O olhar da onça: sonho e cinema em A transformação de Canuto¹

O caçador está preso

à presa

((Ana Martins Marques, em A arte das armadilhas))

NENHUM GESTO

SEM PASSADO

NENHUM ROSTO

SEM O OUTRO

((Josely Vianna Baptista, em Roça barroca))

Um testemunho, uma carta, a narrativa de um sonho: assim se inicia A transformação de Canuto, ficção realizada a partir da experiência compartilhada entre Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, os dois diretores do filme. Diante da câmera de Ariel, em um registro feito anos antes, o avô, Dionísio, disserta sobre o modo de vida Mbyá-Guarani, tal como legado por Nhanderu. Em certo momento, é interrompido pelo neto, que pede para se afastar um pouco, reajustando o enquadramento. O plano seguinte virá da câmera de Ernesto que agora filma Ariel a filmar o avô: esse jogo de câmeras cifra uma parceria de longa data entre os dois diretores, que resulta agora neste filme notável, também gestado em um extenso período de trabalho. Logo em seu início, o filme nos situa em um regime ficcional no qual o cuidado e o investimento na construção da cena (assim como do roteiro e da montagem) são maneiras de dar a ver, em sua complexidade, a realidade de uma outra ficção, aquela da transformação de um homem em onça. Como mostrar, no filme, a realidade de uma transformação humanoanimal? Como realizá-la, sob o modo de uma experiência, no âmbito da ficção? Como não se restringir a tematizá-la, mas permitir que sua presença atue na forma mesma do filme, em seus silêncios, em suas intensidades? Talvez, pudéssemos antecipar a sugestão de que, em A transformação de Canuto, nota-se uma aliança entre a construção formal e narrativa (seja no âmbito do roteiro ou da mise-en-scène), e a abertura aos processos e improvisos, em uma forma que é constantemente tensionada e transtornada por uma força. O avô será interrompido novamente, agora, por uma moto que, ruidosa, atravessa o quadro. À passagem da moto, a montagem contrapõe a imagem da estrada em silêncio (ou quase em silêncio, já que o plano é sutilmente marcado pelo canto dos pássaros). A fala do avô prossegue, passando de um plano cosmológico, quando disserta sobre a “lei” de Nhanderu, para um plano histórico, ao se lembrar do momento de criação da aldeia, há 40 anos. Eles entram no carro, enquanto Ariel Kuaray permanece de fora, a contemplar e filmar a aldeia ao longe (acompanhado ainda pela câmera de Ernesto).

 

 

Sobre o plano silencioso da estrada, Ariel (que também será personagem do filme) lê uma carta ao companheiro. Do alto da estrada, em uma noite chuvosa, a aldeia não pode ser vista, é como se tivesse se tornado invisível. O avô está doente, não pode ir à Opy, isto é, a casa de reza, onde os diretores haviam feito, na última visita a Tamanduá, um longo registro com ele. No centro da aldeia, há agora uma enorme estrutura de madeira, que seria a escola e que se tornou uma “ruína do futuro”, como a define Ernesto. Vemos então o espaço quase despovoado, a não ser por uma ou outra pessoa a consultar solitariamente o celular. No sonho, os amigos estão dentro da casa, de onde, em contraplano, olham a estrada ao alto. A música inicia-se lentamente, enquanto Ariel comenta que o espaço é quase uma “assombração na comunidade”. Ele se lembra da história de Canuto. A trilha sonora acirra o regime da ficção, aqui, vizinho ao regime do sonho, enquanto acompanhamos uma sequência que nos é ainda enigmática: o enquadramento é próximo, em plano detalhe, nos levando a uma experiência tátil. A criança constrói uma delicada armadilha, feita de gravetos camuflados no capim. Ainda que breve, enigmática, como o lampejo de outro tempo naquele da narrativa em curso, a sequência parece irradiar para o filme, em seu conjunto, uma energia onírica, como uma armadilha que se arma não apenas para os bichos, como também para os personagens, para a equipe e para o espectador. Armadilha, assim, do sonho e da narrativa mitológica – espaços de metamorfose, de trânsito de perspectivas.

