O diretor de documentários enfrenta, hoje em dia, alguns dilemas, não importa qual seja o país em que trabalhe. Mas, no Brasil, há opções específicas a fazer que podem chegar a pôr em questão a própria legitimidade dessa prática profissional.
Seriam 4, a meu ver, esses dilemas fundamentais: o da (1º) obsolescência; o da (2º) incongruência; o da (3º) indisponibilidade e o da (4º) sobrevivência. Acredito que seja das escolhas feitas diante de cada um deles que resulta a maior ou menor relevância, originalidade, interesse e razão de ser dos documentários que vêm sendo produzidos em nosso país.
Ladrões de cinema, dirigido por Fernando Cony Campos em 1977, já nos alertara, há quase 30 anos, para a circunstância de que a profissão de cineasta estava se tornando obsoleta. No filme, moradores de uma favela do Rio de Janeiro roubam a câmera e o gravador de uma equipe de norte-americanos, que estão filmando o desfile de uma escola de samba. Em vez de vender o equipamento, resolvem fazer um filme a ser dirigido pela dupla Luquinha e Fuleiro. Luquinha, de Jean-Luc (Godard) e Lucchino (Visconti). Fuleiro, de (Samuel) Fuller. Tendo aprendido de um personagem chamado Claude Rouch que é preciso ter negativo na câmera para poder filmar, os ladrões de cinema assumem eles mesmos a direção do filme sobre Tiradentes e demonstram que a presença de um diretor profissional nas filmagens pode ser dispensável.
Passadas três décadas desde que Ladrões de cinema foi feito, não é mais necessário roubar equipamento para reafirmar a desnecessidade do diretor profissional. Comunidades indígenas no Alto Amazonas têm acesso a cursos de formação técnica, câmeras e ilhas de edição através do projeto Vídeo nas aldeias, que forma realizadores indígenas desde 1987, entre 23 povos em 4 estados da Amazônia legal. O mesmo ocorre em favelas do Rio de Janeiro, onde a entidade Nós do cinema dedica-se à formação de jovens carentes em diversas especializações do audiovisual e a Central Única das Favelas – CUFA formou, em 2004, a terceira turma de audiovisual. Indígenas e moradores das comunidades urbanas carentes tomaram em suas mãos a tarefa de registrar suas próprias imagens, tornando obsoleta a mediação do cineasta profissional. Esse é o primeiro dilema que deve induzir o realizador de documentários, no mínimo, a procurar redefinir sua função, além da sua temática e forma preferenciais.
Outra comprovação desse primeiro dilema poderia ser feita tomando-se como exemplo um evento recente que chegou a ser comparado à Marcha do Sal, liderada por Gandhi em 1930, na qual 2 milhões de indianos desafiaram a taxação imposta pelos ingleses. Em versão bem mais modesta, 12200 integrantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) percorreram, no início de maio de 2005, 205 quilômetros em 16 dias, chegando a Brasília para protestar contra a política econômica do governo e apresentar ao presidente da República a reivindicação de que a reforma agrária fosse efetivada, assentando 400 mil famílias ao longo do seu mandato. Essa teria sido, segundo a avaliação da imprensa, a “maior marcha de reivindicação social da história do País”.
À parte o possível exagero da comparação com a marcha indiana, não resta dúvida de que o evento brasileiro poderia ser tema de vários documentários. Sabemos que gravações foram feitas por jornalistas turcos para a CNN da Turquia e por equipes da Suécia, Coréia e Itália. Registros jornalísticos também foram exibidos nos telejornais das emissoras de televisão brasileiras e é provável que integrantes do próprio MST tenham feito algum gênero de gravação. E os documentaristas brasileiros? Terão acompanhado a marcha? Até onde soubemos, um registro foi feito pelo fotógrafo Alberto Bellezia Neto, mas o material gravado ainda não foi editado. Ainda assim, considerando a significação atribuída ao evento, diria que a presença desse câmera solitário não chega a alterar a impressão de que os realizadores de documentários tenham estado ausentes, pecando por omissão diante de eventos significativos da nossa história contemporânea e ratificando, dessa maneira, sua irrelevância¹.
O segundo dilema, da incongruência, pode ser exemplificado pela situação vivida por uma dupla de documentaristas (Ricardo Stein e eu mesmo) quando gravavam, em fevereiro de 2005, a reunião de 300 pequenos agricultores na fábrica de farinha de Inhapi, cidade com 20.000 habitantes da região semiárida do estado de Alagoas. Um dos principais objetivos do encontro era a renegociação das dívidas com o Banco do Nordeste, de maneira que os agricultores pudessem tomar novos empréstimos que garantissem o plantio da próxima safra. A maior dívida entre os participantes da reunião chegava a 15 mil reais, resultante de um empréstimo inicial de 7 mil reais, somados aos juros acumulados. A equipe de gravação, por sua vez, estava gastando quantia equivalente a essa, mais do que a maioria das dívidas individuais que estavam sendo negociadas, apenas para se deslocar do Rio de Janeiro até Alagoas, cobrir custos de hospedagem e alimentação, e pagar a locação de equipamento e aquisição de fitas. Esse é o antigo dilema da incongruência, que pode ser dilacerante em um país, como o Brasil, de extrema desigualdade social, onde pessoas que participam de um documentário, muitas vezes, dependem apenas para sobreviver de uma parcela infinitesimal do custo da gravação.
