QuilomboCinema: ficções, fabulações, fissuras

De um lado do Atlântico (Milena Manfredini, 2020), Fartura (Yasmin Thayná, 2020), Nascente (Safira Moreira, 2020), Pattaki (Everlane Moraes, 2019) e República (Grace Passô, 2020)

Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo agencia testemunhos e articulações da identidade negra, sua memória e territorialidades, na contemporaneidade. Na última década, vimos crescer significativamente a presença de realizadores e, principalmente, realizadoras negras. Em festivais e outros eventos de cinema – presenciais e agora virtuais – esse conjunto vigoroso e heterogênero se encontra, junto a críticos, programadores e pesquisadores também negros, e estabelece um rico processo de diálogo e fortalecimento.

Aquilombamento é uma possível chave para a compreensão de processos agregadores e contra-coloniais que configuram um conjunto de ações empreendidas por pessoas negras nas artes e, mais especificamente, no Cinema. Para Maria Beatriz Nascimento (2018) quilombo é um “instrumento ideológico”, “símbolo de resistência” que, no campo do ativismo e das práticas artísticas, “fornece material para a ficção participativa”. De acordo com a autora, quilombo é uma “possibilidade nos dias da destruição” – destruição esta que, para os povos negros diaspóricos, é consequência de uma outra ideia, a de progresso da modernidade, como bem nos aponta a filósofa Denise Ferreira da Silva (2017).

A modernidade nos inventa como uma “ficção útil”, como afirma Achille Mbembe. Segundo o autor, “negro e raça têm sinônimos no imaginário das sociedades europeias”. O autor argumenta que “raça não existe enquanto fato natural, físico, antropológico ou genético” e que portanto ela não passaria de “uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica” (MBEMBE, 2018, p. 28). O “negro”, naturalizado como uma essência e aprisionado no “calabouço das aparências” seria, portanto, uma invenção. Essa “ficção útil” serve sobretudo a uma outra ficção, ou “autoficção”, que sustenta por oposição a ideia da universalidade de uma identidade – a do sujeito branco eurocentrado – que toma para si o lugar de um “mesmo do mundo” em oposição a um “outro” que não o espelha.

A “ficção participativa” de Maria Beatriz Nascimento nomeia ações no campo das artes, notadamente em torno do que o Teatro Experimental do Negro (TEN) empreendeu a partir de 1944. Para a autora, as atividades do TEN reforçam uma “nacionalidade brasileira por meio do filão da resistência popular às formas de opressão” (2018, p. 290) e de afirmação do “negro” como possibilidade de humanidade no imaginário coletivo. O TEN e a ideia de quilombismo desenvolvida pelo seu fundador, Abdias do Nascimento, formam um programa político que articula ética e estética¹ em oposição ao que ele chamava de “patologia da brancura”, num enfrentamento à mítica “democracia racial” (2019, p. 92). O quilombo, para Abdias, “não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial” (NASCIMENTO, 2019, p. 289).

Parto aqui da hipótese de que Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo, na contemporaneidade e realizado por e com corpos-ficção, articula possibilidades de existências com e na imagem. Um QuilomboCinema que agrega direta ou indiretamente realizadores, pesquisadores, críticos, curadores e produtores que colocam na gira um conjunto de obras e de pensamento sobre elas e que tensionam a própria noção de Cinema Brasileiro Contemporâneo. A ideia de corpo-ficção me parece, por ora, central para a compreensão da dimensão inventada de uma outridade – reiterada historicamente pelo Cinema Brasileiro – e, ao mesmo tempo, da potência de invenção de si que constitui os sujeitos subalternos – especificamente, aqui, negros num contexto particular de um país que ainda não se conciliou com seu passado colonial e escravagista. Tomo a ideia de ficção como uma potência que articula fabulação, invenção e restituição para a problematização e reinvenção da identidade negra com e no Cinema.

