Para induzir alguma compreensão da intenção que tive de reunir cronologicamente o conjunto de filmes da mostra Olhar: um ato de resistência, e as motivações de propor um encontro de realizadores indígenas para uma reflexão sobre o uso e incorporação da mídia audiovisual ao próprio cotidiano, preciso regredir um pouco no tempo e retornar descrevendo o percurso vivido de antigas intenções.
Na década de 1970, quando os primeiros aparelhos de gravação e reprodução de vídeo tornaram-se portáteis e acessíveis ao consumidor,era o tempo de ditaduras militarmente impostas a diversos países da América Latina, tempo de execução de uma política generalizada de desconsideração total dos direitos humanos, de marginalização cultural e de isolamento social das comunidades indígenas.
A metodologia histórica dos procedimentos de aniquilação ou assimilação, revigorados então por planos continentais de alianças para o progresso alheio, a que vinham sendo submetidos os povos indígenas no continente, aprimorou os procedimentos sistêmicos da violência física e econômica. O corporativismo predatório do invasor, a serviço dos interesses do capital em terras indígenas e o terrorismo midiático que alarmava com muitos Vietnãs para justificar a agressão armada e escancarada àqueles povos, provocava nas comunidades um renovado sentimento de unidade continental de resistência histórica ante um inimigo comum. Foi nesse contexto que comecei a trabalhar com vídeo.
Tinha feito anteriormente um único filme numa aldeia Canela no hoje Estado de Tocantins, cuja finalidade era permitir a exibição da palavra e da imagem da própria comunidade expondo e mostrando diretamente aos “presidentes” em Brasília os limites da sua terra.
Naquele período de proibição de reuniões e manifestações, o aparecimento do vídeo portátil me chamou a atenção pela possibilidade de tornar-se um instrumento autônomo de resistência e comunicação interna entre grupos e povos isolados por fronteiras, cercas, leis, governos e línguas. Funções que pontualmente algumas rádios comunitárias vinham exercendo.
No Brasil, nos anos seguintes, a portabilidade das novas tecnologias audiovisuais foi rapidamente incorporada por um grande número de comunidades através de oficinas, cursos universitários e pontos de cultura. Torna-se instrumento de visualização de identidade, resistência política, narrativa mítica e ficcional e de inserção no imaginário mundial. Hoje esse amplo olhar crítico continental se organiza e se conecta nas redes sociais apesar da dependência tecnológica adquirida.
Nos anos 70, com uma bolsa para pesquisa de linguagem como justificativa para a viagem, tive a oportunidade de conhecer algumas experiências de comunicação audiovisual já acontecendo entre diferentes grupos. No Canadá isso não era novidade, há anos oficinas cinematográficas, utilizando técnicas de som direto e câmeras para filme 16mm, já vinham sendo produzidas inclusive pelo National Film Board, com programas tanto para integração social como para o ativismo da responsabilidade política das comunidades na resistência ao Estado. Nos Estados Unidos havia cursos nas escolas indígenas de sobrevivência.
Para mim, novato nas duas realidades, entusiasmado com a dimensão da visão humana da resistência indígena continental, e com a tecnologia que me libertava de laboratórios, moviolas e projetores, senti-me livre e andarilho num tempo de prisões. Também foi um tempo de ainda muita ingenuidade ante as estratégias de longo prazo da nova tecnologia. Hoje penso nos “telefones” celulares, que nos monitoram e que compramos crentes do sentimento de liberdade e conexão com que nos são vendidos, associando-os ao conceito de drones em território alheio, que capturados, mudando de mãos podem mudar o alvo.
Minha intenção na época, já que tinha a possibilidade de viajar por alguns países do continente americano, não era pouco pretensiosa, era de percorrê-los levando de uma comunidade indígena a outra os depoimentos e imagens que, de diferentes experiências de conflito e confronto, pudessem de alguma forma contribuir para a percepção da história de violação física, cultural e territorial em comum, e ao conhecimento das diferentes formas de resistência ante o mesmo inimigo histórico, arrogante predador da terra e das concepções de vida e mundo.
Inicialmente senti as dificuldades criadas pela diversidade de línguas, pela minha cara pálida, pelo equipamento intruso e pelas recusas e riscos de identificação de algumas pessoas interessadas em falar para a câmera, mas a surpreendente e progressiva confiança com que era recebido a cada novo encontro reanimava minhas intenções. Foi uma viagem passo a passo, de pessoa a pessoa, sucessivamente abrindo-me o acesso ao encontro seguinte. Fora Dom Tomás Balduino quem me introduziu ao primeiro nome de um percurso sempre imprevisto. Naquele momento os anos libertários da década de 1960 já tinham levado a repressão a planejar os procedimentos necessários para impedir a possibilidade de uma nova propagação de ideias de refundação social. Houve sempre algo de clandestinidade nos cuidados necessários à minha credibilidade em cada encontro
Interrompi meu projeto em 1979 porque o dinheiro da bolsa acabara e já estava claro que a imagem dessa resistência só poderia ser a de um mundo visto a partir da própria perspectiva cultural e temporal do olhar das pessoas das comunidades. O que de fato já vinha acontecendo. Eu ficaria na aparência do discurso. Naquele período, principalmente nos EUA, como no Canadá, México, Peru e Bolívia, já havia ensino e produção indígena independente e atuante, tanto no olhar como na intenção.