 

Quando a onça acorda

 

Na cena seguinte, Ariel Kuaray conversa com a equipe do filme sobre o momento difícil – momento de crise – que viveu como cacique de sua aldeia. Ao deixar de ser cacique, ele se desafia a fazer uma grande onça de madeira, que exibe para a câmera, não escondendo seu fascínio. Todos podem se transformar em onça: “Desde criança, a gente aprende que não podemos comer carne demais, porque podemos despertar esse espírito da onça que temos dentro da gente”. Enquanto lixa sua escultura, como a acariciá-la, somos confrontados com o olhar da onça que, predadora, nos interpela. É um olhar que vem do animal, mas que nos inquieta, porque, a acreditar nas palavras de Ariel, lastreadas pelas narrativas mitológicas de seu povo, é um olhar que vem também de dentro, da onça que, desde a infância, carregamos em nós. Que, em seguida, vejamos Ariel preparando um belo churrasco, é sinal de que o bicho ronda, para desordenar e desequilibrar as relações em torno. Ele ronda a ficção, ou melhor, ele é a ficção que desordena: a onça é a dimensão mais profunda de nossa realidade humana que, transformada em ficção coletiva, assombra (e fascina) a vida da comunidade. Ficção que, digamos mais uma vez, não se opõe ao real, mas que, ao fazer emergir sua dimensão mais recôndita, é capaz de desorganizar o real para transformá-lo, lançá-lo em um devir imprevisto e arriscado.

O filme será, assim, um modo de, por meio da ficção, nos aproximar da experiência de Canuto, aquele cujas histórias na aldeia Tamanduá, na fronteira do Brasil com a Argentina, ecoam a mítica transformação do homem em animal. Mais do que representar, recontar ou reconstituir a história de Canuto, trata-se de tornar a ficção e o filme no lugar onde ela será novamente, de algum modo, experienciada, presentificada. A reencenação será, portanto, um lugar de experiência: o filme quer acompanhar Canuto, habitar o processo de sua transformação em onça, em uma ficção que age no corpo, por meio do corpo, de seus modos, de suas miradas, suas artimanhas e suas esquivas. Junto aos testemunhos, mas para além deles, trata-se, como sugere Para Yxapy (Patrícia Ferreira) em cena do filme, de suspender o julgamento para entender o jepotá, isto é, a transformação que atravessa os corpos e as vidas, trazendo para elas sua desmesura.

O carro atravessa as paisagens planas rumo à fronteira, enquanto Ariel Kuaray e Para Yxapy dormem no banco de trás, abraçados à onça de madeira. Ela também parece dormir, aconchegada nos cabelos da companheira de viagem. Ao chegar à aldeia Tamanduá, eles descarregam a onça, para abrigá-la em um cômodo. Ela acorda, olha, e, novamente, uma energia onírica – a trilha sonora contribuirá para isso – parece se distribuir pelo entorno para transtorná-lo. Na montagem, o olhar da onça parece desencadear a tempestade, povoada por trovões e relâmpagos. Entre eles, pisca a imagem da escola em ruínas. Aqui, talvez, tenhamos mais um exemplo daquilo que certa vez chamamos, sem desenvolver, de montagem cósmica. Nela, dizíamos, nos interstícios de imagens heterogêneas, algo passa (um pathos) produzindo continuidade. “Esse o gesto paradoxal da montagem cósmica: o corte disruptivo não resulta em descontinuidade e, por sua vez, a continuidade apreendida no conjunto, não resulta em um todo orgânico. A montagem cósmica permite revelar a continuidade do descontínuo e a descontinuidade do contínuo” (BRASIL, 2018, p. 154). Da onça aos relâmpagos, destes à escola abandonada (onde, aliás, se abrigará o cinema), o que passa? Uma energia a um só tempo predadora e arriscada, transformadora: na floresta, no cosmos, na história. Essa energia (da infância, do sonho, do devir outro) se distribui e se espalha pelo filme, como matéria mesma da ficção.

 

 

A ficção e o sonho estão na base, ou na tessitura sensível, da comunidade. Por isso, precisam ser enunciados e elaborados coletivamente. Testemunhada por alguns, contada, adormecida, recalcada, retomada e recontada, essa ficção – como os sonhos – será coletivizada e, assim, passa a agir no modo mesmo como a comunidade se constitui; no modo como expõe e se expõe às suas metamorfoses e devires; no modo como as “regula”, ou como, em gesto recorrente no filme, “assenta” sobre elas a fumaça do petyngua (cachimbo). Essa dimensão metarreflexiva, que explicita como a ficção se elabora, será concretamente abrigada na diegese, talvez menos para expor o filme (a representação) como construção, do que para expressar justamente o caráter coletivo das ficções, algo que faz com que, sendo artifício, não deixem de ser realidade. Não se vê, aqui, reiteramos, a oposição tão persistente em nossa concepção de representação: entre artifício e “verdade”, entre sonho e realidade, entre o feito e o fato, entre invenção e tradição.