Ao falar do problema contemporâneo das literaturas nacionais, Edouard Glissant afirma que elas “devem aliar o mito à sua desmitificação, e a inocência primeira à inteligência adquirida”. Com isso, é “necessário que [as obras] assumam de uma só vez, o combate, o militantismo, o enraizamento, a lucidez, a desconfiança de si mesmo, o absoluto do amor, a forma da paisagem, o nu das cidades, as ultrapassagens e as fixações” (GLISSANT, 2019). Essa multiplicidade de abordagens que o caribenho apontava no início dos anos 1980² segue fundamental para este nosso QuilomboCinema e é expressa no conjunto vigoroso e diverso de filmes produzidos por realizadoras negras na programação desta edição do forumdoc.bh.2020.

Everlane Moraes constrói um oriqui cinematográfico, fabulando uma Cuba com seres encantados, desdobramentos de Iemanjá – a mãe dos filhos-peixe – que os hipnotiza e que revela, por meio seus comportamentos quase obsessivos, as contradições e a complexidade da vida na ilha. Segundo Antônio Risério (2020), oriqui nomeia um canto, um poema, uma narrativa ideogramática que pode ser uma “saudação-em-nome”, de “linguagem hiperbólica”, especialmente quando se referem a orixás (mas podem se referir a “qualquer coisa sob o sol”, ainda segundo o autor). Em Pattaki, ganância, contenção, sedução e fé se materializam na performance de quatro figurações que existem no fronteiriço território simbólico entre terra e mar, vivos e mortos, numa recusa à adesão a parâmetros coloniais ou simplificações narrativas restritas a representações e decodificações de uma cosmogonia afro-cuban, jogando o filme ao oceano-imaginário da diáspora negro-atlântica.

Em De um lado do Atlântico, Lélia Gonzales anuncia: “Rio de Janeiro vai virar Palmares”. As ruínas do Cais do Valongo – evidências da chegada e da comercialização de negros escravizados na antiga capital – misturam-se a imagens contemporâneas de corpos negros em rituais, que são friccionados às estátuas de inspiração helênica que compõem a paisagem moderna da cidade do Rio de Janeiro. Imagens do início do século XX disponíveis em arquivos britânicos reiteram o imaginário colonial em cujas fissuras o filme opera. “Quilombo é: homens que procuram conscientemente organizar uma sociedade para si onde ele possa viver de acordo com o seu passado histórico africano brasileiro, seu costume, a sua sua forma de ser” – nos fala Maria Beatriz Nascimento em voice over. A partir do oceano que nos trouxe até aqui e que permanece a nos guardar, a diretora Milena Manfredini nos conecta com a reiteração da violência e da potência herdadas e que latejam na manifestação “Vidas Negras Importam”, nos lembrando do tempo espiralar que conforma nossa existência e nossa resistência.

Dos espaços da cidade para os corpos em ambientes domésticos, festivos, aquilombados. Fartura monta uma multivocalidade em primeira pessoa, reiterando experiências compartilhadas a partir de imagens de famílias negras, segundo a diretora Yasmin Thayná, em voice over no filme, “que puderam se registrar”. “Ver a vida dos outros nestas imagens é como estar diante das fotos que meu pai fez da nossa família”, acrescenta. Imagens de um sempre-tempo de festa, de alegria em volta de tudo o que se consegue colocar à mesa. A comida farta como elemento agregador; fartura como partilha. O pesquisador Muniz Sodré, uma das primeiras pessoas do plural do filme, associa fartura compartilhada à tradição, em sua transtemporalidade: “no sentido da tradição de onde eu venho, de onde muitas de nós viemos, o tempo tem outros sentidos [...]: o tempo como divindade, que é um deus a quem se celebram rituais, etc. etc., mas também é uma forma de viver que permite a gente estar aqui e encontrar ao mesmo tempo quem não está. Nessas tradições, o tempo é sempre circular, não é presente, passado e futuro, ele é vivido em forma de ritual, e é um ritual que é comunitário”. O tempo da fartura é o tempo do aquilombamento.