O terceiro dilema se evidencia quando lembramos do documentário chinês, A oeste dos trilhos, realizado por Wang Bing em 2003, a respeito do qual Dominique Paini falou na “disponibilidade absoluta para o tempo e o espaço”, como sendo um aspecto essencial dessa saga de 9 horas, gravada ao longo de três anos. Uma das maiores virtudes do documentário de Wang Bing seria, segundo Dominique Paini, o fato do “sentido advir pelo ato de filmar, no momento mesmo da gravação, deixando se apresentar diante da câmera a paisagem e os personagens”. Em um modelo de produção como o que vigora no Brasil, regido por normas burocráticas e dependente de favores fiscais do Estado, parece duvidoso que projetos semelhantes possam ser realizados, no que diz respeito à duração da gravação, do documentário editado em si e à disponibilidade do realizador para “o tempo e o espaço”. O terceiro dilema, nomeado aqui como o da indisponibilidade, resulta, portanto, do fato dos projetos serem condicionados pela obrigatoriedade de atender regulamentos e exigências legais em sua formulação, e pelo limite estrito de tempo que se pode dedicar a eles em sua realização.
A potencialização do que levou o cineasta polonês, Krzysztof Kieslowski, a abandonar o cinema documentário constitui o quarto dilema. Kieslowski percebeu, durante a realização de Estação, em 1981, que a vida da pessoa filmada pode ser afetada pela própria filmagem. Para ele, “todo realizador de filmes não-ficcionais acaba percebendo um dia os limites que não podem ser ultrapassados – aqueles além dos quais arriscamos causar dano a quem filmamos”, conforme declarou à revista Positif. No Brasil, não se trata apenas de afetar quem é filmado. Abordar certos temas e fazer gravações em certos lugares pode resultar em ameaça à própria vida de quem realiza e de quem participa da filmagem. Pelo menos uma reportagem documental teria deixado de ser exibido para não pôr em risco a vida das pessoas envolvidas na sua realização (Falcão - Meninos do tráfico, realizado em 2003 por MV Bill e produzido pela Central única das favelas – CUFA²). Ainda assim, os 16 jovens ouvidos no mesmo documentário teriam sido assassinados nos dois anos seguintes às gravações. O dilema da sobrevivência surge quando o medo prevalece nas relações entre moradores de comunidades, policiais e cineastas.
Há três anos, João Moreira Salles, já se perguntava onde estavam as imagens da tragédia do Grande Rio, em que as estatísticas mais recentes indicam a ocorrência de 97 assassinatos por mês, em um total de 1.167 casos em 2004. Segundo ele, esses registros visuais “não estão em lugar nenhum”, existindo, nas suas palavras, uma “tradição brasileira, trágica, de silêncio visual sobre a violência”. Mesmo que não pareça existir, de fato, conforme João observou, “um corpo de imagens que configure uma tradição”, creio que talvez haja uma certa injustiça nessa conclusão, ao menos no que diz respeito ao fotojornalismo brasileiro, em que há alguns registros eloquentes de vítimas da violência policial. No caso do cinema documentário realizado por profissionais, porém, João Moreira Salles parece ter razão ao afirmar que “o momento do fogo, da violência, não se fotografa”. Quase sempre, o que temos, nas suas palavras, são apenas réquiens, imagens registradas depois das atrocidades terem sido cometidas. Fica, dessa maneira, configurada a dívida dos documentaristas com as vítimas desse quadro de violência. Dívida cuja origem acredito estar, em parte ao menos, nos 4 dilemas relacionados acima.
Há ainda um 5º dilema, mas que não é exclusivo do documentarista brasileiro. Foi também Krzysztof Kieslowski, salvo engano, quem o formulou pela primeira vez com maior precisão, quando declarou à televisão francesa que “a câmera documentária não tem o direito de entrar no que mais [me] interessa, a vida íntima, privada, dos indivíduos. Preferi comprar glicerina na farmácia e os atores simularem choro do que filmar pessoas reais chorando, ou fazendo amor, ou morrendo”.
Esses quatro ou cinco dilemas podem levar à desistência, opção compreensível e respeitável feita por Kieslowski. Ou então, constituírem o desafio que motiva a persistência em procurar, a cada filme, a função do documentarista e a fronteira entre os gêneros, na tentativa de decifrar este enigma chamado Brasil.
// Escrito para mesa redonda sobre o documentário brasileiro, realizada em Paris, em 8 de julho de 2005, durante o festival Paris Cinema. Publicado em O Estado de São Paulo, Caderno 2, 24 de julho de 2005; republicado em folheto editado por José Carlos Avellar para o SESC: Vocação do poder – documentário: espelho crítico do Brasil, 2005, p. 12-23.
Currículo
Eduardo Escorel
Crítico, montador e realizador de cinema.
Como citar este artigo
ESCOREL, Eduardo. Quatro ou cinco dilemas. In: forumdoc.bh.2006: 10º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2006. p. 121-123.
Notas
1. Em junho de 2006, tivemos notícia de que um grupo de jovens goianos gravou a Marcha e que o material ainda estava sendo editado.
2. Passados 3 anos, Falcão-Meninos do tráfico finalmente foi exibido no Fantástico, da Rede Globo, tendo tido grande repercussão.