 

Infância do artifício

 

Do testemunho dos mais velhos no interior da casa, o filme nos leva à escola, cuja estrutura se abre como uma tela de cinema, espaço de enquadramentos e sobre-enquadramentos. Ali, as crianças vão encenar, ou brincar de onça, nessa espécie de teste de atores mirins. Se essa é uma das mais belas e perturbadoras sequências do filme, é porque, nela, parece se mostrar, na minúcia dos gestos e dos olhares, a liminaridade entre artifício (as maneiras do corpo que encena) e experiência (as maneiras do corpo que brinca, que vive). Liminaridade que, afinal, não significa limite, já que, mesmo em escala microscópica, não se conseguiria definir, na imagem, o que distingue um e outro domínio.

Toda construída sobre e por meio do sensível, a sequência porta uma sensualidade infantil, sensualidade, aliás, também presente na relação entre predador e presa: os olhares, as expressões, o contato dos corpos que fogem, se aproximam, se tocam, se atracam e se afastam. E quando o menino Álvaro Kuaray encara a câmera – firme, concernido, enigmático –, não resta dúvida de que fará o papel de Canuto. É porque ele parece atuar justamente nesse limiar: quando a verdade de uma transformação – da criança no personagem, do humano no animal – se mostra pelo artifício (o modo de olhar, as maneiras do corpo); quando a força do artifício (o engajamento ficcional que produz) se mostra pela experiência que o corpo carrega. Não à toa, entre os meninos, Álvaro, desde sempre, se revelou interessado na atividade da caça, se embrenhando na mata para construir suas sofisticadas armadilhas, nas quais captura pombas, saracuras e nambus. Dito de outro modo, tudo ali é artifício, mas, em sua emergência (na cena de um filme, por exemplo), o artifício retira sua força daquilo que vem de antes, para atravessá-lo e continuar para além dele.

Mas, nessa sequência, vale dizer, a aparição intensiva de uma liminaridade, de um momento de transformação, não se dá “naturalmente”, mas pela presença sensível da câmera, pelo modo como o enquadramento se faz, ele também, limiar entre duas miradas: aquela do cinema e aquela do menino-onça.

 

 

Na sequência, Ariel Kuaray faz as vezes da onça, a narrativa a sugerir, mais uma vez, uma energia de transformação que vai se distribuindo e tragando para dentro da ficção – ou do sonho – a própria equipe do filme. Vemos, ainda, as crianças a desenhar a história de Canuto. Novamente, a ficção mostra se construindo coletivamente, antes mobilizando a comunidade no pátio da aldeia e, agora, as crianças, seus desenhos a reatar a história e a infância, os traços como testemunho e imaginação. Como sugere essa sequência, a narrativa do filme parece se reger por esse duplo movimento: a sobrevivência das narrativas tradicionais (em testemunhos, em sonhos, em imagens) e sua transformação, da qual o cinema participa como espaço de invenção.

 

Da arte das armadilhas

 

E então, conduzidos por Álvaro, adentramos a mata: ali, mais uma vez, nos movemos em um ambiente sensível e sensório, no qual as nuances dos sons e das texturas ganham proeminência. Este é o mundo do pequeno caçador e suas armadilhas, as quais também aliam o pensamento concreto e sensível, cifrando, em certo sentido, a relação entre caçador e presa. Como nos ensina Alfred Gell (2001), armadilhas são formas de uma relação, elas “comunicam a noção de um nexo de intencionalidades entre os caçadores e as presas animais, mediante formas e mecanismos materiais”. Revendo as cenas do pequeno Canuto, a equipe do filme se espanta com a desenvoltura do caçador, sua astúcia e sua firmeza impiedosa ao capturar, matar e guardar suas presas. Junto à beleza dos pássaros capturados, há ali uma beleza do mundo construído pelo caçador, seu saber e seus artifícios. Uma beleza que assusta, afasta e que fascina, atrai. As pessoas assistem às cenas em uma TV, vemos uma tela branca sendo instalada na escola abandonada; uma janela enquadra a paisagem, a trilha sonora sobe e se sobressai. Se este é o domínio do caçador, este é também o domínio do cinema, ambos construídos sobre o artifício, mas um tipo de artifício que não prescinde da matéria sensível do mundo, de sua alteridade, de suas relações para se construir.