No nosso hoje-agora menos farto, Nascente congrega mulheres que coabitam um mesmo ambiente doméstico-fílmico. Juntas, elas articulam um conjunto de signos que reiteram a presença negra nos planos – fílmico, físico, espiritual –, uma cosmogonia manifesta nas forças que habitam a casa e seus corpos. A diretora Safira Moreira, e sua câmera na mão, percorre os ambientes com essas mulheres para nos dizer que cuidar da casa é também cuidar dessas forças. A câmera-Safira dança junto, movimentando-se no espaço e no tempo que coexistem com e entre aqueles corpos – o tempo do visível, o tempo do invisível, o tempo evocado, o tempo impresso nos rostos das quatro gerações presentes ali. Filmado e lançado em meio à pandemia, o filme entrelaça camadas de tempo para nos apontar, no espelho, o que nos trouxe até aqui e o que vai nos levar adiante.

Ao contar³ sobre o que gera República – essa vertigem / mise en abyme em que somos mergulhadas – Grace Passô diz de um “sentimento de tempo” e de uma “exaustão histórica” que há “desde que existe este nome Brasil”. A densidade deste tempo-agora pandêmico exacerba, segundo a realizadora, “uma sensação radical de falta de pertencimento”. O filme, para ela – e para nós, em certa medida –, é um refrão a repetir a densidade atemporal da exaustão e do não-pertencimento negro diaspórico.

No filme, a atriz Grace se desdobra em duas pessoas: uma primeira, que performa a ficção de um mundo sonhado, e a segunda, que encarna o atravessamento de uma realidade transtemporal. “O teu Brasil acabou e o meu nunca existiu. Nunca existiu. Nunca existiu. Nunca!”, é o grito que nos atravessa, no final do filme, vindo da mulher segunda e dirigido à primeira; as duas, a mesma. Para além da ideia de espelho, o que Grace nos apresenta é a figuração de um duplo, esse dispositivo de autoproteção psíquica num desdobramento subjetivo. W.E.B. Dubois (apud GILROY, 2012) denomina “dupla consciência” dos sujeitos negros diaspóricos o reconhecimento da autoimagem que viria do esforço da identificação com uma perspectiva de negrura que se coloca, necessariamente, em permanente diálogo e/ou conflito com a imagem externa feita pelo fictício sujeito universal. Na articulação que a diretora faz das personagens – uma mulher e seu duplo – ela cria uma alegoria de sua/nossa vivência nesta sociedade atravessada por severos traumas de centralidade racial sobrepostos ao contemporâneo trauma da pandemia. O apartamento, com seu dentro e seu fora, é o espaço social dos limites para o seu/nosso corpo negro. A mulher de dentro é uma mulher negra. A mulher de fora também. A de dentro é o duplo. A de fora é contundência de um sujeito aparentemente desterritorializado a apontar para a fragilidade a própria noção de territorialidade, de pertencimento. A evidência da nossa ficção que aponta para a necessidade de nossa (re)invenção.

Currículo

Tatiana Carvalho Costa

Doutoranda junto ao PPGCOM/UFMG. Professora no Centro Universitário Una. Colabora em eventos de cinema como curadora, programadora e júri.

Como citar este artigo

COSTA, Tatiana Carvalho. QuilomboCinema: ficções, fabulações, fissuras. In: forumdoc.bh.2020: 24º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2020. p. 224-229 (Impresso); p. 226-231 (On-line).

Notas

[1] A discussão do autor se restringe à noção de representação. Compreendo aqui que esta noção é restritiva para o que o Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo tem proposto, mas ela serve de ponto de partida e superação.

[2] O texto original, Le discours antillais, foi publicado em 1981.

[3] Entrevista dada a mim e a ao crítico Juliano Gomes para a série “Diálogos APAN” em 28 de junho de 2020. Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/live/?v=711857952983117&ref=watch_ permalink>.

Referências

GLISSANT, Edouard. Le Même et le Divers. In: Le discours antillais. Paris: Seuils, 1981.

p. 190-201. Tradução: Normélia Parise. Disponível em: <http://www.ufrg.br/cdrom/ glissant/glissant.pdf>. Acesso em 29 de janeiro de 2019.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/ Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.

NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma militância Pan-Africanista. São Paulo: Perspectiva, 2019.

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N -1 edições, 2018.

RISÉRIO, Antônio. De oriquis. Revista Afro-Ásia. Salvador: nº 15, Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, 1992. Disponível em: <https://portalseer. ufba.br/index.php/afroasia/article/download/20833/13434>. Acesso em: 3 mar. 2020.