Nanook sobreviveu à história do cinema e continua encantando plateias até os dias de hoje, proporcionando um engajamento quase imediato do espectador que acompanha com interesse e curiosidade a vida pessoal e cultural de Nanook. O filme funda o gênero documentário e inspira o que veio a se tornar o cinema a partir dos anos 1920. Mas o que falar de novo sobre Nanook que já não tenha sido dito pelos críticos e realizadores de cinema de todo o mundo nestes 100 anos? Minha opção, portanto, é fazer uma leitura minimalista do filme, a partir de um fragmento, um sorriso, o riso, o rir dos Inuit e, em especial, de Nanook. Nanook surge sorrindo e gargalhando para a câmera, para Flaherty, para a audiência em inúmeras cenas do filme, e seu sorriso serve de parâmetro (se permanece ou não) em cada momento de corte na edição. Evoca, assim, a inclusão ou não de Flaherty no campo do filme, o que introduz, via o seu sorriso, o universo do antecampo no filme (BRASIL, 2013a), aspecto estrutural da narrativa cinematográfica moderna.
Robert Flaherty (1884-1951) nasceu em Michigan, Estados Unidos. Na adolescência, abandona os estudos para seguir seu pai, um engenheiro de minas, nas prospecções de ouro nos territórios do Ártico. Foi assim que se deu sua relação com os Inuit e sua ideia de realizar um filme sobre seu modo de vida. Com o advento de Nanook, Flaherty passou a ser um dos maiores expoentes do documentário moderno, contribuindo de forma significativa para a constituição da linguagem cinematográfica. Deixou-nos um legado de dez filmes, que abordam os mais variados povos e culturas (inuits, polinésios, indianos, irlandeses e americanos) a partir de um método de produzir imagens que relaciona a antropologia e o cinema, a etnografia e a narrativa cinematográfica: a pesquisa intensiva para realização de seus filmes durava em torno de dois anos de permanência nas sociedades que pretendia filmar.
É preciso entender o que significou Nanook em sua época para compreender sua real dimensão. Nanook está longe de ser um filme captado de forma amadora, realizado por um explorador do Ártico; foi, antes, gestado por mais de dez anos, por Flaherty e por sua esposa, Frances, nos seus mínimos detalhes: roteiros, notas, cenários elaborados por meio de uma convivência longa estabelecida entre Flaherty e os Inuit por mais de oito anos. O contrato de Nanook foi assinado em 1920 com os Irmãos Revillon (Revillon Frères), grandes comerciantes de peles e artigos luxuosos, com postos comerciais nos Estados Unidos, Canadá e Europa. O contrato de 15 páginas determina que Flaherty receba a quantia de 13.000 dólares (hoje equivalente a 150.000 dólares), que incluía equipamentos, viagens e logística, e, em troca, produza dois filmes: um sobre a empresa Revillon e seus entrepostos de troca no Canadá, e outro que aborde o modo de vida dos Inuit. Em 1922, Flaherty assina um contrato desvantajoso com os Irmãos Pathé para distribuição de seu filme. A Revillon e a Pathé apostaram comercialmente na inovadora proposta de Flaherty. Nanook teve uma estreia magistral em 1922 no Capitol Theater em Nova York, um cinema com 5.000 lugares. Foi elaborada uma apostila com mais de 30 páginas para a promoção do filme, incluindo seu marketing, divulgação e lançamento. O sucesso de Nanook foi estrondoso; as críticas dos jornais reverberavam o advento de uma nova fase no cinema. O público e os produtores de cinema estavam saturados dos melodramas, das estórias “água com açúcar” do cinema hollywoodiano, dos atores teatrais, da performance histriônica, do excesso de cartelas. Nanook era o demiurgo de uma nova era do cinema moderno, batendo em bilheteria os filmes de ficção de Hollywood de sua geração.
Os Irmãos Revillon, os produtores, e a Pathé filmes, distribuidora, lucraram muito com Nanook, o que fez Flaherty (1967, box 21) se arrepender de ter assinado contratos de forma apressada em que visava mais a glória artística do que os dividendos comerciais de sua obra. O sucesso de Nanook foi de tal ordem que Flaherty foi imediatamente procurado pelo dono da Paramount filmes, que lhe deu carta branca para rodar um ‘Nanook 2’, em qualquer parte do planeta com um orçamento quase ilimitado. Foi assim que Flaherty escolheu a ilha de Samoa no Pacífico, onde residiu por dois anos com sua família, rodando seu novo filme, Moana, lançado em 1926.
