Pacificar os brancos e retomar as imagens

A estabilização de um contato permanente dos grupos yanomami com não indígenas na região do rio Marauiá, na parte oeste da Terra Indígena Yanomami no Amazonas, próximo ao munícipio Santa Isabel do Rio Negro, se deu em meados da década de 1960, com a chegada dos missionários salesianos. Ao contrário de uma abertura para o Outro, como é característica das cosmovisões e filosofias indígenas, a chegada destes forasteiros acontece em seu exato inverso, buscando a destruição dos territórios, coletividades e cosmologias indígenas, ou seja, do englobamento das diferenças. Diversas foram, e têm sido, as estratégias empreendidas pelos colonizadores e seus agentes na guerra colonial contra os povos indígenas no Brasil, mas também diversas têm sido as estratégias indígenas para contraefetuar esta guerra. Na região do rio Marauiá não foi diferente, os brancos chegaram trazendo a construção da missão salesiana, da escola, das letais e desconhecidas doenças e promoveram mais acesso aos cobiçados, mas também perigosos, bens industrializados. Certos grupos yanomami do Marauiá escolheram como estratégia se aproximar dos missionários e assim usufruir do que lhes era ofertado: as trocas materiais, as aulas e o atendimento à saúde, experienciando, assim, uma maior proximidade com as forças de colonização por meio da evangelização, com impactos sentidos até os dias de hoje. Por outro lado, entendendo os perigos que haviam por trás daquela aparente generosidade dos padres, outros grupos se recusaram a manter uma relação próxima com os missionários e se mantiveram em isolamento no interior da floresta, realizando eventuais expedições até a missão para trocar produtos da floresta pelos materiais que o padre trazia da cidade, além de buscarem atendimento médico para as novas doenças. A partir destes “encontros”, no qual o conflito já estava pressuposto, os Yanomami começam também a buscar transformá-los em algo positivo, agenciando estratégias fundamentadas em sua cosmologia para pacificar os brancos e amansar aquelas coisas que eles estavam trazendo. Nesse sentido, os Yanomami passam a se apropriar das tecnologias e ferramentas, conceituais ou materiais, dos brancos para agir contraefetuando, ou diminuindo, a violência do contato e da assimilação, transformando aqueles perigosos objetos em meios para subverter a dominação do colonizador. Ou seja, para garantirem a sua própria sobrevivência. Ao passo que os novos forasteiros traziam e apresentavam suas tecnologias aos grupos com quem mantinham contato, servindo aos seus interesses de civilizar e evangelizar, os Yanomami iam também produzindo significado e assimilando-as em seus próprios termos, em um constante processo de reflexão a partir de suas estratégias cosmopolíticas. Com a produção de suas imagens não foi diferente, como rememora Adriano Pukimapiwëteri Yanomami, liderança política da região do rio Marauiá, quando conheceu pela primeira vez uma equipe de filmagem: 

Nós chegamos no [xapono] Pukima Centro, depois voltamos para a beira quando a roça ficou madura e nós comemos. Foi nesse tempo também que chegou o padre levando os italianos, esses que são de longe e que não entendem nada. O padre levava quatro botes com um monte de italianos para filmar os Yanomami. Esses italianos, eu não sei, acho que estavam ajudando a apoiar a missão Marauiá para funcionar a escola. Chegaram muitos, quatro botes cheios de italianos. Quando saíram dos botes, os italianos já estavam filmando. Quando a gente sentou com o padre Carlos, meu pai e os outros falaram: ‘Não, não, não, não. Não, não. Primeiro precisam da autorização da liderança. Vocês pensam que não tem liderança aqui? Não é assim. Vocês pensam que a liderança é esse padre que está levando vocês? Esse padre não é a liderança daqui não. Primeiro tem que perguntar para a liderança, se ela deixar, pode filmar. Ela que conversa com a comunidade e pergunta se a comunidade quer. Escondido não pode, a comunidade não sabe o que é esse tipo de material, o que o napë está fazendo aqui’. O padre traduziu, porque os italianos não entendiam quando eles falavam. ‘Ahhh, ahhh... Ehhhh, ehhh ehhh, eh’, os italianos não falavam direito. ‘Adriano, você pode saber por que que nossos italianos estão filmando, você pode saber também. É um filme que nós estamos fazendo dos Yanomami. Nós somos italianos e estamos ajudando a missão de vocês para funcionar a escola. Nós queremos ajudar cada região, Roraima, aqui no Amazonas, queremos apoiar todas as missões que tem aqui no território Yanomami’, o padre traduziu, porque eu não entendia também quando os italianos falavam na língua deles. ‘Por que que tem que mostrar no filme, por que que vocês vêm fazer filme se vocês já estão vendo, já estão sabendo que têm Yanomami para apoiar?’, eu falei. Falei com meu pai e ele perguntou para o xapono. ‘Não, não, não. Não, não, não’, não deixaram. ‘Não, não, não. Quando eu morrer, será que vai morrer minha foto também? Eu acho que não. Eu não vou deixar’, falaram.