As fitas que gravei durante a viagem – por não haver mais equipamento para reproduzi-las, nem continuidade do projeto ou intenção de qualquer uso público das gravações – ficaram guardadas até 2014, quando, temendo sua deterioração física fatal e a irreversível devolução das imagens à impermanência de uma memória pessoal, como que à ficção da própria história, graças à abrangência de um edital do programa Rumos do Itaú Cultural daquele ano, após algumas tentativas anteriores frustradas, tive finalmente recursos para enviar os velhos originais para restauro e digitalização para um laboratório especializado em NY.
E foi nessa oportunidade, numa conversa no Instituto Cultural, onde por falar demais comentando essa história toda – e não conter-me ante a possibilidade aberta com a pergunta “você gostaria de dar continuidade ao projeto?” – que acabei emocionalmente assumindo a responsabilidade de organizar uma mostra de filmes com temática e realizadores indígenas. Num primeiro momento, ouvindo aquela pergunta, de dar continuidade ao projeto, sabia que aquela não era a questão, porque a tecnologia audiovisual já se tornara acessível a todos. Hoje as comunidades indígenas e seus realizadores participam ativamente na sociedade da imagem, assim como, na resistência, apropriam-se de câmeras e celulares para o confronto com ela. Seria a oportunidade de ver e refletir sobre a incorporação da tecnologia à resistência física e cultural de um modo de vida ante a constatação de fim do próprio mundo.
Aquele surto momentâneo de autoconfiança acabou quando fui à internet para entender minha pretensão. A primeira constatação foi verificar a impossibilidade de dar conta de abranger e assistir a miríade de filmes da produção audiovisual indígena atual, não só porque já se produziam mais fluxos de imagens ativas que narrativas editadas ou reflexões das próprias atividades, mas principalmente porque ao longo do tempo, tanto o olhar da cultura que filma como a que vemos na imagem filmada, comprovavam a impermanência de ambas. No conjunto percebiam-se as mudanças do olhar e da condição de estar no mundo. Observador e observado, mutantes constantes.
Como nunca tinha pensado antes numa mostra, terminada agora a seleção, parece-me ter pretendido montar mentalmente como que um único longo filme composto de filmes ao longo do tempo.
De um lado vejo essa seleção como oportunidade de reflexão de questões que têm acompanhado minha própria produção, essencialmente quanto à progressiva atenção ao processo subjetivo de representação do imaginário na linguagem audiovisual, que é comum a todo ser humano, que me relaciona objetivamente e subjetivamente ao mundo, que o altera e me altera, e a compreensão da responsabilidade das motivações pelas consequências da produção de imagens.
De outro, como uma seleção de filmes temporal e politicamente explícita da resistência indígena continental, da identidade do homem com a terra, corpo único de vida, passando de objeto da narrativa alheia a sujeito da história universal. Uma seleção de obras que ao longo de uma linha do tempo cinematográfico pudesse motivar no espectador um sentimento vital e participativo de humanidade em comum lutando por sua própria sobrevivência.
A mostra é limitada em número de filmes, mas ampla na abrangência porque a produção audiovisual indígena continental é tamanha que, diante da excelência e diversidade dos filmes que a compõem, nem as restrições de tempo e orçamento interferiram. O que foi determinante foi a afetiva sintonia e apaixonada sensibilidade de uma curadoria coletiva excepcional.
Devo isso a Junia Torres, Carla Italiano, Carol Canguçu, Divino Tserewahu Tsereptse, André Brasil, César Guimarães, Sérgio Muniz, Sergio Domingues, Yanet Aguillera, Charles Bicalho, Bruno de André, Cristina de Branco, Miguel Dores, Elizabeth Weatherford, Vincent Carelli, Paolo Buccieri, Caio Lazaneo, e a todos que contribuíram enviando sugestões e colaborando na escolha final dos filmes.
Currículo
Andrea Tonacci
Cineasta nascido na Itália em 1944 e radicado no Brasil desde 1953. Dirigiu Blá Blá Blá (1968), Bang Bang (1970), Os araras (1980-81), Serras da Desordem (2006), Já Visto Jamais Visto (2014), dentre outros. Importante colaborador do forumdoc.bh, assina curadoria da Mostra Olhar: um ato de resistência realizada em parceria com a Associação Filmes de Quintal e concomitantemente ao festival em 2015.
Como citar este artigo
Tonacci, Andrea. In: Mostra Olhar: Um ato de resistência. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2015. p. 07-11 [Impresso]; p. 09-13 [On-line].