Paul Rotha (1973) escrevia em 1939 que Nanook, com sua atuação espontânea e seu comportamento natural, foi uma das principais influências do documentário moderno ao cinema, que passa, a partir de então, a adotar e a reconhecer esse tipo de atuação como a essência da qualidade cinematográfica. A calorosa recepção de Nanook na América, segundo Balikci (1989, p. 5), deveu-se ao fato de que, desde o final do século XIX, os Inuit (Esquimó) faziam parte dos currículos das escolas elementares, onde eram representados como seres adoráveis e felizes. Esse fato cria grande empatia dos jovens à cultura inuit, o que justifica que fosse escolhida pelo Ocidente como a primeira população “primitiva” a ser intensamente imagetificada pela fotografia e pelo cinema. Ainda no século XIX, Edward Curtis fotografa os Inuit em 1901, Thomas Edison os filmou na “Esquimaux Village” durante a Exposição Pan-Americana de Buffalo, em que os Inuit são retratados como alegres e sorridentes, mesmo sendo acentuadas suas escolhas culturais de viver em lugares inóspitos (MARCUS, 2006, p. 209).
Outras características que reforçam a boa recepção de Nanook se relacionam às representações de gênero sublinhadas pelo filme, que coincidem com os papéis de gênero no Ocidente nos anos 1920. Nanook surge como um caçador viril, matador de animais ferozes, destemido. Nyla, sua esposa, aparece em segundo plano, ao fundo do quadro, ocupada com os filhos e os afazeres domésticos (HUHNDORF, 2000, p. 137). Essa imagem de Nanook foi a responsável por torná-lo um símbolo na América, como atesta sua popularidade depois do lançamento do filme. Nanook passou a ser cantado em música pelas jovens e adolescentes americanas.
De todos os filmes de Flaherty, Nanook é, sem dúvida, o que despertou, e ainda hoje desperta, os mais vívidos debates. A recepção do filme é controversa, e a maioria das críticas procura desmascarar suas “grandes farsas”, o abuso e a manipulação da chamada realidade inuit por Flaherty. O nome de Nanook não era Nanook, mas Allakariallak. Nanook era uma abreviação de nanaaq, que significa urso na língua inuit. Nyla, a mulher de Nanook na película, era Maggie Nujarluktuk, casada com o filho de Nanook, mas, na verdade, ela foi amante de Flaherty, com quem teve um filho. Os Inuit não caçavam mais com lanças e arpões, e sim com armas de fogo, que foram interditadas por Flaherty durante as filmagens. Na época do filme, os Inuit usavam casacos de peles ocidentais, mas Flaherty insiste que retomem suas vestes tradicionais. As caçadas são falsas, a raposa e a foca estavam previamente mortas. O encontro de Nanook com o comerciante de peles no entreposto comercial foi construído para parecer o primeiro contato de Nanook com o gramofone, cena antológica, em que ele morde o disco de ferro. O gramofone pertencia a Flaherty, que, durante toda a sua estada, ouvia óperas com as quais Nanook e os Inuit estavam bastante familiarizados. E, por fim, Flaherty (1967, box 22) é desmascarado quando mente sobre a morte de Nanook, atribuída à fome nos desertos gelados do Ártico quando não consegue retornar de uma caçada. A prova desse fato encontra-se em uma carta de Bob Stewart, o comerciante de peles que aparece dando óleo de rícino para o filho de Nanook na sequência do gramofone. Bob Stewart escreve para Flaherty em 1923, dando notícias de que Nanook caiu gravemente enfermo, provavelmente tuberculose, vindo a falecer muito magro e sem forças. Não morre, portanto, gloriosamente de fome numa caçada ao urso-polar, mas de doença contraída em seus contatos frequentes com os brancos nos entrepostos comerciais do Ártico.
Todas as críticas formuladas a Nanook que denunciavam sua irrealidade soavam como truísmo para Flaherty, uma vez que sempre reiterou que habitava o “planeta chamado cinema”. Ele mesmo escreve, pela primeira vez em 1922, sobre como filmou Nanook, revelando suas soluções, seus truques e a construção dos personagens.
Flaherty (1967, box 22) se defendia, também, das críticas do excesso de ocidentalismo nas representações sobre os povos que filmava ao retratar suas culturas como intocáveis e eternas: “Não vou fazer filmes sobre o que o homem branco fez dos povos primitivos. Eu não estou interessado na decadência dessas pessoas sob o domínio do homem branco. O que eu quero mostrar é a antiga majestade e caráter dessas pessoas, enquanto ainda é possível – antes que o homem branco tenha destruído não apenas seu caráter, mas também seu povo. Eles estão desaparecendo”.