 

 

Continuamos a seguir Álvaro e vamos percebendo, em nuances da imagem, que, ali, as perspectivas variam. O trânsito de perspectivas que vemos no sonho ou na narrativa mitológica, encontra na construção fílmica seu abrigo. Da criança às árvores (que também parecem nos observar), das árvores aos pássaros, que não aparecem senão na banda sonora, destes para o grupo que, de fora, assiste à cena pela TV. A trilha sonora e a câmera mostram que aquele que caça pode ser a presa também: há um devir em cena – jepotá – que parece seguir a criança na tentativa de capturar seu destino. Essa parece ser a lógica das armadilhas. Aquele que armadilha é também, de modo sutil, armadilhado. Predador e presa estão, assim, enredados um ao outro, em uma posição que é relacional e variável. É assim que, nessa bela série de retratos de armadilhas que o filme nos oferece, o que se mostra é um mundo em relação: como uma construção instável, a armadilha cifra uma relação móvel e imprevisível (ainda que previamente calculada) entre predador e presa. Mobilizando os materiais do entorno (os gravetos, os galhos, os cipós, as cascas das árvores), ela é uma construção precária que busca conferir domínio provisório em um lugar arriscado porque povoado de agências. Álvaro domina a arte das armadilhas, porque brinca, e porque se emaranha com a mata como os bichos que ele caça. É assim que a brincadeira, no filme, vai se mostrando como sutil transformação, fuga para dentro da mata, onde ele devém bicho em seus gestos, movimentos e expressões. E quando, ao final da sequência do pequeno Canuto com suas armadilhas, o enquadramento se abre para revelar a equipe do filme, mais uma vez se trata menos de um gesto de reflexividade voltado à representação cinematográfica do que de revelar esse jogo de armadilhas: de Canuto em relação a suas presas; da mata em relação a Canuto (em seu devir bicho); do cinema em relação ao personagem; e, veremos adiante, de Canuto – sua energia desestabilizadora – em relação ao cinema.

 

 

Se Álvaro está desenvolto no papel de Canuto, Thihy Ramirez, que fará o personagem adulto, se mostra, na narrativa do filme, mais afeito aos jogos de videogame e aos filmes na TV. Ele precisará adentrar aquele mundo, agora provocado, não sem tensões e atritos, pelo cinema. Vemos Canuto construir uma casa próxima à mata: mostra-se mais e mais desconfiado, ciumento, irascível diante de sua mulher e das filhas. Em uma sequência perturbadora, Ariel Kuaray, o diretor tornado personagem do filme, se exaspera com o ator, que parece alhear-se e distanciar-se do seu papel. “Você tem que ser como uma onça, jaguareté! Você não está chegando da sua casa, de assistir à televisão. Você está com sede”. E ao demonstrar ao ator como ele deveria beber a água de um poço, é o diretor-personagem que faz as vezes da onça, assumindo os modos do bicho. Se essa é uma sequência emblemática é porque, nela, aquilo que nos parece, inicialmente, uma situação de “bastidor”, extradiegética, se torna parte da narrativa e da diegese. Mais uma vez, ali se sugere a força de atração da ficção em curso: aqueles que fariam o filme sobre a história de Canuto se vêem agora dentro dela, seus corpos e seus afetos lançados em uma cena instável e perturbadora.