Adriano se refere à chegada da equipe da Escola Salesiana de Aplicações Fotográficas (S.A.F - Scuola di Applicazione Fotografiche) de Turim em sua comunidade para a gravação do documentário Meu caminho é o rio, realizado para a celebração do Centenário das Missões Salesianas em Turim, na Itália, em 1975, quando o padre Antônio José Góes, fundador das duas missões salesianas entre os Yanomami no Amazonas, seria homenageado. Assim como praticavam entre as crianças e jovens yanomami das regiões onde trabalhavam, sequestrando-as de suas comunidades para serem levadas aos internatos em outras regiões do rio Negro, a invasão da equipe de filmagem salesiana produziu um escalonamento desta violência, sequestrando também as imagens dos Yanomami. A noção de imagem, uhutipë, em yanomamɨ, é um conceito central e fundamental da cosmovisão yanomami, como nos conta Davi Kopenawa: 

Todos os seres da floresta possuem uma imagem utupë. São essas imagens que os xamãs chamam e fazem descer. São elas que, ao se tornarem xapiri, executam suas danças de apresentação para eles. São elas o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos animais que caçamos. São essas imagens os animais de caça de verdade, não aqueles que comemos! São como fotografias destes. Mas só os xamãs podem vê̂-las. A gente comum não consegue. Em suas palavras, os brancos diriam que os animais da floresta são seus representantes.¹

Todo ente possui uma imagem, e essa imagem é o principal e primordial componente de todos os seres de floresta e da pessoa yanomami, que permanece contida no invólucro do corpo físico, da pele (siki). É a imagem de uma pessoa que a faz estar viva em seu corpo, e, assim, da mesma maneira, quando uma pessoa adoece é à sua imagem que se atribui o adoecimento, cabendo aos xamãs (hekura) curá-las, pois são eles que possuem a capacidade de ver essas imagens, ao contrário das “pessoas comuns”. As imagens (uhutipë) não necessitam necessariamente de um corpo, e existem em infinitude nas suas formas não-corpóreas, como imagem-essência, e são essas imagens que os xamãs yanomami “fazem descer” para auxiliá-los. Dentre os diversos motivos que podem causar o adoecimento de uma pessoa, está o roubo de sua imagem, e, quando uma pessoa falece, é a sua imagem que deixa o corpo físico e passa a habitar um outro plano, de forma que se deve apagar e destruir quaisquer registros do corpo físico que aquela imagem habitou, permanecendo assim apenas sua imagem-essência. É nesse sentido que a primeira reação do pai de Adriano, respeitado xamã, foi impedir que as imagens de seus familiares fossem levadas embora por aqueles desconhecidos forasteiros quando a equipe de filmagem salesiana chega em sua comunidade. O que eram aqueles equipamentos e pessoas, se não sequestradores de imagens, do componente vital dos Yanomami? Em um primeiro momento, proibir o roubo de suas imagens foi uma estratégia adotada pelos Yanomami para salvaguardá-los de outros adoecimentos para além das novas doenças trazidas pelos brancos. Mas, a partir de um maior contato com os brancos e suas tecnologias, o conceito yanomami de imagem se atualiza e o termo uhutipë passa a ser designado também para as reproduções fotográficas e filmagens, atualizando-se também o uso delas em suas estratégias de luta e sobrevivência.

Cuidar de suas imagens é, para os Yanomami, fundamental para garantir a sua existência. Precisamente por isso, a questão da imagem sempre foi, e ainda é, uma grande questão também em suas relações interétnicas, tanto no seu sentido negativo quanto positivo. Diversos foram e ainda têm sido os casos de roubo de suas imagens e usos indevidos, desautorizados e sem consentimento, em prol de interesses pessoais ou institucionais, assim como a produção de equivocadas imagens por mal-intencionados pesquisadores, envolvendo tanto questões éticas e patrimoniais como também danos morais e à própria saúde dos Yanomami. Por outro lado, foi também essa expertise yanomami no cuidado de suas imagens que permitiu potentes encontros com artistas e antropólogos que, em aliança com eles, têm produzido imagens fundamentais para a luta em defesa do povo Yanomami, como, por exemplo, o trabalho de Claudia Andujar, determinante para a demarcação da Terra Indígena Yanomami e pela visibilização da beleza e força deste povo. Nesse sentido, a produção e divulgação de imagens dos Yanomami têm servido também às estratégias empreendidas pelas lideranças e xamãs yanomami para a pacificação dos brancos e de suas tecnologias, buscando transformá-los em aliados na luta pela sobrevivência e existência da terra-floresta yanomami e todos seus habitantes.

