“O tempo bom é o tempo que eu vivo”, responde Grande Otelo numa entrevista à TV Mulher, em 1980, em cena recuperada pelo filme Não vim no mundo pra ser pedra (2022), de Fabio Rodrigues Filho. O ator continua, e reforça que este, o tempo presente, é “o tempo que todos deveriam viver. O tempo presente é um tempo de esperança”, Otelo conclui.
O curta parece estender e eternizar essa esperança que o Grande menciona, presentificando-a no momento atual, e o faz recuperando cenas de filmes protagonizados pelo ator, entrevistas que ele deu ao longo de sua carreira e trechos do Macunaíma de Mário de Andrade, numa montagem que articula o arquivo-imagem e o arquivo-palavra para homenagear esse “monumento que é gente, sensível, humano e cheio de ternura”, como escreveu dona Ruth de Souza em 1987.
Não é novidade e nem recente a discussão que concilia cinema e eternidade. A imagem gravada, o registro, é testemunho de um tempo, de uma cultura, da história de um momento passado. Quase sempre, tal registro costuma sugerir mais do que a própria intenção de quem o gravou, e por isso diz muito tanto sobre o período em que foi filmado quanto sobre o instante em que tal imagem encontra o espectador. Há sempre algo que escapa, no final das contas – proposta já trabalhada por Rodrigues Filho em seu curta anterior, Tudo o que é apertado rasga (2019). Ora, o “rasgo” nada mais é do que o presente que sobrevive por meio da imagem, o arquivo que permite o acesso a algo que, talvez, a observação material não consegue decupar em tempo real.
Situação semelhante toma conta de Mutirão: O Filme (2022), de Lincoln Péricles – ainda que guardadas as devidas proporções. No curta, uma criança é responsável por mediar a nossa relação, enquanto espectadores, com os arquivos que o filme monta: fotografias que compõem o acervo da Associação Povo Em Ação, grupo responsável pela ocupação e construção do Cohab Adventista, Capão Redondo, São Paulo. De cara somos apresentados a Maria Eduarda Isaú, principal narradora do filme, inicialmente registrada enquanto ela mesma dá cabo das próprias obras no que parece ser o jogo Minecraft. É ela quem nos conduz às histórias dessa comunidade, preservadas nas imagens mostradas ao longo do curta. Atualiza o tempo presente das memórias passadas por meio de uma narração em suma descritiva, opinativa até, que está mais preocupada em preservar sensações e situar um espírito de coletividade do que em necessariamente reconstituir uma história linear com fatos, informações e contexto. O contexto é a sua voz de menina, que olha para aquelas que poderiam ser sua tia e avó, e reconhece a luta empreendida para a conquista dos direitos de uma quebrada.
De São Paulo a Cabo Frio, os arquivos também conduzem às histórias de outra luta. Por meio de entrevistas, arquivos pessoais das personagens e recortes de televisão, Sou Point 44, amor, um arco-íris multicor (2022), de Márcio Paixão, apresenta a trajetória de David dos Santos Araújo, pioneiro no movimento LGBTQIA+ na cidade. Num momento em que as pautas e vivências queer nem sequer chegavam a ser uma questão para a região – quando não rechaçadas com violência –, David construiu um bar e fundou uma escola de samba onde pessoas de gênero e orientação dissidentes pudessem se expressar, se reunir, se organizar e celebrar suas próprias existências.
Tanto David quanto o Point 44, bar fundado por ele, são reconstituídos no filme de Paixão. Longe da observação fria e pouco empática ao movimento, que caracteriza inclusive algumas das imagens de arquivo utilizadas pelo diretor, o tom adotado no filme é de reverência. Não apenas para honrar e valorizar os que vieram antes e abriram caminhos, mas para presentificar suas atuações na contemporaneidade e incidir, politicamente, sobre as discussões que permeiam o campo hoje.
Por isso é curioso a ponte que pode ser feita entre Sou Point 44, amor, um arco-íris multicor e Procura-se bixas pretas (2022), filme de Vinícius Eliziário que também compõe a sessão. Se, no documentário de Paixão, é traçada a trajetória de alguém que lutou para que, hoje, pessoas queer pudessem existir e experimentar o mundo com mais desejo e liberdade, o curta de Eliziário abraça os sentimentos, contradições, aflições e anseios dessas pessoas. Tudo isso com um aparato relativamente simples, ainda que não simplório. Numa estratégia que muito me lembra o Jogo de Cena (2007) de Eduardo Coutinho, bixas pretas são filmadas enquanto compartilham o seu testemunho. Não importa a veracidade das histórias contadas e nem interessa a (falta de) identificação das personagens com os atores e atrizes do filme. Importa o relato, o contar, essa relação íntima que é estabelecida entre a corpa que fala e o espectador que escuta, se admira, se vislumbra nas histórias contadas. Aqui, o registro do testemunho também se transforma em arquivo, em arquivo que burla as noções do tempo e do espaço para transmitir, sobretudo, uma experiência de vida.
“Falar de Otelo é falar de mim”, narra Rodrigues Filho em determinado momento de Não vim no mundo pra ser pedra. E o cinema, essa experiência na qual afetividade e alteridade caminham quase que lado a lado, acaba por confirmar a beleza dessa relação que é mediada entre quem filma, quem é filmado e quem assiste. Na qual o tempo se embaralha, as narrativas convergem e as experiências se multiplicam – observar o outro, observar a si.
Currículo
Gabriel Araújo
é jornalista, crítico e curador de cinema. Cofundador da INDETERMINAÇÕES, plataforma de crítica e cinema negro brasileiro, e do Cineclube Mocambo. Integra ainda os coletivos Zanza, de crítica, e Lena Santos, de jornalistas negras e negros de Minas Gerais.