 

Espaços liminares

 

Há, nesse momento do filme, três construções: a escola abandonada, sua presença alienígena (onde se abriga o cinema, atravessado, vazado pelo entorno); a casa de Canuto e sua família, semiconstruída, à beira da mata; a Opy, casa de reza, que vemos sendo reconstruída, como tentam também se restabelecer as pessoas capturadas pela força perturbadora da ficção. De um lado, a arquitetura estrangeira, que liga a aldeia ao mundo metropolitano, que se vê abandonada e reocupada pelo cinema. De outro, a casa que faz limiar com a mata, onde, mais e mais, se embrenha e se refugia Canuto. Estes são espaços liminares, nos quais as relações se arriscam a desequilibrar. A reconstrução da Opy reafirma a presença do avô, aquele que reivindica a meditação como prática de transformação e crescimento espiritual a partir dos ensinamentos de Nhanderu. Entre estes, há os espaços comuns e domésticos (os pátios, as cozinhas, a beira do fogo), onde a comunidade se debate em sua autoconstrução. Se a casa de reza é o lugar de elaboração espiritual e se a casa de Canuto faz vizinhança com a mata, outro lugar fundamental para a constituição do modo de vida e da cosmologia mbyá-guarani, a escola (assim como a arquitetura e o cinema) é um lugar de cruzamento: entre a história mbyá-guarani e a história metropolitana. Cruzamento que cabe à comunidade (e ao filme) elaborar, dando a ele diferentes formas.

 

  

Quando as fotografias do médico Alba Posse são manuseadas em cena, vemos, materializado nos arquivos, mais um momento desse atravessamento. Nas imagens, a ciência visita a aldeia, explicitando o delírio de um pensamento positivista, que deseja expandir seu domínio até a exumação do corpo. As fotografias lastreiam a narrativa e, junto aos eventos históricos, nelas se inscreve a ausência de Canuto. Elas cifram a aliança entre a ciência, o Estado e a propriedade privada: ficamos sabendo da distribuição de terras da província a 34 proprietários, entre eles Alba Posse, que, não à toa, nomeia uma cidade da região de Misiones, na Argentina. Sabemos também, por meio do testemunho do avô, sobre as torturas e assassinatos a indígenas pela ditadura militar. Por intermédio de Alba Posse, Dionísio vai ao presidente da Argentina à epoca, Alejandro Lanusse, para reivindicar os títulos da terra, a escola e documentos para os indígenas.

 

“Eu estou feliz de ter chegado até aqui. Mas eu estou vendo você ser tratado como uma divindade. Como se você fosse um segundo Deus, senhor Presidente. Como um segundo Deus, ou o próprio Deus. No passado, a gente também via vocês dessa maneira. Eles me perguntaram: ‘para que vocês querem terras se nem vão produzir?’ Eu falei: ‘porque os primeiros indígenas que foram vistos pelos espanhóis foram os Guarani. Quando eles chegaram, os indígenas Mbyá já estavam aqui.”

 

De dentro da Opy, Dionísio inicia então sua reza – as belas palavras, por meio das quais se fazem a luta política e a história Mbyá-Guarani. Na montagem, elas ecoam pelos planos que lampejam, descontínuos, em um espaço fortemente acústico. Também aqui, em meio ao curso da reza de Dionísio, cintila a imagem da onça.

Como se vê na cena seguinte, estas são também palavras de despedida (“Meus pés cortando o vento cruzam o umbral de sua morada”). Acompanhamos então o funeral do avô, e a morte (outro nome para o “tornar-se”) se explicita como aquilo que, afinal, ronda e move a narrativa: morte como transformação, o que transtorna as relações e também o que abre caminho para o crescimento espiritual. Como se, neste filme, duas perspectivas (nunca apenas duas, uma vez que elas se desdobram em muitas outras) se cruzassem, em disputa, mas também se avizinhando, na construção da história mbyá-guarani: Canuto e o jepotá, o risco da transformação do humano em animal; Dionísio e a meditação, a caminhada rumo a Terra sem Males, a transmutação do humano no divino. Entre um e outro, a história, atravessada e perturbada pelo contato com os juruá.

 

 

Um vento atravessa a tela do cinema, para levantá-la e dar a ver a paisagem em torno. O sopro da fumaça do petynguá não se assenta bem sobre a cabeça de Ariel, e é ele quem vai assumir agora a inquietude de Canuto, se afastando, deambulando, se arriscando e se embebedando. Junto a Ariel, a equipe do filme é, definitivamente, atraída para o interior da cena, artífices e personagens da ficção cinematográfica. Reiteramos o efeito desconcertante produzido pelo filme: mostrar a equipe, trazer para o interior da cena seu antecampo, não nos retira da ficção (não se trata aqui estritamente de um gesto reflexivo a desnudar o processo de construção da representação). Na verdade, a estratégia embaralha os planos diegético e extradiegético, ficcionalizando e tornando personagens aqueles estariam nos bastidores da cena, em uma vertiginosa mise-en-abyme. Entender, assim, a narrativa de Canuto, a narrativa mitológica do jepota, não se faz sem o risco de ser atraído para seu interior, tornando-se parte dela.

