Amontoados, convictos e eufóricos, entoando palavras de ordem contra José Roberto Arruda, portando como arma e escudo um caixão vazio destinado ao sepultamento simbólico do então governo do Distrito Federal, um grupo de pessoas força a porta de entrada da câmara legislativa, em protesto pelo impedimento do governador, sobre quem pesava na ocasião denúncias de corrupção. A contenção dos seguranças, que separa a multidão da instituição, vai cedendo, e a tensão crescente deságua em uma onda de gente que invade e ocupa “a casa do povo”. Através de poucos e longos planos, acompanhamos a ocupação pela perspectiva de quem integra o bloco de manifestantes. Atravessada pelos corpos em disputa, a câmera avança com/por/como eles. A “ação direta”, que está em seu título, compõe, assim, a abertura de Ressurgentes, um filme de ação direta (Dácia Ibiapina, 2014), explicitando e fazendo vibrar a matéria que o conforma.
Fora Arruda e máfia é um dos movimentos sociais autônomos do Distrito Federal cuja trajetória Dácia Ibiapina acompanha em Ressurgentes, um filme de ação direta. Além das mobilizações que culminaram com a prisão e o impedimento de José Roberto Arruda, compõem o filme O Santuário não se move, movimento contra a implantação do bairro Noroeste no Plano Piloto de Brasília em um território indígena, e os atos do Movimento Passe Livre do Distrito Federal, em defesa de transporte público gratuito e de qualidade. Ao retomar as ações desses movimentos sociais, Dácia conduz uma exposição das novas maneiras de organização e disputa política que surgiram no Brasil nos anos 2000 e culminaram nas chamadas jornadas de junho, conjunto volumoso, potente e desconcertante de manifestações que se espalharam pelo país em 2013 e cujo impacto continua a ressoar, sem que ainda se vislumbre completamente sua dimensão na política brasileira. O filme torna visível, desse modo, uma série de confrontos políticos para os quais a ocupação dos territórios e espaços públicos tem lugar central, como tática de acirramento do conflito entre projetos de cidade e de mundo. Mas é a maneira como a prática cinematográfica/audiovisual permeia essas ocupações de modo intrínseco e constitutivo que produz a matéria que dá vida ao filme: as ações diretas filmadas. Por elas, explicita-se o domínio de disputa pela imagem – e pelo imaginário – que é extensivo ao conflito territorial, espacial, de onde decorre o gesto de resistência ensejado por Ressurgentes. E é justamente a força dessas ações filmadas enquanto elementos constitutivos dos atos dos movimentos sociais contemporâneos que desafia a montagem do filme. O que pode a montagem, e, por ela, o cinema, diante da ação das imagens, ou das imagens-ação, ou ainda do desejo de ação das imagens?
A montagem em Ressurgentes opera para relacionar o conflito dos corpos nos espaços com a reconstituição de um pensamento de onde se projetam e para onde se prolongam as disputas materiais e simbólicas em jogo. No equilíbrio delicado entre pensamento e ação, a montagem trabalha para evitar a cisão (que seria desastrada) entre essas duas dimensões e as temporalidades que nelas estão implicadas – o presente do engajamento e o passado da reconstituição da recente história. A ação dos corpos encarna os mundos desejáveis que as falas elaboram, mas a elaboração do pensamento e do imaginário de luta acontece nos dois tempos, o tempo todo – o mais evidente sinal dessa passagem se dá pelos próprios corpos das testemunhas que vemos não apenas em clássicos planos de entrevista, mas em ação nas imagens das ocupações e manifestações. Menos do que explicar, controlar e apaziguar as imagens, as falas são mobilizadas pelos corpos em conflito e lançadas por eles de volta à abertura vibrante dos acontecimentos. É desse modo que o filme de Dácia Ibiapina enfrenta também a noção de instrumentalização que conduziu razoável parte da crítica a desconfiar e expurgar a militância do cinema. Para citar um exemplo fundador, em A Rampa, Serge Daney tece uma forte crítica ao modo como cinema e militância se relacionam, que diz respeito ao que ele chama de “fardo do cinema militante”, que seria “ver no produto artístico não mais do que um produto neutro, transmissor sem potencialidade da popularização de ideias elaboradas em outro lugar” (DANEY, 2007, p. 72). Nos termos de Daney, a “eterna pobreza do cinema militante” seria sua concepção instrumentalista na qual o cinema apresentasse como uma “máquina de tradução” daquilo que se manifesta fora dele, na luta. O que se nota com vigor em Ressurgentes é a dissolução das fronteiras espaço-temporais entre a elaboração de um discurso militante e a prática cinematográfica que coloca em crise a ideia de instrumentalização do cinema pelas lutas políticas, redimensionando o lugar da militância nas formas cinematográficas.
Isto porque, ao encarar o desafio de montar um potente conjunto de imagens-ação, Dácia Ibiapina e Guile Martins (montador), além de conjugarem a vibração das ações à sua revisão discursiva, encontram modos de transcendência, projetando ou antevendo um futuro para as disputas em cena. É o que se pode notar na sequência final no Santuário dos Pajés, quando o grupo de jovens e líderes indígenas resistem ao cerco e destruição do parque pelo empreendimento imobiliário de “alto padrão”, em um movimento aparentemente inesgotável. Ao sobrepor o canto dos Tapuya Fulni-ô, comunidade indígena ocupante do local, às imagens da escavação de um imenso canteiro de obras sobre terreno desmatado, não apenas dois projetos de cidade e de mundo sobrepõem-se pela disjunção entre som e imagem mas a continuidade do confronto é também sugerida, como um presságio ou ameaça. A montagem opera, assim, pela lógica da resistência. E é da conjugação entre a restituição das ações engajadas no presente e a antevisão de seu prolongamento no futuro de onde se desprende a impressionante força mobilizadora de Ressurgentes; de onde se libera a energia para a luta que o filme, finalmente, faz ressurgir – nos corpos de seus espectadores. Por tudo isso, o filme de Dácia Ibiapina pode ser visto como uma resposta à pergunta de Serge Daney: “Como restituir àqueles que lutam – ao mesmo tempo que o sentido estratégico de seu combate – o ardor, a invenção e o prazer que também há em lutar?’” (DANEY, 2007, p. 75).
Currículo
Amaranta Cesar
Professora e pesquisadora de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia onde coordena o Grupo de Estudos e Práticas em Documentário e o CachoeiraDoc - Festival de Documentários de Cachoeira (2010-2021).
Como citar este artigo
Amaranta Cesar. Ocupar, resistir, ressurgir. In:forumdoc.bh.2015: 19º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2015. p. 107-110 (Impresso); p. 109-112 (On-line).
Referências
DANEY, Serge. A rampa: Cahiers du Cinéma 1970-1982. Tradução e posfácio Marcelo Rezende. Cosac Naif: São Paulo, 2007.