Piault (2000, p. 74-77) acentua que foi essa relação cinemática-social que Flaherty manteve com os Inuit, sobretudo através do feedback, que deu a Nanook força cinematográfica e sentido etnográfico, afastando-o de uma simplista percepção etnocêntrica e de um excessivo “ocidentalismo”.
A relação de Flaherty com Nanook engendra a episteme do filme: cada vez que Nanook sorri para Flaherty/câmera, ele sorri para o espectador, para quem é o construtor de um ponto de vista, de uma narrativa sobre o filme que se situa nesse plano sensorial.
O sorriso de Nanook o presentifica como Nanook, dá existência à câmera, a Flaherty e, por consequência, aos espectadores. Visualidade de uma relação que se realiza fora do campo, mas que constitui o campo visual do filme. Nessa condição, o sorriso de Nanook ganha estatuto de mediação, corte, afirmação, ambivalência, fenômenos que encerram, por assim dizer, o que constitui a essência de uma relação social.
Stern e Stevenson (2006, p. 162), especialistas em culturas do Ártico, nos dizem que, embora o sorriso tenha sido estereotipado no modo de representar os Inuit, ele é, ao mesmo tempo, emblemático como gesto definidor da cultura Inuit. Os sorrisos organizam as relações do dia a dia e os modos de se relacionar com o outro. É de fato surpreendente a recorrência de os Inuit surgirem sorrindo nas imagens filmadas e, sobretudo, nas fotográficas desde o final do século XIX até os dias de hoje.
O sorriso de Nanook, portanto, conforma uma relação entre Nanook e Flaherty, e essa recepção sensorial de seu gesto pela plateia aponta para os problemas evocados pelo documentário moderno: realidade, ficção, o autêntico, o inautêntico, imagem, imaginação. Todos esses temas cabem no sorriso de Nanook. A insistência de seu sorriso evidencia sua própria percepção de que Nanook é ator e que atua como personagem de Flaherty.
O sorriso de Nanook estaria situado no plano da própria imagem, gerador de ambiguidade, ambivalência. O sorrir, enquadrado em close-ups, amplifica sua sensorialidade receptiva, aproximando, subjetivamente, personagem e espectador.
Além das diversas, complexas e controversas interpretações dos sorrisos, risos e gargalhadas que Nanook nos apresenta em imagens, o fato que sobressai é que os Inuit produziram uma poderosa reflexão cultural sobre o rir, o sorrir, produzindo uma copiosa mitologia sobre o tema. Destaca-se que o riso inuit é um modo de construção da socialidade em que o riso tem papel importante na relação com a alteridade.
Os mitos inuit replicam o plano da vida social a partir do conceito de inumariit, descrito por Stairs (1992) como a essência da identidade inuit. Inumariit faz coincidir a “imagem de si mesmo” com a “imagem do mundo” e é expressado no plano do comportamento social, sobretudo nas relações com o outro. Uma das características de inumariit se refere ao englobamento de múltiplas diferenças, que inclui a construção das relações com outros seres do mundo e os brancos, relações em cuja construção o sorriso desempenha papel fundamental.
Nanook, sabedor da importância capital do sorriso na construção das relações apropriadas com o outro, evidencia o que significa a identidade inumariit. Literalmente, fez uma fusão da imagem de si mesmo e da imagem de seu mundo, coincidindo assim com a própria intenção de Flaherty, que queria criar com seu filme os laços indissociáveis entre um personagem e uma cultura. O que medeia e constrói essa relação é o próprio sorriso de Nanook, força motriz que arma e estrutura o filme, uma vez que centra na imagem e fora dela a relação Flaherty/Nanook.
Referências
BALIKCI, Asen. Anthropology, film and the Arctic peoples. Anthropology Today, 5/2, p. 4-10, 1989.
BRASIL, André. Formas do antecampo: performatividade no documentário brasileiro contemporâneo. Revista Famecos, 20/3, p. 578-602, 2013a.
FLAHERTY, Robert. How I filmed Nanook of the north. World's Work, p. 632-640, 1922.
HUHNDORF, Shari. Nanook and his contemporaries: imagining Eskimos in American culture, 1897-1922. Critical Inquiry, 27/1, p. 122-148, 2000.
MARCUS, Alan. Nanook of the north as primal drama. Visual Anthropology, 19, p. 201-222, 2006.
PIAULT, Marc. Anthropologie et cinéma. Passage à l’image, passage par l’image. Paris: Nathan, 2000.
ROTHA, Paul. Robert J. Flaherty: a biography. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1983.
STERN, Pamela; Stevenson, Lisa. Critical Inuit studies. An anthology of contemporary arctic ethnography. Nebraska: University of Nebraska Press, 2006.