Se você está aqui, convém enquanto estamos juntos pôr no toca-discos, toca-fitas, rádio ou outro algo que sirva para se ouvir música, um disco dos Tincoãs. Em breve vai soar a voz de Mateus Aleluia, um dos integrantes desse poderoso trio formado em Cachoeira, Bahia, a partir do final dos anos 50, e que nos 70 imprimiu uma potente, singular e belíssima dicção afro ao cancioneiro brasileiro, incorporando e harmonizando temas do candomblé e da umbanda.
Na tela, um trabalho cuidadoso de Tenille Bezerra e equipe em torno a Mateus. No contexto de um filme devotado à música, compreendemos que nos solicite um engajamento de escuta. Que nos peça ouvidos atentos, e mesmo que se o ouça como se ouve uma música, reconhecendo seus timbres, situando nosso corpo e percepção através do ritmo de seus acontecimentos, memorizando seus versos, e quiçás localizando-nos com eles – música e filme – inesperadamente alhures. Nessa hora, dispomos da nossa escuta e da do filme. E aqui é possível então discernir um outro tipo de escuta, bem específico, de tal maneira que o filme, por certas escolhas formais suas, demonstra escutar atentamente a forma do que diz Mateus, o modo como formula suas questões, o idioma existencial, por assim dizer, com que se expressa. E sentimos que por um esforço de criação, o filme se encontra a ponto de reverberar algo do próprio estilo de criação artística de Mateus. É assim que compreendemos que certas figuras do tempo e da memória, do trânsito e da intervenção mutuamente possíveis entre eras e lugares distantes, reconhecíveis nas falas e canções do artista, tenham reverberação em traços sensíveis, em escolhas formais deste, diríamos, amoroso filme.
Não seremos convidados a um documentário que esquadrinhe a vida de seu biografado, e assim distribua pontos de referência, situe locais de origem, nomeie interlocutores privilegiados, em datas e locais precisos. A operação deste filme é distinta, trata-se de criar um mecanismo que permita uma outra movimentação – pôr em andamento uma certa viagem entre as eras, permitir adentrar um modo de acesso co-presente e simultâneo entre diferentes momentos históricos, seres e lugares, e sublinhar que o processo que se acompanha e se experimenta está em curso. Digamos então, ao som do bolero, que se trata de uma viagem ao infinito (no sentido do que não está terminado, tendo como partida, assim como destino, a Terra, aquela que está sempre por formar-se). É aí que Mateus se move. Não é mesmo um estado de consciência usual este que nos permita experimentar essas outras relações entre os espaços, e outras configurações da memória social. Laivos de transe, ao modo, quiçás, daquele praticado nas religiões afro-brasileiras. É, ademais, uma tarefa em geral descrita naquelas que se costuma chamar histórias míticas.
Para dar conta dessa proposta de experimentação do tempo, um “desde sempre aqui” (um “para sempre, agora”, como apontava aquele outro ancestral negro, Itamar Assumpção, ao incorporar um outro, Ataulfo Alves), era preciso que o cinema existisse há séculos (e que os registros de imagem e som houvessem testemunhado as batalhas, as invasões, o horror. E na outra margem, também a beleza, alguma luz). Essa a tônica da sequência inicial do filme – na qual somos chamados a presenciar o primeiro tiro, ainda num dia enevoado do primeiro século da colônia, seguido de uma miríade de tiros e gritos, que interrompe brutalmente o canto indígena que ouvíamos há pouco na mata (em desenho de som elaborado), e pressiona pelo desalojo do ancestral autóctone, os donos da terra, vai nos lembrar sempre Mateus. Os índios, silenciados momentaneamente, seguirão retornando à batalha através dos caboclos nos pontos de umbanda cantados pelo artista. Esta é a Terra, este é o palco da História. Este é o local de onde parte o Tincoã, nas margens do rio Paraguaçu, a cidade de Cachoeira.
Do outro lado, em outra das margens, a África. Mateus se encontra em Angola no início dos anos 80 – junto a Dadinho, integrante fundador dos Tincoãs – e ali vive quase 20 anos. Este encontro possibilitará toda sorte de descobertas a ele (“Cachoeira, foi de Luanda que entendi sua realidade”), e a seus anfitriões africanos – que reconhecem imediatamente seu recuperado parentesco com os visitantes, ao ouvirem em Luanda a canção “Deixa a gira girar” (“meu pai veio de Aruanda”). Brasil-Angola, Mateus realiza a travessia da Kalunga grande (“o oceano separou-me de mim”) ainda em vida. Essa é, em geral, experiência da alçada de ancestrais divinizados, aqueles a quem Mateus segue de perto, junto a tantos outros de seus semelhantes. Nesse momento, nos terreiros do recôncavo baiano, comenta-se entre o povo de santo: “Mateus está em Angola. Todos ficamos felizes”. Sente-se sua presença, mesmo se não se o vê.
– “Aquilo que é invisível é que é real, é que é concreto”, diz o Tincoã, subitamente ancião, de pé diante do terreiro marcado com os machados de dupla lâmina de Xangô. O filme aponta, com Mateus, o mistério dessa zona da experiência vaga, mas intensamente atestada pelo não dito, pelo não visto. É assim ao ouvir histórias de maravilhas, relatadas na presença de Mateus por um amigo angolano do artista – Mateus não fala as línguas dos povos locais de Angola, o feiticeiro que ele tem por diante não fala português, ambos se imantam e conversam durante longo tempo. E agora?
É em contrapartida à experiência desagregadora da escravização que se trama um certo contrabando de signos, visado por ambos, artista e filme. Estes distribuem toda uma sinalética, explícita ou apenas insinuada pelas sequências, que seja reconhecida pelos seus – vai aos materiais de arquivo, revisita imagens quase desaparecidas, retoma posturas corporais, multidões, labores extenuantes, danças celebrativas, gestos vitalistas de corpos negros, anônimos. Por outro lado, propicia aparições-relâmpago de outros personagens míticos, outros agentes de uma História mais geral, cujas falas e ações compõem o pano de fundo da trajetória de Mateus, e que não serão sinalizadas no filme com legendas, assim como tampouco os materiais de arquivos pelos quais o filme passa. Mas, um pouco ao modo de uma sua bela canção, é como se Mateus dissesse “eu sou Agostinho Neto, eu sou Angela Davis, eu sou Fidel Castro, eu sou Milton Santos, eu sou Zumbi, eu sou…”. Beatriz Nascimento diz, em cartela no início do filme, que é e será preciso “fazer elos em uma história fragmentada”. Oxalá seja possível reatar laços, vislumbrar uma nova humanidade (em oposição ao homem vil), relançar para diante imagens de emancipação – o imperativo, diz Mateus, o fazer poético de todo artista.
Currículo
Bruno Vasconcelos
Desenhista de som, fotógrafo, montador, realizador. É mestre em Antropologia pela UFMG. Integra a Associação Filmes de Quintal.
Como citar este artigo
VASCONCELOS, Bruno. Para sempre, desde sempre – e agora? In: forumdoc.bh.2020: 24º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2020. p. 185-187 (Impresso); p. 187-189 (On-line).