Por muito tempo, o acesso às imagens feitas dos Yanomami permaneceu restrito a eles, exceto aquelas que os pesquisadores ou missionários levavam de volta às comunidades, como foi o caso deste filme produzido pelos missionários, mantido restrito aos Yanomami por muitas décadas e sendo utilizado para a propaganda salesiana. Porém, com uma maior circulação nas cidades e a ampliação da conexão à internet, os Yanomami passaram a ter mais acesso às suas imagens, e essa experiência tem promovido muitas reflexões entre eles, tanto sobre as imagens feitas deles em tempos mais antigos quanto as imagens que desejam exibir no futuro. Vemos hoje uma retomada da imagem pelos Yanomami, buscando tanto um maior controle na circulação delas como também mais autonomia na produção de novas imagens. Este é o momento de virada do período em que as imagens conhecidas dos Yanomami eram aquelas que os brancos faziam deles para este novo tempo em que agora os próprios Yanomami estão produzindo imagens de si mesmos e refletindo sobre quais imagens e narrativas eles desejam apresentar ao mundo não indígena, ou seja, fazendo também suas próprias curadorias. 

Nesse sentido, passados pouco mais de 40 anos desde a passagem daquela equipe de filmagem salesiana entre os Yanomami na região do rio Marauiá, jovens e lideranças yanomami desta região decidiram criar o seu próprio núcleo audiovisual, e, com o apoio da Associação Kurikama Yanomami e seus parceiros não indígenas, em 2016 foi fundado o NAX - Núcleo Audiovisual Xapono Yanomami. Hoje, o NAX é um centro para formação, produção, apresentação, debate e difusão audiovisual indígena das comunidades yanomami na região do rio Marauiá, através do qual os jovens e as lideranças têm buscado sua autonomia e protagonismo na produção de suas imagens, além de usarem as ferramentas audiovisuais para fortalecer as suas reivindicações e as suas lutas, para o cuidado, a proteção e a promoção de cultura e da terra-floresta yanomami. Assim como a Associação Kurikama Yanomami atua como instituição para a representação política dos interesses das comunidades yanomami da região do rio Marauiá e rio Preto (AM), o NAX atua também como instância deliberativa sobre a circulação e produção das imagens dos Yanomami dessas regiões, sejam elas produzidas pelo próprio núcleo como por outros Yanomami com seus celulares de forma autônoma ou por parceiros não indígenas. Por conterem imagens de falecidos e também pela sua importância política, há um acordo entre o NAX e a associação de que os filmes produzidos pelo núcleo devem circular preferencialmente fora das comunidades yanomami e, por outro lado, os filmes produzidos pelos Yanomami em seus celulares devem circular exclusivamente entre as comunidades e jamais serem publicados na internet. Já os filmes produzidos por parceiros não indígenas devem sempre ser encaminhados previamente ao NAX e à associação para ter sua circulação e publicação autorizada. Assim, além da produção e formação audiovisual, o NAX é também um importante espaço de reflexão e discussão dos jovens e lideranças yanomami sobre a produção e circulação de suas imagens. Desde sua fundação, o NAX produziu 14 filmes, realizados e montados nas oficinas de formação audiovisual organizadas pelo próprio núcleo e seus parceiros entre 2016 e 2019. São esses os filmes apresentados nesta edição da forumdoc.bh em Nossa imagem é nossa defesa, “para vocês acreditarem e ajudarem a defender nosso povo e nossa floresta”, como nos diz Sérgio Yanomami, curador da mostra que aqui apresentamos.

Currículo

Daniel Jabra

é graduado em Arquitetura e Urbanismo e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos. Desde 2016, trabalha junto ao povo Yanomami em iniciativas para a promoção e defesa de seus direitos, assim como para o fortalecimento das escolas indígenas nas comunidades yanomami do rio Marauiá (AM). Atua também nos campos da curadoria e mediação intercultural, atualmente trabalha na produção executiva e no acervo da Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea.

Notas

  1. KOPENAWA, David; BRUCE, Albert. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 116.