Canuto - o personagem agora assumido por Ariel - se encontra com a onça, e este se torna um encontro fatal. A estaca atravessa seu coração, como a fixar o corpo à terra. Sobre o plano fixo do corpo enterrado, ouvimos a voz de Ariel Kuaray a narrar mais um sonho em uma carta a Ernesto de Carvalho. De um sonho a outro, o filme se faz travessia pela ficção. Os filhos nascem, a escola é demolida, a Opy se incendeia. Thihy-Canuto torna-se cacique.

 

Você não vai poder ver

 

Ernesto - outro diretor tornado personagem - dirige o velho jipe azul e chega à aldeia, agora, como Alba Posse. Ele volta para entender “materialmente, fisicamente, concretamente, cientificamente” o que aconteceu ao corpo de Canuto. Que, por sua vez, Canuto retorne agora como cacique, esta é, no filme, outra inquietante reviravolta perspectivista. “Doutor”, ele diz, “as suas próprias palavras já contêm sua resposta. Nós, quando enterramos um corpo, não o incomodamos mais. E mesmo que eu te mostrasse, você não ia conseguir ver… você não vai poder ver”. Há, subentendidos na fala do cacique, o encontro e o confronto entre dois modos de ver: aquele que deseja entender material, física e cientificamente o que vê; que torna o que vê objeto de uma mirada do esclarecimento, e aquele que, digamos, atravessa o visível como metamorfose, e que, parte da metamorfose em curso, não pode conhecer senão por meio do corpo. Exumar o corpo do outro seria exumar o próprio corpo. No filme, Canuto, agora cacique, recusa que o corpo de Canuto-onça seja exumado, que a ciência avance sua mirada em direção àquilo que deve permanecer invisível.

 

 

Terminemos por ouvir os ecos daquela outra visita, do viajante ao onceiro que, no monólogo-diálogo de Guimarães Rosa, testemunha a transformação do homem em bicho, enquanto sustenta, a todo custo, a vigília. Ali também, no conto, é na linguagem, no texto tupinizado que vai-se desarticulando, que a metamorfose menos se representa do que se “presenta”, se presentifica (CAMPOS, 1962). A linguagem – novamente, o artifício – é, então, o lugar da metamorfose. Como observa Eduardo Viveiros de Castro (2008, p. 248), a linguagem vai ali “se oncisando, o que é indicado pela invasão progressiva de seu discurso por palavras, frases, interjeições em tupi-guarani, como se sua fala fosse se desencapando, desnudando suas raízes tupi; no final, ela vira um grunhido de onça – a raiz funde-se com o chão”. Assim como no conto de Guimarães Rosa – Meu tio o Iauaretê –, a literatura e a língua portuguesa são alteradas, por dentro, pelo tupi-guarani, aqui, o cinema teria sido, ele também, de certo modo, indigenizado e “oncizado”: enquanto historiciza a narrativa mitológica, ao abrigá-la em uma comunidade na fronteira entre o Brasil e a Argentina, o filme indaga, em contrapartida, a história pelo olhar do mito e do sonho, produzindo, no âmbito da narração, uma variação inquietante e vertiginosa de perspectivas. Em uma intrincada e compartilhada mise-en-scène (que em vários momentos se desdobra em mise-en-abyme), A transformação de Canuto sustenta a “verdade” do artifício no encontro entre duas ficções: aquela do jepota, a transformação do humano em onça, e aquela do cinema, que se cria por uma câmera (e uma montagem) sensível aos limiares nos quais um corpo devém outro.

Referências

BRASIL, André. “Tempo é o vento, vento é tempo”: montagem cósmica em Abá. In: Catálogo do 22o forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2018.

CAMPOS, Haroldo. A linguagem do Iauaretê. In: Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria crítica e literária. São Paulo: Perspectiva, 2006.

GELL, Alfred. A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas. Arte e Ensaio - Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA (UFRJ), Rio de Janeiro, 2001.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Uma boa política é aquela que multiplica os possíveis” (entrevista a Renato Sztutman e Stelio Marras). In: SZTUTMAN, Renato (Org.). Encontros (Eduardo Viveiros de Castro). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.