostrando-se e filmando-se, ele designa-se como espetáculo e, então, (como nos musicais) como ordem mentirosa, “não-realidade”. De outro lado, e simultaneamente, já que ele é filmado em reportagem, ele adquire uma “realidade” imediata, bruta, que anula esse caráter de falsidade que é a autenticidade do espetáculo. À verdade do espetáculo como artificialidade, substitui-se uma verdade do espetáculo como acontecimento.
No máximo, o efeito de contraste se dá em sentido contrário: são as cenas de não-espetáculo (vida quotidiana, apartamento, brigas de casal, cenas de solidão) que são tocadas de uma certa artificialidade, devido ao forte coeficiente de realidade das cenas do teatro. É a ficção que se designa então como ficção, a “vida” como fictícia; o teatro esvaziado de sua artificialidade e essa passando para “vida”; todas as fantasias transferidas da re-presentação da peça à da “vida”.
34. Voltando ao problema da imagem como “duplo” do “mundo” citemos, mais uma vez, Macherey: “a imagem absolutamente conforme ao modelo confunde-se com ele, e perde seu estatuto de imagem. Ela só se mantém imagem pela distância que a separa do que ela imita”.
Marcelin Pleynet pôde constatar a natureza duplicadora da imagem cinematográfica e repreender o cinema, “duplo do mundo”, de ser o natural cúmplice ideológico dele. Reproduzindo somente a “realidade”, o filme estaria do lado da ideologia ou, pelo menos, estaria envolvido com ela.
Por um lado, é preciso ressaltar que a imagem cinematográfica só reproduz, mecanicamente, uma fração do mundo, precisamente aquela que a câmera designa. Esse processo de eleição não acarreta modificação da parte “eleita” do mundo, mas podemos dizer que tal fragmento, a partir do momento em que uma câmera o designa para filmá-lo, não é mais igual a si próprio, mas igual a ele mais a câmera. É justamente essa “defasagem” que faz com que a imagem não seja exatamente igual a seu modelo. Mas essa defasagem não impede a imagem, se ela não é exatamente conforme o modelo, de lhe ser fiel, de representá-lo sem transformá-lo verdadeiramente, de continuar submissa a ele.
Por outro lado, um filme é raramente só uma sequência de imagens cinematográficas, ele é o produto de um certo trabalho que se opera sobre as imagens como material de base, mas também sobre os sentidos, ritmos, figuras etc.
Será, então, na dimensão das modalidades da re-presentação que se efetuará ou não a duplicação do “mundo”, a ruminação da sua ideologia ou, ao contrário, sua “transformação” com produção de novo sentido (cf. 30). O que o “sistema da re-presentação”, ao redobrar em suas reproduções em cadeia o fenômeno da duplicação mecânica da “realidade” (e redobrando-o, antes de tudo, no momento do roteiro que aparece como modelo do filme, ao passo que ele é, em quase todos os casos, não a expressão de um “autor”, mas da ideologia, já que ele não é uma obra completa, nem filme, nem romance), não parece capaz de efetuar, o cinema direto, ficcional ou documentário, pode: destituir o mundo como modelo do filme, privando-o de qualquer “modelo”.
35. No cinema direto – e isso vale para os documentários (Leacock, Eustache etc.) e as ficções (Perrault, Rouch, Cassavetes, Baldi) – a filmagem não é, jamais, um momento de ensaio, de uma reconstituição da “realidade” nem de uma seleção no interior de uma realidade préfílmica, nos moldes da elaboração do roteiro no cinema de re-presentação. A filmagem é, ao contrário, um momento de acumulação, muitas vezes, sem “programa” fixo — imprime-se uma grande quantidade de película, da qual o destino não é determinado nem sabido. Trata-se de imagens da “realidade”, de acontecimentos filmados, mas, de alguma maneira, de imagens flutuantes, sem referencial, desprovidas de toda significação consistente, abertas a todos os destinos. Por outro lado, é na montagem, verdadeira filmagem (e é por isso que eu não acredito no famoso “contato” com a “realidade”, do qual Marcorelles diz ser o cerne do direto), que se dá não somente a escolha, a organização, a comparação das imagens e, sobretudo, a produção de sentido.
No cinema direto, o acontecimento filmado não preexiste ao filme, à filmagem, mas é produzido por ele. Não se pode, então, falar de uma “realidade” estranha ao filme, da qual ele se faria imagem, mas somente de um material filmado que é toda a realidade à qual o filme fará referência. A montagem parte desse material filmado como o roteiro-filmagem de um filme clássico parte da “realidade”. É da manipulação desse material que saem o filme e a “realidade” da qual ele trata. Rejeitando toda forma ou significação baseada em a prioris e toda predeterminação, não visando a reproduzir as coisas “tais como” (tais como prevê o roteiro do filme ou o da vida, o da ideologia) mas sim a transformá-las, a variar seu sentido e relações a partir do momento em que elas passam do estágio in-formado não-cinematográfico ao estágio da forma cinematográfica, o direto apresenta-se, no melhor dos casos, não como modelo, mas como prática do cinema.
>> Texto originalmente publicado em Cahiers du cinéma, n. 209, fevereiro e n. 211, abril de 1969, com o título Le detour par le dirèct
Currículo
Jean-Louis Comolli
Escritor e diretor de cinema francês. Foi editor-chefe da Cahiers du cinéma de 1966 a 1978, publicou, entre outros, Ver e Poder - A Inocência Perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário (UFMG, 2006).
Como citar este artigo
COMOLLI, Jean-Louis. O desvio pelo direto. Tradução: Pedro Maciel Guimarães. In: forumdoc.bh.2010: 14º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2010. p. 294-317 (Impresso).
Notas
[1] La rosière de Pessac (1968-1979) é um díptico de Jean Eustache, exibidos geralmente na sequência, onde o diretor filma dois momentos de um mesmo concurso de beleza separados por quase 10 anos. O concurso acontece na cidade de Pessac, no interior da França, cidade natal do cineasta. Trata-se de uma espécie de concurso de Rainha da Primavera onde as moças são escolhidas não somente pelos seus dotes físicos, mas sobretudo pelo seu comportamento moral e religioso dentro da sociedade. Eustache é crítico com relação ao processo todo, mas deixa seus personagens mostrarem eles mesmos o lado obsoleto e reacionário de tal proposta. [N.T.].
[2] Sob a influência da russa, diversas avant-gardes europeias dedicaram-se a pesquisas formais, rítmicas, plásticas e sobre a prática do documentário : Buñuel, Cavalcanti, Richter, Ruttman.
[3] O termo en direct em francês é usado para falar de todo produto audiovisual transmitido ao vivo. Comolli emprega-o, então, para fazer uma dupla referência à transmissão “ao vivo” e ao “cinema direto”. [N.T.].